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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Rótulo do 'identitarismo' esconde ataques a movimentos sociais

Manifestantes protestam contra o racismo no Rio de Janeiro - IVAN SAMPAIO/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
Manifestantes protestam contra o racismo no Rio de Janeiro Imagem: IVAN SAMPAIO/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

30/01/2022 04h00

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A sociedade brasileira tem imensa dificuldade em encarar seus problemas estruturais e sempre encontra subterfúgios para desviar o foco dos debates centrais.

Por aqui, a atenção inquisidora é voltada para as vítimas, que precisam explicar o motivo pelo qual foram agredidas e porque estão reclamando da agressão. Enquanto suas condutas são investigadas, os agressores e a própria violência são ignorados.

A inversão da vez atinge os movimentos políticos que lutam por direitos fundamentais de grupos historicamente discriminados, como mulheres, negros, povos indígenas e comunidades LGBTQIA+. Tratados pelo rótulo do identitarismo são injustamente acusados de fomentar problemas em vez de serem vistos como formuladores de soluções.

Nas mais recentes acusações, uma elite considerada intelectual tem produzido livros e artigos para justificar um tal de "racismo reverso", invencionice propositalmente fomentada para tentar colocar brancos racistas no lugar de vítimas. Já já darão conta de inventar a "heterofobia" e um termo para denunciar a opressão das mulheres contra os homens.

Identitários afirmam suas existências

O conceito de identitário, apesar de estar relacionado a bandeiras de lutas e à afirmação de modos de viver até então reprovados pelos poderes normatizadores da sociedade, não dão conta da relevância desses movimentos.

Para além da busca por representatividade, são lutas travadas na materialidade do cotidiano, contra as violências, as interdições e os assassinatos. Não são apenas exigências simbólicas, mas afirmações da existência.

Estamos tratando do país onde a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado; que registrou em 2020, 1.350 casos de feminicídio —ou seja 1 a cada 6 horas e meia; no mesmo ano, houve alta de 63% de assassinatos de indígenas e aumento de invasões a terras indígenas.

O Brasil continua a ser o país que mais mata pessoas por conta das suas orientações sexuais e identidades de gêneros. A cada dez assassinatos de pessoas trans no mundo, quatro ocorrem aqui.

Movimentos contribuem para a democracia

Mesmo com a resistência do Estado brasileiro e a má vontade dos que encontram espaço privilegiado para elaborarem pensamentos sobre o país, os movimentos de militância têm legado contribuições importantes no aperfeiçoamento da democracia, com maior acesso aos direitos e no reconhecimento da potência que há na diversidade.

Exemplo disso foi o impacto da maior presença de negros nas universidades brasileiras. Trouxeram outros olhares e novas abordagens para pesquisas científicas e para as ações de extensão, fortalecendo a ligação das instituições de ensino com os territórios e suas demandas mais urgentes.

Outro benefício das chamadas lutas identitárias está na incidência nas políticas públicas, com a criação de programas institucionais específicos que corrigem as indefinições das políticas universalistas. Exemplos concretos se encontram na atenção à saúde da população negra, da violência contra as mulheres negras, nas questões indígenas e das comunidades LGBTQIA+.

A democracia também ganha com a ampliação do debate político, com novos agentes de interlocução das demandas populares, que fortalecem a política participativa e representativa contra a hegemonia das velhas oligarquias conservadoras que ainda dominam o poder.

A expectativa gerada nas pesquisas eleitorais até então divulgadas é que essas pautas reivindicatórias farão a diferença no próximo pleito, que marcará a interrupção da onda de extrema-direita, com suas violências simbólicas e materiais e seus ataques aos direitos humanos.

Não por acaso, a reprovação do atual governo é mais significativa entre a população negra. Conforme já tratamos aqui no texto: Datafolha e Abolição: Por que rejeição a Bolsonaro é maior entre os pretos.

Interseccionalidade aperfeiçoa os argumentos da militância

Atentos às criticas e preocupados com os possíveis excessos que são condições dos embates sociais e políticos no país, os próprios movimentos de militância avançam na sofisticação dos debates e dos argumentos.

Prova disso é a resposta dada à acusação de que as bandeiras identitárias enfraquecem a luta ao fragmentarem as reivindicações dos oprimidos.

Os movimentos têm colocado a questão da interseccionalidade para explicar a necessidade de união dos grupos, revelando que não há hierarquias entre as formas de opressões e, sim, uma articulação das estratégias de manutenção do poder expressas pelo racismo, machismo, homofobia e o capitalismo.

Como explica a intelectual Carla Akotirene, autora do livro Interseccionalidade, de 2019, que trata sobre o atravessamento dessas opressões de raça, classe e gênero.

"A interseccionalidade é uma ferramenta teórica e metodológica ofertada pelas feministas negras e disputada na encruzilhada acadêmica para pensar a inseparabilidade do racismo, capitalismo e o patriarcado cisheteronormativo."
Carla Akotirene

Identitários são os outros

Quando os que estão no poder se unem em suas afinidades para manter seus privilégios, como ocorreu recentemente nas assinaturas de um abaixo-assinado em favor da ideia de racismo reverso, não são tratados como identitários.

Também não é considerado identitarismo a valorização de elementos culturais e religiosos que unem descendentes europeus, assim como os herdeiros das terras brasileiras, com seus gostos e hábitos preservados nos rincões deste país.

Identitários são os de fora da norma, do padrão, os que habitam as margens do poder e das decisões políticas, portanto os que reivindicam por direitos e por acessos. São os que causam medo, afinal, o inferno são sempre os outros.