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Promotora defende cotas raciais contra 'pacto narcísico da branquitude'
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"É a primeira grande resposta do Estado brasileiro aos quase 400 anos de escravização de pessoas negras. É o início de um processo de construção de uma democracia racial no Brasil. É um pequeno, porém, firme passo para que essa justiça racial seja construída."
É assim que a promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia, Lívia Sant'Anna Vaz, define a política de ações afirmativas que, em 2022, completa dez anos de adoção no Brasil, fruto de intenso debate na sociedade e no meio jurídico.
Cotas Raciais é o título do livro lançado por Lívia Vaz no último dia 14, que integra a Coleção Feminismos Plurais (Editora Jandaíra), organizada pela filósofa Djamila Ribeiro. A obra apresenta o impacto das cotas no ensino superior e nos concursos públicos ao longo dos dez anos da legislação.
Lívia é doutora em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Direito de Lisboa e também autora do livro A justiça é uma mulher negra (Editora Letramento), escrito em cocriação com a procuradora federal Chiara Ramos.
Em entrevista à coluna, a promotora analisa a década de desafios no aprimoramento das leis para a promoção da igualdade racial e para o enfrentamento ao racismo no Brasil.
"Há um pacto narcísico da branquitude que procura sufocar outros saberes", afirma a jurista, em relação às tentativas de impedir a inclusão da diversidade em diversos setores da sociedade, especialmente, no sistema de Justiça.
Revogar as cotas é inconstitucional
Após o resultado do primeiro turno das eleições e o evidente crescimento dos representantes de partidos de direita no Congresso Nacional, especialmente no Senado, intensificaram-se falas sobre uma possível intervenção do Poder Legislativo no STF (Supremo Tribunal Federal).
A proposta de aumentar o número de ministros e de limitar os mandatos dos juízes da Corte trouxeram preocupação a quem tem acompanhado o lento processo de avanço das leis voltadas à garantia dos direitos humanos, a exemplo das ações afirmativas, que tiveram a constitucionalidade aprovada por unanimidade pelo STF em 2012.
"É muito grave se falar em intervenção, principalmente quando essa atuação do STF é voltada para a garantia dos direitos humanos. Esse tipo de controle do Poder Legislativo no STF é de natureza inconstitucional. Teria que se rasgar a Constituição Federal de 1988 para romper com o que chamamos de Princípio dos Freios e Contrapesos."
Contrária a qualquer retrocesso em relação às ações afirmativas, a promotora reforça que as cotas foram ratificadas não somente no Brasil, como também por órgãos internacionais.
"Eu tenho dito que revogar as cotas raciais é uma medida inconstitucional. O Brasil assinou e ratificou a Convenção Interamericana contra o Racismo, nesse ano de 2022, na condição de emenda constitucional. É um tratado de direitos humanos que tem natureza de norma constitucional", explica.
Lívia afirma que revogar as cotas seria romper com o início de uma resposta institucional ao racismo e de um compromisso que se firma por reparação histórica para o povo negro no Brasil.
Raça como fator de desigualdade social
No livro Cotas Raciais, a autora rememora o histórico de restrições impostas a pessoas negras no acesso à educação formal e a resistência jurídica em reconhecer o racismo como um dos elementos que estrutura as desigualdades brasileiras.
"As cotas resultam da luta emancipatória dos movimentos negros. Quando os partidos políticos, especialmente os mais conservadores, perceberam a inevitabilidade da aprovação das cotas raciais, porque já havia decisão favorável do STF por unanimidade, já havia uma discussão social e uma pressão dos movimentos negros, houve a aprovação das cotas raciais como 'subcota' das cotas sociais. Como um último tiro de misericórdia e uma tentativa de desracialização."
A lei 12.711/12, chamada Lei de Cotas, estabelece que todas as instituições de ensino superior federais do país precisaram, obrigatoriamente, reservar 50% de suas vagas para alunos oriundos de escolas públicas, de baixa renda. Dentro destas estão as cotas raciais, destinadas a negros (pretos e pardos) e indígenas, cujo percentual varia em relação à população de cada região.
A promotora aponta que há uma confusão nesse sentido, pois a política de cotas raciais não se trata de medida de combate à pobreza.
"Medidas como distribuição de renda, reforma agrária e reforma tributária com tributação de grandes fortunas são de combate à pobreza e nada disso foi feito ainda no Brasil. Não podemos confundir com ações afirmativas que são para o combate ao racismo e promoção da igualdade racial", destaca.
De acordo com dados do IBGE (2015), os negros representam 53,6% da população brasileira. Esse contingente é sub-representado em espaços de poder e prestígio social e é maioria entre os mais pobres e necessitados.
Exemplo disso é que apenas 12% da população preta e 13% da parda têm ensino superior. Já entre os brancos, esse número é de 31%. Em relação à renda, o salário da população preta e parda equivale a 59,2% da população branca. No caso da mulher negra, o salário equivale a 35% se comparado ao de um homem branco (PNAD 2014).
"A raça segue sendo, 134 anos após a Lei Áurea [que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil], um fator determinante de desigualdade, isso não é à toa. O Estado brasileiro precisa assumir a responsabilidade por mudar o rumo desta história", defende Lívia Vaz.
Pacto narcísico da branquitude contra a diversidade
A promotora chama atenção para o fato de cada vez mais a população brasileira demonstrar, por meio de pesquisas, ser a favor das cotas raciais, entendendo que só temos a enriquecer, em termos culturais, econômicos e políticos com a diversidade.
"Esse processo de democratização, de abertura dos espaços de poder e decisão para a diversidade é de fato enriquecedor para toda a sociedade. É preciso conviver com a diversidade."
O pacto narcísico da branquitude é um pacto de mediocridade. A branquitude acha que se basta. Ela não dialoga com outros saberes. Ela procura sufocar outros saberes, procura sufocar o diverso, que não é padrão da branquitude. Com isso, empobrece toda a sociedade."
Lívia Vaz, promotora de Justiça
O "pacto narcísico da branquitude" é a contribuição epistêmica da doutora em Psicologia pela USP Cida Bento, que defendeu, em 2002, a tese intitulada "Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público".
O termo se refere aos compromissos de proteção e promoção entre os brancos visando manter os privilégios proporcionados pela estrutura racial, impedindo o acesso às oportunidades aos não brancos.
Neste sentido, um grande desafio ainda a superar é a maior presença negra no sistema de Justiça.
"A sub-representação, e quase ausência, de pessoas negras, notadamente de mulheres negras, no sistema de Justiça tem tudo a ver com a forma que nós construímos justiça ou injustiça, no país. Essa invisibilidade da pauta racial, esse controle de corpos negros por meio do direito penal, sempre existiu e segue existindo no Brasil. Embora tenhamos evoluído na legislação antirracista, a interpretação e aplicação do direito se dá, em grande medida, por homens brancos."
Essa exclusão gera visões parciais ou até mesmo unilaterais do direito, da Justiça e da liberdade.
"É preciso que pessoas negras estejam em todos os espaços de poder e decisão, especialmente no sistema de Justiça, que encarcera e controla corpos negros e que deixa de proteger esses corpos para proteger a segurança de corpos brancos. Sempre foi assim."
"Pessoas negras ainda são objetos de políticas públicas no Brasil quando não estão representadas nas casas legislativas para deliberar e decidir sobre políticas públicas a respeito do seu próprio destino. Do mesmo modo, pessoas negras são objetos de decisão judiciais quando não estão lá representadas e são vítimas de um sistema de injustiça, em grande medida", destaca Lívia Sant'Anna Vaz, fazendo crer que uma outra Justiça é possível.
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