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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Consciência Negra: Por mais galãs negros de cabelos dreads como Paulo Lessa

O ator Paulo Lessa interpreta seu primeiro protagonista na TV - Fábio Rocha
O ator Paulo Lessa interpreta seu primeiro protagonista na TV Imagem: Fábio Rocha

Colunista em UOL Notícias

20/11/2022 04h00

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Todo ano, ao se aproximar o 20 de novembro, somos provocados pelo negacionismo cínico brasileiro a responder à questão: para que serve a Consciência Negra?

A descoberta do que é ser uma pessoa negra em um país estruturado pelo racismo e pelas desigualdades raciais possibilita a tomada de consciência das adversidades que terá que enfrentar e também das potencialidades que possui e que poderá utilizar em sua própria defesa e afirmação.

Entre as grandes vantagens está a elevação da autoestima e a não-aceitação dos estereótipos negativos impostos aos corpos negros.

Consciência Negra é desvendar as belezas e virtudes que existem em sua existência e que foram negadas pelo racismo. É uma virada de chave em busca da autoaceitação e do amor próprio e da valorização das suas origens, suas heranças culturais e seus traços físicos.

Galã diz que demorou a se considerar um homem bonito

Esta semana, o ator Paulo Lessa, que está no ar atualmente na telenovela Cara e Coragem da Rede Globo, em entrevista ao site da emissora, falou da demora em se aceitar como um cara bonito.

A afirmação pode parecer estranha diante do belo visual que o ator tem estampado na tela, mas expressa o resultado da invisibilidade da beleza negra e dos estereótipos racistas na mente das pessoas pretas.

Eu não me via como um padrão de beleza porque os estereótipos reforçados eram outros. Imagina se na época que eu era adolescente o galã da novela era um cara negro de cabelo dread? Não era. E hoje estou podendo ser esse cara."
Paulo Lessa, ator, ao Gshow

A fala do galã, elogiado pela sua beleza e pelo talento com os quais tem desempenhado um personagem de protagonismo na novela da Globo, representa inseguranças comuns entre homens negros diante da sua própria imagem.

Paulo Lessa:  -  Cadu Pilotto / Caras -  Cadu Pilotto / Caras
Família negra: Paulo Lessa, a esposa Cindy Cruz e a pequena Jade
Imagem: Cadu Pilotto / Caras

Ausente nos referenciais de beleza das produções midiáticas e lembrado apenas na associação com a marginalidade ou a fetiches hipersexualizante e animalescos, ao homem negro, especialmente na adolescência, não são oferecidos elementos de orgulho e aceitação da sua imagem.

Ao contrário, precisam conviver com a desconfiança da sociedade e o desprezo dos espaços de legitimação da beleza e dos afetos, como a moda, o mercado publicitário e a mídia em geral.

O resultado da baixa estima é respondido muitas vezes com o auto boicote, a limitação dos seus sonhos e ambições e, no pior dos casos, o pouco zelo com sua própria vida, entregue à violência, aos riscos e aos excessos.

Em crise com sua própria imagem, o homem negro é impedido pelo racismo de enxergar na família negra sua condição de fortalecimento e de enfrentamento à violência com a qual a sociedade o trata.

Atingido em sua própria estima responde com brutalidade ou abandono o espaço do lar negro, que deveria ser a sua mais forte edificação, para proteção e crescimento individual e da sua comunidade.

A Consciência Negra serve para gerar mais homens negros como Paulo Lessa, consciente da sua beleza, do seu talento, da sua representatividade na mídia, da sua referência positiva para outras pessoas pretas e do seu compromisso como pai e marido em uma família negra (em suas redes sociais e em entrevistas, o ator compartilha seu amor pela cabo-verdiana Cindy Cruz, com a qual mantém uma relação de 15 anos, e pela pequena Jade, de um ano e meio, fruto desta união).

A gente consegue sonhar com o que a gente consegue se ver, se espelhar. Está sendo muito importante esse momento. Acho que muita gente me vê e pode sonhar a partir disso."
Paulo Lessa, ator

Após 15 anos de carreira, Lessa vive seu primeiro protagonista na televisão, podendo ostentar seus cabelos com dreads, em um personagem bem-sucedido e que faz par romântico com a mocinha da trama, vivida pela atriz Taís Araújo.

Dois tabus quebrados juntos: o do galã negro em destaque em uma telenovela e do amor negro enaltecido no enredo.

Em uma das cenas mais representativas da novela, Anita (Taís Araujo) e Ítalo (Paulo Lessa) se beijam pela primeira vez durante um show da cantora Liniker, em uma rara afirmação do amor e da beleza negra na televisão brasileira.

Em "Quantas vezes você já foi amado?, Baco celebra o amor negro

Consciência negra é também a busca pela "autoestima que roubaram de mim", como canta o rapper Baco Exu do Blues. Em seu álbum "Quantas vezes você já foi amado?", o cantor e compositor celebra o amor entre pessoas pretas, mas sobretudo, o amor-próprio do homem negro diante de tantas negativas e inferiorizações.

Baco Exú do Blues ganha biscoito nas fotos pessoais postadas nas redes sociais - Reprodução / Internet - Reprodução / Internet
Baco Exú do Blues ganha biscoitos nas fotos pessoais postadas nas redes
Imagem: Reprodução / Internet

O próprio artista é um exemplo das transformações provocadas pela consciência da sua própria beleza e talento. Em suas redes sociais, passou a exibir sua imagem de forma a arrancar suspiros e elogios, os chamados "biscoitos", na linguagem da internet.

Na canção Autoestima, Baco canta versos como:

"Tantas dores que eu tentei esconder
Queria tudo, me disseram: Isso não é pra você;
(...)
Foram vinte e cinco anos pra eu me achar lindo.
(...)
Eu só tô tentando achar
A autoestima que roubaram de mim
Que roubaram de mim

Zózimo Bulbul: galã negro pioneiro

Nas décadas de 1960 e 1970, um homem negro oferecia sua beleza e seu talento artístico ao Brasil, que preferiu atender aos apelos racistas e ignorar o brilho e a luz de Zózimo Bulbul.

Ator, diretor, roteirista, Zózimo estreou nos filmes do Cinema Novo, atuando com diretores como Glauber Rocha, Leon Hirzman, Cacá Diegues, Antunes Filho, entre outros. Atuou em mais de 30 filmes e ainda novelas, além de ser um provocador no audiovisual brasileiro, impulsionando o talento de cineastas negros e negras, até a sua morte em 2013.

o ator e cineasta Zózimo Bulbul (1937-2013) em cena de Alma no Olho, de 1974 - Reprodução - Reprodução
o ator e cineasta Zózimo Bulbul (1937-2013) em cena de Alma no Olho, de 1974
Imagem: Reprodução

Em busca de um protagonismo negro na narrativa da sua própria história dirigiu obras como Alma no Olho, de 1974 e Abolição, de 1888, questionando a cidadania negra justamente no centenário da inacabada abolição da escravatura no Brasil.

Em Alma no Olho, Zózimo oferece a todos, mas especialmente aos homens negros, razões para não mais duvidarem da beleza e das potencialidades dos seus corpos negros.

Tendo como único recurso performático seu próprio corpo em diálogo com a música de John Coltrane, Zózimo Bulbul apresenta uma sensível narrativa de toda a trajetória da população negra, desde o sequestro do continente africano, o tráfico negreiro, a escravização, a colonização da sua cultura e dos seus saberes e suas lutas de resistência.

Tudo contado por meio da performance magistral do genial, belo e inventivo corpo negro de Zózimo Bulbul. É uma obra obrigatório para quem busca elevar sua auto-estima ou para quem ainda quer compreender a importância da Consciência Negra.

José Carlos Arandiba, o Zebrinha: bailarino e coreógrafo baiano - Adeloyá Ojú Bará - Adeloyá Ojú Bará
O baiano José Carlos Arandiba: mais de 40 anos de dedicação à dança
Imagem: Adeloyá Ojú Bará

No recém-lançado documentário Ijó Dudu - Memórias da dança negra na Bahia, o bailarino, diretor e coreógrafo José Carlos Arandiba, o Zebrinha, faz uma "denúncia poética" sobre o tratamento dado aos dançarinos negros. Em fortes depoimentos, homens e mulheres, que garantiram a presença negra na dança, relatam as críticas e tentativas de exclusão dos seus corpos tratados como defeituosos, excessivos e incapazes para a arte.

Através de imagens de arquivo, o filme apresenta o talento e virtuosismo de corpos em cena, causando indignação diante do absurdo de negar a evidente beleza daquelas performances. Beleza mantida nos corpos maduros dos dançarinos e dançarinas que foram entrevistados por Zebrinha e que, com coragem, contam suas histórias de resistência e de afirmação.

Que a consciência negra, celebrada neste 20 de novembro e exercitada diariamente no cotidiano das pessoas pretas, ajude a derrubar as ilusões dos estereótipos racistas, fazendo brilhar a luz e a beleza de homens e mulheres negras.