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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Decisão judicial ameaça cota em concurso de universidade e causa revolta

Estudantes da UFG protestam contra decisão que afastou professora negra aprovada em concurso  - Julia Barbosa
Estudantes da UFG protestam contra decisão que afastou professora negra aprovada em concurso Imagem: Julia Barbosa

Colunista do UOL

30/11/2022 18h35

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No mês em que se celebra a Consciência Negra, a principal política de ação afirmativa, as cotas para acesso de pessoas negras nas universidades, que vêm apresentando real eficácia no combate ao racismo no país, sofreram um forte golpe na justiça.

Por decisão do juiz federal Urbano Leal Berquó Neto, da 8ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de Goiânia, a Universidade Federal da Goiás (UFG) cancelou a nomeação e posse de Gabriela Marques Gonçalves no cargo de docente da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da instituição.

No lugar da candidata negra foi nomeado, no dia 16 de novembro, o candidato branco Rodrigo Gabrioti de Lima.

Política de Cotas é Constitucional

Rodrigo Gabrioti é doutor em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo, e ficou em primeiro lugar no concurso cujas vagas eram destinadas exclusivamente a candidatos negros.

Já Gabriela Marques, doutora em Comunicação Audiovisual pela Universitat Autònoma de Barcelona, na Espanha, ficou em terceiro, mas era a única com o direito legítimo de concorrer pela reserva de vagas.

Um direito constitucional já assegurado pelo STF (Supremo Tribunal federal), que desde 2012 aprovou por unanimidade a constitucionalidade da adoção de cotas nas universidades públicas como forma de reparar as desigualdades históricas que impedem o acesso de pessoas negras a estes espaços.

Como consequência, em 2014, a Lei nº 12.990, chamada Lei de Cotas no Serviço Público, regulamentou a reserva de vagas para pessoas negras nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta.

Estudantes, professores e movimentos sociais de diversas partes do país promoveram protestos e emitiram notas de repúdio ao que consideram um duro ataque às políticas de inclusão de pessoas negras na universidade e de combate às desigualdades raciais no ensino superior.

A justificativa que Rodrigo Lima utilizou para pedir a suspensão das cotas no concurso da UFG se baseia no argumento de que a Lei de Cotas estabelece a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos, sempre que o número de vagas oferecidas for igual ou superior a três. O concurso para a vaga da Faculdade de Informação e Comunicação da UFG tinha apenas uma vaga, mas no geral a universidade ofereceu 15 vagas.

Nesse mesmo concurso, outros dois cargos de professor também foram reservados exclusivamente a candidatos negros, sem qualquer questionamento judicial.

Ação coloca em risco políticas públicas

Em sua rede social, o pesquisador Tarcízio Silva, autor do livro Racismo Algorítimico: inteligência artificial e discriminação nas redes sociais", escreveu que a ação movida pelo professor Rodrigo Gabrioti, coloca em risco as políticas de ação afirmativa em vigor no país.

"Ele não passou no concurso para a vaga da UFG. Contrariado, judicializou a questão, propondo uma interpretação errada e perversa do edital e da lei, prejudicando não só o edital, a faculdade, a legítima vencedora do concurso, como abrindo perigosíssimo precedente que pode fragilizar toda a política pública", Tarcízio Silva, pesquisador da UFABC (Universidade Federal do ABC Paulista).

No dia 20 de novembro (Dia Nacional da Consciência Negra), no perfil oficial da UFG foi feita uma postagem em defesa das políticas afirmativas no acesso à universidade.

"A UFG tem um histórico de atuação no campo das ações afirmativas para a população negra. O nosso sistema de cotas, o UFGInclui, foi implantado ainda em 2008, antes de a reserva de vagas ser instituída por lei. Isso é resultado da mobilização dos coletivos negros que integram a nossa instituição.
20 de novembro é uma data para reafirmar o nosso compromisso com a inclusão e o combate ao racismo.
#ufg #20denovembro #novembronegro #combateaoracismo


A postagem recebeu uma série de comentários, destacando a contradição entre o discurso da universidade e o ocorrido com o concurso, quando uma professora negra aprovada teve sua nomeação suspensa para dar lugar a um professor branco, que nem sequer poderia concorrer.

Uma petição online elaborada pelo Coletivo de Estudantes Cotistas da Pós-graduação da UFG foi aberta, denunciando o caso e convocando pessoas a assinarem o manifesto, que já conta com mais de 1.464 assinaturas.

Entidades se manifestam em defesa das ações afirmativas

Entidades nacionais que reúnem pesquisadores da área de Comunicação, como a Compós (Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Comunicação e a Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação) emitiram notas em defesa das ações afirmativas nas universidades.

"A política pública de cotas é um exemplo de políticas reparatórias necessárias. Nesse sentido, todos os esforços devem ser feitos para garantirmos as conquistas legais em relação às cotas, sobretudo, nas instituições públicas, nas escolas e universidades e centros de pesquisa. Reparar as imensas injustiças cristalizadas em nossa sociedade é um dever daqueles/as que defendem a democracia e um país mais justo!", informa a nota da Compós.

"Em relação às cotas de ações afirmativas nas universidades, sejam para estudantes, sejam para profissionais, a Intercom sempre foi uma voz de destaque no incentivo às iniciativas de reparação das históricas desigualdades e de combate ao racismo estrutural, que, infelizmente, continuam existindo em nosso país", defende a Intercom em nota.

A Intercom informou ainda que está acompanhado com atenção os desdobramentos do caso envolvendo o concurso da UFG e que a diretoria executiva da entidade acatou a solicitação de afastamento do professor Rodrigo Gabrioti, diretor adjunto de Projetos da Intercom, até o desfecho do caso.

Protesto de estudantes da UFG - Rafaela Ferreira - Rafaela Ferreira
Protesto dos estudantes da Universidade Federal da Goiás
Imagem: Rafaela Ferreira

Já o Grupo de Pesquisas Comunicação Antirracista e Pensamento Afrodiaspórico, vinculado à Intercom emitiu nota, solicitando o afastamento de Rodrigo Gabrioti de Lima por compreender que ele, "além de desrespeitar uma lei que representa uma importante política afirmativa, atua no sentido de não garantir a equidade de direitos, pré-requisito fundamental para a sobrevivência da Intercom".

A nota do GAPA apresenta solidariedade à professora Marques Gonçalves, que, "na condição de mulher negra, teve seus direitos violados, enfrentando mais uma das tantas violências que esse grupo vivencia em um país que mantém viva hierarquias raciais e de gênero opressoras".

"A universidade sempre foi um dos espaços mais elitizados do país e de reprodução da branquitude. Esse perfil só tem mudado a partir da luta renitente dos movimentos negros, principalmente a partir da Lei de Cotas 12.711/2012, que esse ano fez 10 anos, e das cotas no serviço público. Vale ressaltar que esta última tem sido sistematicamente desrespeitada no país, mantendo privilégios históricos no acesso a postos de trabalho de maior prestígio e segurança", Grupo de Pesquisas Comunicação Antirracista e Pensamento Afrodiaspórico da Intercom.

Enquanto se colhe os frutos das quase duas décadas de políticas afirmativas no ensino superior e se busca ampliar essa política para outras áreas, como as instâncias dos três poderes, não se pode aceitar esse retrocesso.

Para compreender a importância das ações afirmativas e da política de cotas nas universidades públicas, confira o especial produzido pelo ECOA do UOL, em 2020,
A esperança vem das Cotas.

O fortalecimento das universidades públicas brasileiras, proporcionado pela garantia da diversidade de saberes e conhecimentos proporcionados pelas cotas, além de um direito de todos os brasileiros, é um benefício para todo o país.