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21 de março: Por que é tão importante conhecer as tradições do candomblé
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Ainda nos primeiros dias do novo governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a lei que institui 21 de março como o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé.
A data, escolhida por já ser definida pela ONU (Organização das Nações Unidas) como o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, ganha no Brasil a importância de evidenciar a luta contra a intolerância e o racismo religioso.
As religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, são as principais vítimas da perseguição, dos insultos e violências motivadas pelo fundamentalismo e ódio religiosos camuflados de fé.
Um dos caminhos para o respeito é o conhecimento. Saber mais sobre o diferente, se aproximar sem preconceito, conhecer e entender suas manifestações pode levar não apenas à tolerância obrigatória em uma sociedade, mas ao respeito, imprescindível em um mundo de diversidades.
Conhecer as práticas religiosas que preservam valores ancestrais africanos, em diálogo com os modos de resistência e solidariedade construídos em terras brasileiras, é aprender sobre a nossa própria história civilizatória.
Nas cerimônias realizadas em um terreiro, para além das expressões de fé que devem ser respeitadas como todas as outras, é possível conhecer parte significativa do legado dos povos africanos, sequestrados e trazidos para construir o Brasil, em meio à violência da escravidão e aos modos de resistência.
Noções de comunidade, de diálogo íntimo com a natureza, de reverência ao tempo, expresso tanto nos mais velhos quanto em cada criança, além de muita, muita mesmo, exposição do belo, por meio da arte produzida pelo talento humano, seja nos cantos e toques que dialogam com o sagrado, nas vestimentas, na preparação dos barracões, no lugar central da comida, no encantamento por todos os sentidos.
Está tudo contado nas cerimônias públicas, nas festas abertas a toda a comunidade, para o culto às divindades que representam a força da natureza e também características fundamentais que garantiram a sobrevivência dos povos negros, a força, a justiça, a destreza, a sabedoria.
Uma preparação com esmero, fruto do empenho e da dedicação de uma comunidade movida pela fé e pelo compromisso em manter um legado ancestral, que possibilitou a nossa continuidade.
Não há nada de obscuro ou temeroso. Há muita beleza, comunhão e histórias oferecidas aos que tiverem sensibilidade e corações abertos.
Omolú, nobre guerreiro do corpo coberto de flores e luz
Para explicar melhor porque uma festa em um terreiro de candomblé é tão significativa sobre quem somos e quem podemos ainda ser como povo, eu vou usar um itán, uma história ligada ao orixá Omolú —o grande médico, que tem o poder sobre as doenças— e, por isso, foi muito evocada pelo povo de axé nesses anos de pandemia de covid.
Essa narrativa sobre Omolú, também chamado de Obaluaê, eu ouvi de um grande griô, Ubiratan Castro de Araújo, professor de História da Universidade Federal da Bahia, com doutorado pela Universidade de Sorbonne, e que escreveu diversos livros que ajudam a alimentar o orgulho pela contribuição negra ao mundo.
Bira Gordo, como era carinhosamente chamado, contava uma das lendas sobre Omolú, que reproduzo aqui, ao meu modo de sentir e aprender com os mitos africanos. Essa mesma história já foi dramatizada pelo Bando de Teatro Olodum, no espetáculo Áfricas.
Conta que Omolú, filho de Nanâ Buruku, foi acometido por uma doença na pele e vivia recluso, tentando esconder suas feridas das vistas dos outros, para evitar provocações.
Um dia, Omolú foi procurado por Ogum, orixá obstinado e corajoso, responsável pela transformação do ferro em ferramentas e armas, o que nos possibilitou produzir alimentos, lidar com a terra e fazer a guerra.
Ogum também faz o ajô, age em favor da união, junta os seus. Por isso, Ogum fez questão de convidar Omolú para uma festa que estava acontecendo com todos os orixás presentes. Ogum disse que Omolú deveria ir, ele tinha direito e não deveria se importar com o que os outros dissessem ao seu respeito.
Encorajado por Ogum, Omolú foi à festa, mas cobriu todo o seu corpo com palhas. Chegando ao local, ele ficou pelos cantos, envergonhado, sem querer sem notado.
Até que Iansã, a senhora dos ventos e dos movimentos, generosa mãe que a todos acolhe, avistou Omolú e o puxou para o meio da roda. "Você tem de dançar", convidou a enérgica dançarina, cujos pés não são vistos no chão.
Omolú não queria dançar. Então, Iansã começou a rodopiar a sua volta, aumentando o movimento e a velocidade de tal forma que o vento jogou para cima todas as palhas que cobriam o corpo de Omolu. Ele, desesperado, tentou se cobrir, mas percebeu, neste momento, que cada uma das suas feridas tinha estourado e se transformado em uma flor de pipoca. Omolú estava coberto de flores, e em vez de um homem perebento, todos puderam ver um belo guerreiro cheio de luz.
Candomblé conjuga a fé, a arte e a resistência de um povo
A moral da história que o velho griô Bira nos contava era que Omolú representa os africanos capturados nos reinos da África, jogado no navio, humilhado, ferido e afastados dos seus, com o corpo cheio de marcas, memórias de violência e separação.
Todo sofrimento coletivo de um povo que já foi rei no seu lugar, na sua origem e que depois foi submetido a condições humilhantes, a ponto de se autoflagelar.
Aí vem Ogum, e Ogum —o que é? É o movimento negro. É a luta política que chega para dizer: "Não se aquiete. Vamos em frente! Você tem direito". Mas o negro chega coberto, cheio de marcas, de complexo, ódio.
O que falta é a arte. Aí entra a beleza, que está no movimento da dança de Iansã e todos os orixás, que está no capricho de cada roupa costurada para vestir as divindades, que está no toque certeiro dos alabés que convocam os deuses, junto ao canto da comunidade, e também nas flores e enfeites do barracão. Tudo para nos lembrar que somos cheios de luz, de talento, de arte e beleza, tudo que as feridas do racismo e da escravidão tentam esconder.
Por isso, na festa de candomblé, toda a comunidade compartilha não só a comida e a fé no sagrado, mas também canta, dança com os deuses, se vestem de beleza e recontam uma história ancestral.
Todo brasileiro, de qualquer origem ou tonalidade de pele, deveria conhecer uma cerimônia religiosa do candomblé para entender e respeitar o significado do Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé.
Salve o 21 de março, Axé!
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