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André Santana

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Vai na fé' reencontra comunidade evangélica que o bolsonarismo deturpou

Foto do elenco da novela Vai na Fé - Foto: Divulgação/Globo
Foto do elenco da novela Vai na Fé Imagem: Foto: Divulgação/Globo

Colunista do UOL

01/05/2023 04h00

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A novela "Vai Na Fé", em exibição às 19h na Rede Globo, rompe com as imagens negativas que os quatro anos de governo Bolsonaro tentaram associar aos evangélicos do Brasil.

A intolerância e o oportunismo religioso, que mobilizaram atitudes e falas do ex-presidente e de seus seguidores, estimularam um clima de beligerância, gerando brigas e separações em famílias, grupos de amigos e também espaços religiosos, incluindo da comunidade evangélica.

Ao misturar a fé cristã a discursos de ódio, preconceito, propaganda armamentista, repulsa aos direitos humanos e negação da ciência, o bolsonarismo abafou valores e práticas de respeito e solidariedade das igrejas evangélicas.

Na contramão disso, a valorização desses aspectos de união e fortalecimento comunitário, destacando as labutas e alegrias de quem tenta viver guiado pela fé, ajuda a explicar o sucesso da novela da Globo.

A história da mãe cristã, Solange (Sheron Menezes, interpretando sua primeira protagonista), que luta para criar suas duas filhas sob os valores da sua experiência religiosa, equilibrando seu talento e passado artístico com a urgência em sustentar a casa, é semelhante aos dilemas de milhares de mulheres brasileiras de diferentes crenças, mas, especialmente, das negras que são maioria nas comunidades pobres.

Bem distante da amargura, da grosseria e da pregação desesperançosa que o bolsonarismo emprestou à expressão da fé, o ambiente das famílias cristãs de "Vai Na Fé" é de descontração, barulhentas e animadas refeições, embaladas por hinos de louvor e citações bíblicas.

Apesar das dificuldades econômicas e da tentativa de autocontrole diante dos impulsos mundanos, as mulheres do núcleo central compartilham suas dores, se cobram, se apoiam e se fortalecem.

É o retrato do cotidiano das comunidades, com suas vidas partilhadas, tanto para a fiscalização que gera a fofoca maldosa, como também para fazer uma parceria em busca de renda, como a comercialização de marmitas.

Mesmo nascido em uma família católica e convertido à religiosidade do candomblé, conheço de perto famílias e comunidades evangélicas, podendo compartilhar o incômodo de muitos amigos com a relação estabelecida entre a fé cristã e as práticas extremistas de ódio da era bolsonarista.

Chegamos a escrever aqui na coluna sobre as pesquisas que mostravam a rejeição por parte das mulheres evangélicas ao então candidato à reeleição, decisão que se confirmou no resultado das urnas, mesmo com a desesperada convocação de Michelle Bolsonaro para amenizar esta relação com os eleitores cristãos.

Relembre aqui: Post preconceituoso de Michelle mira evangélicas que não votam em Bolsonaro.

Novela dá destaque aos negros evangélicos

O fanatismo religioso e a intolerância dos seguidores do bolsonarismo fez parecer hegemônico esse comportamento entre a comunidade evangélica, deixando de lado tantos fiéis que não são alienados diante das falhas cometidas por lideranças e das leituras tortuosas e oportunistas da Bíblia.

Assim como os personagens de "Vai Na Fé", são cristãos que mantêm a indignação diante dos problemas sociais do Brasil e entendem a problemática racial brasileira, mantendo uma postura de consciência diante do racismo.

São os negros evangélicos, cristãos orgulhosos da sua origem racial e das heranças africanas, na contramão das práticas discriminatórias de segmentos neopentecostais, que passaram a demonizar os elementos culturais afrobrasileiros tão valorizados pelas religiões de matriz africana.

Essa história não é de hoje, mas ganhou mais visibilidade na era digital com a possibilidade de compartilhamentos de ideias fora dos púlpitos.

Em 2006, o pastor, historiador, teólogo e poeta Walter de Oliveira Passos já estava na internet, reunindo negros cristãos para falar de relações raciais, consciência negra e da matriz africana do cristianismo.

Um grupo de negros evangélicos, na antiga plataforma Orkut, chegou a reunir mais de 30 mil pessoas para ler e discutir os textos publicados por Walter Passos.

Antes, em 1992, Passos havia fundado a Igreja da Revelação Ancestral (IRA), com um discurso de denúncia contra o racismo, aliado ao movimento pan-africanista. Em seus textos, defendia que, assim como os primeiros habitantes da terra (representados na Bíblia por Adão e Eva), Jesus também era africano e nunca pregou na Europa, fato escondido tanto pelo catolicismo como pelos protestantes.

Walter Passos, poeta, teólogo, historiador (1956 - 2023) -  Arquivo pessoal -  Arquivo pessoal
Walter Passos, poeta, teólogo, historiador (1956 - 2023)
Imagem: Arquivo pessoal

Walter Passos foi o coordenador do Conselho Nacional de Negras e Negros Cristão (CNNC), responsável pela organização, em 2007, do 1º Encontro Nacional de Negras e Negros Evangélicos, em Salvador.

Essa leitura racial cristã já era percebida em pastorais negras dentro da Igreja Católica desde a década de 1970, em diálogo com as lutas das organizações do movimento negro, dando continuidade à ação de irmandades negras centenárias, como a do Rosário dos Homens Pretos, do Centro Histórico de Salvador, ou a da Boa Morte, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano.

Walter Passos faleceu no último dia 10, aos 66 anos, deixando um legado de busca do diálogo inter-religioso e das origens africanas da fé.

No Blog do CNNC ainda é possível encontrar artigos e pesquisas de Walter Passos.

Diversidade se reflete nos diálogos e cenas

Esses negros evangélicos do Brasil contemporâneo, conectados às redes digitais, engajados politicamente e conscientes de seus direitos têm suas vidas retratadas nos personagens de "Vai na Fé".

A novela abarca os diversos conflitos raciais, de classe e de gênero, presentes não só nos espaços religiosos e familiares, mas também na vida acadêmica, nas carreiras profissionais e no ambiente artístico.

Temas como cotas e ações afirmativas, acesso a direitos, relacionamentos abusivos, masculinidade tóxica, afetividades negras e periféricas, descobertas da sexualidade, entre outras questões que animam os debates nas redes sociais, sejam elas digitais ou presenciais, ganham destaque.

Equipe de realizadores de Vai Na Fé: sucesso da diversidade - Reprodução redes sociais - Reprodução redes sociais
Equipe de realizadores de Vai Na Fé: sucesso da diversidade
Imagem: Reprodução redes sociais

A novela, criada e escrita por Rosane Svartman, tem direção geral de Cristiano Marques e direção artística de Paulo Silvestrini.

Além da competência de Svartman para criar tramas das 19h (são dela "Totalmente Demais", de 2015, e "Bom Sucesso", de 2019), "Vai na Fé" tem como grande trunfo o talento e diversidade da equipe de colaboradores, tanto no roteiro (Mário Viana, Renata Corrêa, Pedro Alvarenga, Renata Sofia, Fabrício Santiago e Sabrina Rosa) quanto na direção (Isabella Teixeira, Juh Almeida, Augusto Lana e Matheus Senra), além de consultores nas temáticas religiosas e do mundo do Direito.

É essa equipe diversa, em termos de raça, gênero, religião e regiões do país, que tem garantido elogiadas cenas com diálogos sensíveis e atuais, tocando em temas muito urgentes da sociedade. Incluindo aspectos raros para a história da telenovela no Brasil que é a afetividade de pessoas negras, principalmente os homens pretos.

Diferente dos personagens costumeiramente oferecidos a atores negros que apenas reforçam estereótipos, como o malandro, o bandido ou o amante hiperssexualizado, a humanidade dos homens pretos é representada em "Vai Na Fé" no advogado rico e bem-sucedido, no pastor acolhedor, no pai trabalhador e amoroso com suas filhas, nos jovens idealistas que buscam a educação e a formação universitária como possibilidade de atuação coletiva para combater o racismo.

Para ficar ainda melhor, a novela precisa abordar de forma crítica a intolerância de segmentos evangélicos contra as religiões de matrizes africanas, como o candomblé e a umbanda, principais vítimas do racismo religioso.

Neste sentido, as cenas que retrataram a visita de Benjamin (Samuel Assis) a uma cerimônia em um terreiro já podem integrar os raros momentos de tratamento respeitoso da televisão brasileira com a religião dos orixás. Destaque para as palavras de fé e sabedoria ditas por Mãe Ana de Oyá, interpretada com sensibilidade pela atriz Valdineia Soriano:

A gente nunca se atrasa para o que é nosso.

Mesmo curta, a cena foi importante para reforçar os valores de ancestralidade que unem os negros no Brasil e na diáspora, independentemente da denominação religiosa.

Como nas palavras do próprio Walter Passos, lembradas pela escritora Carla Akotirene em um post sobre a morte do ativista:

A ancestralidade não está em associação religiosa. Ela está em você. Ela está em nosso povo, e quando persegues os cultos de matrizes africanas, volta-se contra você mesmo, como um bumerangue erradamente arremessado.
Walter Passos, pastor, historiador, poeta, ativista

Depois de quatro anos de obscurantismo, o país merecia uma história cheia de esperança, que fizesse as famílias se divertirem, celebrarem e torcerem pelo amor e pela união, fortalecidos pela fé, que como já disse o poeta "não costuma faiá".