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OPINIÃO

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O último jogo da vida de Garrincha, o grande amor, que Elza Soares não viu

Mané Garrincha e Elza Soares em 1970, na Itália - Keystone-France/GettyImages
Mané Garrincha e Elza Soares em 1970, na Itália Imagem: Keystone-France/GettyImages

Colunista do UOL

21/01/2022 14h58

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As vésperas do lançamento do "Jornal da República", em agosto de 1979, Mino Carta me mandou ir atrás de Mané Garrincha, o grande amor da vida de Elza Soares, que andava sumido desde que eles se separaram fazia dois anos.

"Crioula" e "Neném", como os dois se tratavam, tinham começado a namorar durante a Copa do Mundo de 1962, no Chile. Foi um escândalo na época, porque os dois já eram casados, com um monte de filhos, mas foi uma paixão tão grande que eles não conseguiam disfarçar.

Sem Pelé, que se machucou logo no início da competição, Garrincha só não fez chover, marcou até gol de cabeça, e virou a grande estrela da seleção que conquistaria o bicampeonato mundial.

Nos 15 anos seguintes, o rumoroso casamento do ídolo dos gramados com a grande estrela dos palcos nunca mais saiu da boca do povo que acompanhava as andanças dos dois como se fosse uma novela em tempo real.

Quis o destino que os dois morressem num mesmo dia 20 de janeiro, com 39 anos de diferença.

Ao saber da morte de Elza, logo me lembrei daquela reportagem que fiz para o nº 1 do jornal do Mino que saiu com o título "A vida torta de Mané Garrincha".

Não dá para falar de um sem falar da outra e vice-versa, embora Garrincha nem quisesse tocar no nome da cantora, como se ela não tivesse existido na vida dele, nos três dias que passei com ele, no Rio e no interior de São Paulo, como veremos a seguir. .

Foi uma gincana para achar o ídolo decadente que estaria internado em alguma clínica no interior do estado do Rio para se tratar de mais uma crise de alcoolismo, o principal motivo da separação do casal e da morte dele em 1983.

Já fazia algum tempo que o maior driblador da história do futebol mundial e herói da conquista da Copa de 1962 vivia no ostracismo, dependendo da ajuda de amigos para sobreviver.

Com a ajuda de um deles, consegui encontrar Garrincha na velha colônia de férias do Ministério da Fazenda, em Paulo de Frontin, pequena cidade serrana do Rio.

Tinham me avisado que "o Mané já não está falando coisa com coisa", e tive a certeza disso antes de fazer a primeira pergunta, quando ele já foi logo falando porque estava naquele lugar.

"Agora, não tenho mais nada, gente boa. Mas passei um susto danado. Foi aquela maldita pimenta... Eu estava pensando que era herói, comendo aquela pimenta... Não sou mais herói, não".

Para me provar que estava curado, contra todas as evidências, pois mal conseguia andar em linha reta, ele me garantiu que já no domingo seguinte, entraria em campo com a equipe do Milionários FC, formada por antigos ídolos do futebol brasileiro, que ganhavam uns trocados jogando contra times de várzea nos fins de semana.

Pensei que ele estava delirando quando me desafiou a encontrá-lo no sábado, em frente ao Hotel Danúbio, no centro de São Paulo, onde os jogadores pegariam o ônibus para Pirapozinho, pequena cidade da região de Presidente Prudente. Pois não é que, na hora marcada, ele apareceu mesmo, com a sacolinha de atleta na mão, cheio de alegria por reencontrar os amigos. "Não te falei que vinha, gente boa?". Para Garrincha, todo mundo era "gente boa".

Como Garrincha conseguiu sair daquela colônia, onde haviam montado um verdadeiro cordão sanitário para cuidar dele, até hoje não sei. Sei apenas que tomou alguns goles de conhaque no gargalo na viagem que duraria a noite inteira, depois de ter vindo do Rio para São Paulo. No dia seguinte, Garrincha entrou em campo, acreditem se quiser, como contei na capa do "Jornal da República", ao lado de uma bela foto de Solano José, que deve ter sido a ultima dele nos gramados nesta despedida que Elza Soares não viu. Ainda bem. Certamente ficaria bem triste com a cena, ela que cuidou de "Neném" como se fosse um filho. .

"PIRAPOZINHO, 26 - URGENTE - Apareceu aqui hoje nas barrancas do Paranapanema, um cidadão de nome Manoel Francisco dos Santos, dizendo-se Mané Garrincha. A notícia de sua presença colocou em polvorosa essa pequena cidade de 30 mil habitantes. "Mas ele não está doente no Rio?", perguntavam-se as pessoas. O cidadão hospedou-se na "Pensão do Morais" junto com a equipe do Milionários FC. Ganhou buquês de flores, placa de prata e beijos das moças bonitas no estádio municipal. O juiz apita, Garrincha com a bola. O lateral esquerdo Antônio Carlos, o "Bunda Baixa", vai em cima dele. Garrincha faz que vai, mas não vai, a torcida dá risada. E era ele mesmo. Mané Garrincha em pessoa, não havia mais dúvidas. Viajou 1100 quilômetros, oito horas e meia de ônibus, para ficar em campo só por 45 minutos e ganhar 6 mil cruzeiros (em dinheiro da época) de cachê. Saiu de campo suado, sujo e feliz".

A história de amor, glória e tragédia de Garrincha e Elza Soares daria um belo filme sobre a vida dos nossos ídolos longe dos holofotes. Recomendo as biografias de Rui Castro sobre Garrincha e de Zeca Camargo sobre Elza. Está tudo lá.

Não temos mais ninguém como eles, capazes de nos fazer rir e chorar, aplaudir e lamentar, na alegria do povo e na tristeza da despedida.

Agora os dois estão juntos novamente, na eternidade do céu.

Vida que recomeça.

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