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OPINIÃO

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Quem pode ameaçar poder de Putin são os protestos na Rússia contra a guerra

O presidente russo Vladimir Putin: multiplicam-se por toda parte os protestos contra a guerra na Ucrânia - Sergei Karpukhin/Getty Images
O presidente russo Vladimir Putin: multiplicam-se por toda parte os protestos contra a guerra na Ucrânia Imagem: Sergei Karpukhin/Getty Images

Colunista do UOL

06/03/2022 14h53

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"Não se sabe o que acontece no Kremlin, muito menos o que se passa na cabeça de Vladimir Putin".

Elio Gaspari, em sua coluna de domingo na Folha).

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E eu acrescentaria: se por acaso algum jornalista souber, e resolver contar para o resto do mundo, corre o risco de pegar 15 anos de cadeia, como estabelece a censura militar baixada esta semana na Rússia, que proíbe até chamar a guerra na Ucrânia de guerra.

Para saber o que acontece em seu próprio país, o proto czar Vladimir Putin vai ter de consultar a famigerada imprensa ocidental, mas ele certamente não vai gostar de ler as notícias sobre os protestos contra a guerra, que estão se espalhando por toda parte, dentro da Rússia e pelo mundo afora.

Como lá não tem Datafolha, quando se der conta do estrago causado na sua popularidade após a invasão da Ucrânia, com os primeiros efeitos das sanções econômicas que já começam a ser sentidos no cotidiano da vida dos russos, poderá ser tarde demais.

Os primeiros sinais de descontentamento da população já podem ser observados a olho nu nas filas dos caixas eletrônicos e nos supermercados onde as famílias disputam uma corrida de carrinhos para fazer seus estoques de comida, sem saber quanto tempo ainda essa guerra vai durar.

Sem poder usar celulares e cartões de crédito para pagar suas contas, os passageiros agora precisam comprar seus bilhetes de trem e metrô com dinheiro vivo, saindo de uma fila para outra, e já estão faltando nas prateleiras produtos importados aos quais os russos se acostumaram neste tempos de relativa paz da globalização.

Quanto mais gente se arrisca a sair às ruas para dizer ao governo que não está satisfeita com a situação, apesar da censura, da propaganda oficial enganosa para dizer que tudo está bem, dentro do planejado, e das ostensivas ameaças das tropas de choque da polícia, arrastando os descontentes para o camburão, mais gente se anima a fazer o mesmo, como acontece em qualquer lugar do mundo.

Só neste domingo, ao menos 4.300 pessoas foram detidas nestes protestos em várias cidades, segundo a ONG OVD-Info, mas isso pode provocar um efeito dominó, com novas manifestações para denunciar a violência policial, e logo poderão faltar vagas nas prisões. Desde o começo do conflito, há 11 dias, quase 15 mil manifestantes já foram para a cadeia.

Como sabemos, mesmo em regimes autoritários, esses movimentos costumam ser imprevisíveis, ninguém sabe como terminam.

Entrincheirado no Kremlin desde o início da invasão da Ucrânia, sempre cercado por assessores e os célebres oligarcas com quem divide o poder desde o fim do império soviético e da privataria das estatais, o soberano Putin só aparece para plateias amestradas e deixou de falar com jornalistas estrangeiros.

Quando caminha de um lado para outro por aqueles imensos salões imperiais, como vemos na televisão, sempre com a cara amarrada e o olhar desconfiado, os vinte anos de poder absoluto parecem pesar sobre as suas costas. Os inimigos podem estar mais perto do que ele imagina.

Não sou só eu quem está percebendo isso, estou em bom companhia. Em sua coluna deste domingo no Globo, minha antiga chefe Dorrit Harazim, uma atenta observadora do comportamento humano que já viu muitas guerras, chamou a atenção para os verdadeiros riscos que Putin está correndo:

"Putin prometeu a seu povo reconquistar a Ucrânia que lhe seria devida e convocou a alta cúpula do país invadido a decapitar o governo `neonazista´ do judeu Zelensky e a implantar um novo, livre de `marginais drogados´. Contudo, caso o mundo continue de pé, é Putin que corre o risco não impensável, embora longínquo, de vir a ser ele o destronado pelos seus. O fim deste desmundo não está à vista".

Pena, Dorrit. O mundo todo já está sofrendo as consequências desta guerra, mas ninguém as sentirá mais, além do massacrado povo ucraniano, do que os russos, mesmo que Putin consiga dominar o seu território e proclame a vitória.

Angela Merkel, a ex-chanceler alemã, que conviveu por muito tempo com Putin nos grandes fóruns internacionais, o definiu como um "líder do século 19 agindo no século 21, um nacionalista disposto a anexar Estados soberanos numa era de direito internacional e globalização".

Ninguém pode viver, nem deve morrer de nostalgia. Uma nova geração de russos se formou já sob os governos de Putin, o mundo mudou e parece que só ele ainda não viu, como a Carolina do Chico. Em lugar de bombas e canhões, esse nosso mundinho tão machucado só quer um pouco de paz.

Em tempo: o autor deste texto é neto de russos e alemães, e filho de refugiados da Segunda Guerra, o primeiro da família a nascer no Brasil.

Vidas que seguem.