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Globo Rural em homenagem a Zé Hamilton: uma aula de Brasil e de reportagem

O jornalista José Hamilton Ribeiro, do Globo Rural: as manhãs de domingo não terão mais as belas histórias contadas pelo nosso repórter maior  - Divulgação/Globo
O jornalista José Hamilton Ribeiro, do Globo Rural: as manhãs de domingo não terão mais as belas histórias contadas pelo nosso repórter maior Imagem: Divulgação/Globo

Colunista do UOL

20/03/2022 13h28Atualizada em 21/03/2022 20h42

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Acabei de assistir agora ao Globo Rural deste domingo sobre a vida e a obra do jornalista José Hamilton Ribeiro, 86 anos e 66 de profissão, o mais premiado repórter brasileiro de todos os tempos, que virou uma lenda em vida. Foram 60 minutos de puro encantamento com o nosso país e a melhor profissão do mundo, como dizia Gabriel Garcia Marquez.

Escrever sobre essa rara e única figura de repórter é sempre um risco porque tudo já foi dito em verso e prosa. É mais ou menos como um crítico musical qualquer escrever sobre o significado da obra de um Beethoven ou de Chopin.

Mas fiquei tão encantado com a simplicidade do personagem que não poderia deixar de contar a vocês o que senti ao ver o resumo da ópera, a antologia de grandes reportagens do Zé Hamilton, o "Zé Parmito" de Santa Rosa de Viterbo, no interior paulista, onde essa história começou, tão bem conduzida pelo seu colega Nelson Araújo.

O que mais me impressionou foi a simplicidade com que o Zé vai relembrando o fazer de cada reportagem, da Guerra do Vietnã ao Pantanal, como se fosse um passeio pelo bosque, feito um pedreiro caprichoso que vai colocando tijolo sobre tijolo para fazer uma casa bem ajeitada, sem esperar elogios, porque esse é seu ofício.

Como sou seu velho amigo, poderia ligar e dizer isso diretamente para ele em sua fazenda de Uberaba (MG), onde agora descansa o esqueleto e a cabeça numa rede na varanda, depois de 41 anos de Globo Rural. "Deixa de bobagem...", ele responderia.

Quero compartilhar com vocês minha felicidade ao assistir a esta verdadeira aula de um Brasil digno e bonito, de um povo orgulhoso do seu trabalho, retratado em reportagens que fizeram história nas manhãs de domingo.

Zé Hamilton não entrevista as pessoas. Proseia com elas e com o telespectador ao mesmo tempo, revelando as conquistas e agruras do homem do campo, as suas pequenas alegrias e as grandes safras, histórias de árvores, de passarinhos e de todos os bichos da floresta, contadas como se fossem gente.

Sem ter a voz de um Cid Moreira nem pose de galã de novela, criou estilo próprio de reportar, em que você vai sendo informado sem perceber, pausadamente, para poder curtir as imagens de um país maravilhoso que ainda não foi destruído e dos seus singelos personagens, com sua cultura, sua culinária, seus sotaques.

Em cada trabalho, fica evidente, acima de tudo, a profunda paixão de Zé Hamilton pelo Brasil e seu povo, suas danças e suas músicas, a sua felicidade por estar naqueles lugares onde os repórteres não costumam ir para ouvir o que eles pensam da vida.

Saber ouvir é o maior trunfo do Zé Hamilton, que trata da mesma forma todos os personagens, graúdos ou miúdos, famosos ou anônimos, porque sabe que eles são as grandes estrelas das suas reportagens, e não o repórter da Globo.

"A reportagem está morrendo?"

Com o intervalo de 30 anos, nós dois fomos convidados para falar com os estudantes de jornalismo da PUC do Rio sobre o mesmo tema: "A reportagem está morrendo?".

Vira e mexe este tema aparece nos debates e eu sempre digo que, enquanto houver repórteres como José Hamilton Ribeiro, isso nunca vai acontecer, porque ele deixa seu exemplo para os que estão vindo depois de nós.

"Zé Hamilton é o melhor argumento para provar que a reportagem é um gênero literário, sim. Frases curtas, diretas, sem enfeites, cortando caminho sem atalhos para contar uma boa história sobre qualquer assunto para ser lida em qualquer época", escrevi na apresentação do seu livro "O repórter do século", um dos 16 que já publicou, que ele me deu a honra de prefaciar. "Lugares, personagens, boas histórias, seja no Rio, em São Paulo ou na Amazônia, contados e retratados neste livro, estão sempre à espera de um bom repórter, mas é preciso ir lá. Não dá para fazer reportagens como essas por telefone ou pela internet".

Na televisão, nos jornais e revistas também, texto e imagem precisam estar sempre muito bem casados. Durante o programa, o nosso repórter do século (passado e do atual também porque trabalhou até outro dia), destacou várias vezes a importância da equipe, o motorista, o repórter cinematográfico, os operadores de som e de luz, os produtores na retaguarda. Não por acaso, o Jorge dos Santos da câmera estava lá na fazenda gravando com ele o programa de despedida. Os dois são como uma boa dupla sertaneja, primeira voz e segunda voz bem afinadas.

Mais importante que tudo é ter liberdade para criar e trabalhar, ter o tempo e os recursos necessários, e nisso o Zé deu muita sorte ao encontrar no comando do Globo Rural o seu criador, o diretor Humberto Pereira (hoje substituído por Lucas Bataglin, da mesma escola), que pensam jornalismo como ele: um serviço de utilidade pública.

Para provar que não estou mentindo nem exagerando, se ainda não viram, corram para ver este programa Globo Rural no Globoplay. É verdadeiramente histórico!

Viva o Zé Hamilton!

Vida que segue.