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OPINIÃO

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"Apaixonado pelo Brasil", Elifas lutava para sobreviver sem parar de criar

Elifas Andreato - Estadão SP
Elifas Andreato Imagem: Estadão SP

Colunista do UOL

29/03/2022 15h17

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Toda vez que encontrava o Elifas, ele vinha me contar sobre um novo projeto que estava bolando: "Vai ficar muito bacana, não acha?"

Pouco mais velho do que eu, esse grande artista brasileiro parecia muito mais jovem, um eterno aprendiz, descobrindo um mundo novo a cada instante.

Podia ser uma capa de revista ou um novo jornal de sindicato, mais um cenário para teatro ou escultura de um troféu, o retrato de um amigo que já morreu, a música que acabou de compor, o cartaz de uma manifestação contra a ditadura ou a planta da reforma da sua casa no Embu das Artes, nome, aliás, bem apropriado.

Não por acaso, o nome dele é no plural.

Elifas Andreato não era apenas um, mas eram muitos, que atendiam pelo mesmo nome, um cara serelepe e incansável, sonhador e solidário, sempre disposto a encarar um novo projeto e ajudar um companheiro. Nem sei por onde devo começar a escrever sobre ele

Acho que nem o próprio sabia disso, mas descobri que esse seu nome tem origem no hebraico e significa "Tesouro de Deus".

O conjunto da obra desse múltiplo cidadão é mesmo um grande tesouro da nossa melhor arte, em suas diferentes formas, sem exagero de amigo.

Não digo isso porque ele morreu hoje, pois ainda não me conformo com a mensagem enviada pela sua filha nesta manhã de terça-feira:

"Olá a todos, aqui é a Laura, filha do Elifas Andreato. Muitos de vocês sabiam que nosso pai havia tido um infarte e se recuperava. Porém ontem ele teve uma complicação decorrente do infarte e infelizmente nos deixou".

Qualquer um, se por acaso ainda não conheceu seus trabalhos, pode provar o que estou dizendo nas várias antologias que publicou em vida, antes de chegar aos 76 anos, ainda lutando pela sobrevivência.

Como tantos outros da nossa geração, Elifas tinha que continuar trabalhando, para sorte nossa, não só porque amava o que fazia, mas para pagar as contas e dívidas no final do mês.

O maior desafio de quem nunca trabalhou só por dinheiro, e fica velho na profissão, é conseguir pagar o plano de saúde e botar comida na mesa. O nosso medo não é de morrer, mas de ficar doente. Outro dia perdi um outro grande amigo, o jornalista Ricardo Carvalho, que morreu porque estava sem poder pagar o seu plano, que era o mais barato da praça.

"Você não se programa para ficar velho, mas para morrer a gente se prepara", disse ele recentemente em depoimento para o documentário que estão produzindo sobre a sua carreira.

Sabia das dificuldades do Elifas desde quando fiz uma extensa reportagem com ele, publicada na revista Brasileiros (edição nº 27, de outubro de 2009), que saiu com este título aí de cima: "Apaixonado pelo Brasil". Em resumo, ele era isso.

A matéria começava assim: "Raras vezes na minha já longa jornada pelo jornalismo, tive a oportunidade de ouvir um depoimento tão contundente como este do Elifas Andreato, tamanha sua paixão pelo Brasil e pelo seu trabalho".

Os pais dele eram lavradores de café em Rolândia, no norte do Paraná, onde começou a trabalhar ainda menino. Seu primeiro emprego foi o de aprendiz de torneiro-mecânico na fábrica dos fósforos Fiat Lux, em São Paulo, onde sua vocação artística foi descoberta quando fazia a decoração das festas da firma.

De lá, foi para a Editora Abril, nos anos 1960, início de uma carreira em que se tornou um dos principais artistas gráficos do país pelas décadas seguintes. Entre capas de revistas, fascículos, jornais, cartazes, cenários e livros, assinou mais de 400 trabalhos antológicos, nos quais retratou praticamente todos os grandes nomes da nossa música popular. Foi ele também quem fez a capa do "Livro Negro da Ditadura Militar", o que lhe valeu anos de perseguição pela dita cuja.

Sem emprego fixo há muitos anos, com as encomendas de novos trabalhos rareando, Elifas foi criando suas próprias publicações, como o "Almanaque Brasil", uma revista de bordo da TAM, talvez sua obra em que mais se realizou. "Toda minha carreira foi dedicada à memória e à cultura do Brasil", resumiu ele no vídeo "Elifas Andreato no Coreto do Gereba". Nesse país sem memória, o almanaque morreu por falta de patrocínio, depois da morte do comandante Rolim, o fundador da companhia aérea.

Poderia passar o resto do dia aqui escrevendo sobre o amigo que morreu, mas o meu espaço acabou e o que eu queria dizer mesmo, é uma coisa só:

"Valeu, Elifas, obrigado".

Vida que segue para os que ficam.