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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Os yanomamis e o garimpo: a linha do tempo da destruição da terra indígena

Salvando um povo indígena que estava morrendo de fome: 78% das crianças yanomamis atendidas com desnutrição grave já ganharam peso - Divulgação/Ministério da Saúde
Salvando um povo indígena que estava morrendo de fome: 78% das crianças yanomamis atendidas com desnutrição grave já ganharam peso Imagem: Divulgação/Ministério da Saúde

Colunista do UOL

17/02/2023 12h29

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A catástrofe humanitária vivida pelo povo yanomami em Roraima foi anunciada pelo geólogo Breno Augusto dos Santos, uma das maiores referências brasileiras em mineração na Amazônia, há muito tempo _ desde que começou a trabalhar na região, em 1964, o ano que insiste em não acabar nunca para alguns militares que voltaram ao poder com o capitão Jair Bolsonaro.

Paulista de Olímpia, Breno foi para a região, pela primeira vez, logo após se formar em Geologia pela Universidade de São Paulo, em 1963. Trabalhou primeiro na ICOMI (Serra do Navio), depois na Meridional _ United States Streel, quando houve a descoberta da mina de Carajás, e Docegeo, subsidiária da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), onde chegou ao cargo de presidente, permanecendo na Amazônia até 1985.

Hoje com 82 anos, aposentado desde 1997, o geólogo continua dedicando grande parte do seu tempo a explicar em artigos e entrevistas como se deu o avanço da garimpagem na Amazônia, até se chegar ao genocídio do povo yanomami no governo passado, promovido pelo capitão e seus generais, legítimos herdeiros do regime militar de 1964, que patrocinou a invasão da garimpagem e dos desmatadores da floresta para garantir a "soberania nacional" na região.

A pedido desta coluna, Breno uniu num texto só, que reproduzo abaixo, alguns dos seus escritos para fazer um resumo da ópera desta grande tragédia brasileira. Para quem se interessar pela obra completa, recomendo ler o seu livro "Amazônia _ Potencial Mineral e Perspectivas de Desenvolvimento", lançado em 1981, vencedor do Premio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, um dos mais importantes da literatura nacional.

Somos amigos e nos correspondemos desde essa época, quando Breno era uma das minhas principais fontes para fazer reportagens em Carajás e Serra Pelada para a Folha. A coletânea destas reportagens está no meu livro "Serra Pelada _ Uma ferida aberta na selva" (Editora Brasiliense), com fotos de Jorge Araújo. Ainda pode ser encontrado nos sebos eletrônicos.

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Os yanomamis e o garimpo

Em 1976, o Projeto RADAM descobriu granitos no extremo oeste de Roraima, com mineralizações da cassiterita. A Docegeo, por ser a empresa de geologia da estatal CVRD, recebeu instruções do governo federal para requerer a área.

Mas a cassiterita não estava entre os objetivos de pesquisa da empresa e nada foi feito.

No governo Geisel, surgiram rumores de que a Docegeo poderia ser fechada. Foram tomadas várias iniciativas, uma delas, a de apresentar aos militares os resultados que já haviam sido obtidos, no Estado Maior das Forças Armadas, em Brasília.

Após a minha apresentação, um coronel da aeronáutica levantou-se, questionando que, no território que ele governava, a empresa não estava atuando, embora tivesse áreas em Surucucu.

Em dezembro de 1977, viajei para Roraima, para uma reunião com o governador, o coronel da Aeronáutica Fernando Ramos Pereira (todos os governadores dos antigos territórios na época eram militares) que queria a volta do garimpo.

Algum tempo antes, cerca de 500 garimpeiros haviam invadido a região de Surucucu, atrás de cassiterita, bastante valiosa naquela época. A Funai, com o auxílio da Polícia Federal, havia retirado os garimpeiros.

Atendendo ao governador, gravei uma entrevista para o jornal da TV local, onde deixei claro que a empresa iria iniciar as pesquisas geológicas, sem possibilidade do retorno do garimpo.

No dia seguinte, tive nova reunião com o governador. Estava muito contrariado, dizendo que eu não entendera nada da conversa anterior.

Com muito tato, respondi que havia entendido, mas que não havia possibilidade de retorno dos garimpeiros, tanto pelos danos que seriam causados aos yanomamis, como pelo fato de lá ser uma área com direitos minerários da empresa, que não podia ser invadida.

Após entendimentos com a FUNAI, em outubro de 1978, fiz a primeira viagem à região dos yanomamis, com a honra de ter como companheiro o jovem Davi Kopenawa, hoje um dos líderes mais atuantes e influentes da Amazônia.

Foram visitadas as áreas de Surucucu e da missão religiosa do Catrimani, apoiada por padres católicos.

Os estudos para a abertura da Perimetral Norte, que começou a ser construída e depois foi abandonada, em terra yanomami, mostravam o propósito do governo militar de ocupar a região. Mas logo seria constada a impossibilidade de continuação dos trabalhos sem causar enormes danos culturais e sanitários aos yanomamis.

A empresa desistiu então de seus direitos de pesquisa, recomendando que a região permanecesse isolada. Em 1981, publiquei o livro "Amazônia - Potencial Mineral e Perspectivas de Desenvolvimento".

No capítulo referente ao estanho, há forte advertência sobre os cuidados que deveriam ser tomados na região, em relação aos yanomamis, para que não fosse cometido um genocídio, o que infelizmente acabou acontecendo.

Hoje predomina a busca do ouro, além da cassiterita, com verdadeiras lavras clandestinas, que usam equipamentos pesados, como balsas e escavadeiras, além de aviões e helicópteros.

Por trás dessa atividade, há os donos, que financiam a lavra e ficam com quase todo o lucro. Muitas vezes, eles têm fortes ligações políticas, recebendo o apoio do governo de Roraima e até do governo federal.

A maioria dos trabalhadores dessas atividades corresponde a marginalizados sociais, sem outras opções de trabalho. Em Serra Pelada, o maior garimpo de ouro a céu aberto do mundo, descoberto em 1980, eram os "formigas"; em Roraima, são os "raizeiros" e os "jateiros". A figura romântica do garimpeiro com a sua bateia, muitas vezes divulgada na mídia, e que habita o imaginário das pessoas, há muito tempo deixou de existir.

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A maioria desses trabalhadores, como tem acontecido nos garimpos há mais de 50 anos, e agora nas lavras empresariais clandestinas, não passa de "bóia-fria", como acontece em muitos projetos do agronegócio.

Em Serra Pelada, correspondiam aos "blefados", que cavavam só no estéril, sempre na esperança de encontrar ouro, aprofundando o garimpo, e aos "formigas", simples carregadores de sacos, que trabalhavam praticamente apenas em troca de pela comida.

A equipe da Docegeo, desde o garimpo de cassiterita de Antonio Vicente, onde está hoje a vila de Taboca, no Xingu, e depois, principalmente, em Serra Pelada, constatou que o garimpo não passa na maioria das vezes de uma atividade capitalista clandestina, e muitas vezes ilegal, sem responsabilidade social, ambiental e fiscal. O velho garimpo, assim como a lavra clandestina de hoje, é antes de tudo um problema social.

Há no Brasil um contingente enorme de pessoas, grande parte sem preparo e marginalizada, que tem o trabalho no garimpo como opção de vida, como nas grandes cidades tem o tráfico e a milícia. São marginalizados sociais.

Os "formigas" da Terra Indígena Yanomami" são os "raizeiros" (que arrancam as raízes das árvores para a escavação) e os "jateiros" (que operam as mangueiras com jatos d' água para desmontar os barrancos).

Grande parte dessa mão de obra, como acontecia em Serra Pelada, é proveniente do Maranhão. A entrada das grandes fazendas de soja, no sul do Maranhão, acabou com as pequenas propriedades agrícolas, deixando pouca opção para os jovens que ali viviam.

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Ao mesmo tempo em que deflagrou. logo após a posse, uma grande operação para salvar da fome, do mercúrio e da malária os sobreviventes do povo Yanomami, uma população estimada em 30 mil indígenas, o novo governo de Lula precisa também preparar com urgência programas e projetos para um contingente quase igual de garimpeiros que estão sendo expulsos de lá pela força-tarefa.

Esse é o grande desafio daqui para a frente, caso contrário os garimpeiros certamente voltarão para invadir esta ou outras áreas indígenas demarcadas, como já se viu várias vezes. Para que isso não aconteça novamente, eles precisam encontrar outra forma para sobreviver de forma legal, fora da área indígena e respeitando o meio ambiente, e as tropas policiais e militares enviadas agora para a região deverão permanecer lá por tempo indeterminado, até que haja uma paz duradoura entre os povos da floresta.

Vida que segue.