Minha temporada como violinista do Titanic
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Acabo de entregar minha tese de doutorado. Em razão disso, passei a última semana numa espécie de estado alterado da mente, em quase absoluta alienação. Os efeitos do confinamento acadêmico superaram os do distanciamento físico.
Aqui, o lóqui-dau foi decretado pela necessidade de revisões, conclusões e considerações finais. Foram sete dias dormindo das 3h às 7h para dar conta dos arremates. Sou do tipo que deixa tudo para última hora - e não apenas a declaração do imposto de renda. Aluno aplicado, escrevi sem parar, nota após nota, afinado como se tocasse violino no convés do Titanic. Lá fora, o iceberg se aproximava.
É incrível o que faz uma semana no colapso de um país desgovernado.
Quando deixei para trás a realidade paralela e voltei a prestar atenção às coisas do mundo, a curva de contaminações e de mortes por coronavírus havia atingido um pico de 1.179 óbitos em 24 horas. Bolsonaro reagiu fazendo piada: "quem for de direita toma cloroquina, quem for de esquerda toma tubaína".
O Ministério da Saúde, por sua vez, publicou novo protocolo, em nota não assinada nem pelo ministro nem pelo presidente da República, sugerindo o uso de cloroquina também para o tratamento precoce da Covid-19, ou seja, observados os primeiros sintomas e sem a necessidade de testes.
A secretária de Cultura, Regina Duarte, aquela que foi sem nunca ter sido, voltou para São Paulo para ficar mais perto da família, com a promessa de assumir um cargo na Cinemateca que, li na Folha, nem sequer existe. Espero de coração que não resolvam enfiar a atriz no lugar da Olga Futemma, profissional com três décadas de experiência na coordenação da Cinemateca. No ministério, Regina Duarte deverá ser substituída pelo ator Mário Frias, ex-Malhação, que até ontem eu desconhecia (ainda bem que este breve perfil me salvou).
Também durante meu breve período de alienação involuntária, outra operação desastrada - ou melhor, criminosa - da Polícia fez mais uma vítima no Estado do Rio de Janeiro, dessa vez em São Gonçalo. O menino João Pedro, de 14 anos, obviamente preto, pobre e periférico, foi assassinado por policiais que irromperam na casa em que ele brincava com primos e, segundo relatos do presidente da associação de moradores do bairro e de um articulador da ONG Rio de Paz, dispararam mais de 70 tiros no local. Há algo de muito errado no combate ao tráfico e na forma como as polícias são formadas, treinadas e orientadas neste país. Quem deveria combater a violência é em grande parte produtora de mais violência. Três em cada quatro vítimas de homicídio no Brasil são negras, segundo o Atlas da Violência. Três em cada quatro vítimas da letalidade policial são igualmente negras. A letalidade policial responde por quase 15% dos homicídios cometidos no Brasil. Neste país, é provável que as balas sejam racistas. Qualquer outra explicação será sempre rechaçada pelas polícias e seus defensores.
Não bastasse tudo isso, fico sabendo que o governo federal suspendeu as multas por desmatamento ilegal na Amazônia, o que fez aumentar consideravelmente a área desmatada em comparação ao ano passado, e que o auxílio emergencial de R$ 600 continua não chegando a quem precisa.
Para concluir o choque de realidade, ainda me descobri no meio de um feriadão prolongado, decretado pela Prefeitura de São Paulo. A quarta-feira (20) virou Corpus Christi, normalmente celebrado em junho, e a quinta-feira (21) antecipou de novembro para maio o Dia da Consciência Negra. Sexta-feira vai virar ponto facultativo - ou seja, já era - e o governo do Estado cogita trazer o 9 de julho, o feriado mais vergonhoso e injustificável dos paulistas, para a próxima segunda (25).
Olha, estou pensando seriamente em retornar ao meu confinamento pró-alienação. Vou ali abrir uma tubaína para ver se passa enquanto não atingimos o iceberg.
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