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Camilo Vannuchi

Os 70% vão virar 40%?

31.mai.2020 - Ato a favor da democracia e contra o racismo aconteceu neste domingo na avenida Paulista, em São Paulo. O ato foi organizado por torcidas organizadas do Corinthians - Roberto Casimiro/Estadão Conteúdo
31.mai.2020 - Ato a favor da democracia e contra o racismo aconteceu neste domingo na avenida Paulista, em São Paulo. O ato foi organizado por torcidas organizadas do Corinthians Imagem: Roberto Casimiro/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

04/06/2020 23h53

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O Brasil é um país duplamente dividido. Um país dividido em layers, em camadas. Destaco duas delas. Numa primeira camada, divide-se em 70% de brasileiras e brasileiros antibolsonaro, de um lado, e os (quase) 30% de apoiadores do messias, de outro. Numa segunda camada, os percentuais são semelhantes, mas com outras cores e formatos: Somos 70% de antipetistas e 30% de petistas.

Trinta por cento, Camilo? Acho que você viajou.

Bom, pode ser, mas aqui eu me fio em pesquisa Ibope de preferência partidária realizada em agosto de 2018, semanas antes da última eleição presidencial, a primeira em quase vinte anos com derrota do candidato petista em ambos os turnos. Na ocasião, com a Lava Jato gozando de ampla popularidade, uma presidente cassada e um ex-presidente preso, 29% afirmaram preferir o PT, mais que a soma de todos os outros partidos citados. O segundo partido mais admirado era o PSDB, com 5%. Naquela eleição, Haddad somou 36,8% de votos no primeiro turno, confirmando o piso de 30%. Apesar da confluência de fatores aptos a contribuir para um resultado catastrófico.

Retomando o argumento, fato é que, neste caso, 70 + 70 não dá 140. Dá 40. E 40%, embora muito, não é um percentual capaz de mover montanhas. Nem presidentes.

Mas, Camilo, de onde você tirou esses 40%?

É simples. Vamos pegar esses dois grandes grupos, cada um com 70% da população. Obviamente, não são os mesmos. Para compará-los, recorremos àquilo que, mas aulas de matemática do ginásio, chamávamos de teoria dos conjuntos.

Imagine um primeiro círculo com um montão de gente dentro, cerca de 70% da população. Ali você encontra torcedores de diversos clubes de futebol, pessoas que se mantêm preferencialmente em casa durante a pandemia, brasileiras e brasileiros que difundem hashtags como #juntos e #somos70porcento, toda uma galera convencida de que a Terra NÃO é plana e que se autodeclara antifascista. Em geral, os manos e as minas dessa turma preferem se informar por meio dos veículos de comunicação, sejam eles da "mídia corporativa" ou da "mídia alternativa", a confiar nas mensagens de zap enviadas pelo tio do pavê e pela milícia digital que (ainda) sustenta o bolsonarismo. Invariavelmente, são chamados de comunistas - #somos70porcentodecomunistas? -, mesmo aqueles que, horrorizados com as ameaças, os impropérios e a crueldade do insólito inquilino do Alvorada, nem por isso deixaram de defender o Estado mínimo, a autorregulação do mercado e a austeridade como mola propulsora da recuperação econômica. Sim, essa turma existe, é numerosa e ainda assim quer distância de todo e qualquer negacionismo, elogio à tortura, pronunciamento homicida ou manifestação em apoio ao meliante entronizado no Alvorada.

E o outro círculo? O outro círculo você desenha um pouco à direita do anterior. Nele, pode colocar um montão de gente que tem ódio do PT. Cara, pode pôr gente aí. Sabe aquele povo que faz arminha com a mão? Entra. Os que preferem empunhar metralhadoras ou tacos de baseball também. Sabe a galera que faz pouco caso da pandemia, reproduzindo discurso de ódio nas redes e mais preocupada com a morte de tantos CNPJs do que com o homicídio de tantos CPFs? Pode pôr. Os 57 milhões que votaram no capitão e todos aqueles que não veem a hora de reeleger o alecrim dourado também estão contidos neste grupo. Sabe quem mais? Aquele defensor do Estado mínimo, que não suporta tanto imposto e uma arrecadação tão mal gerida, está certamente nesse grupo. Aquele que é a favor da política de austeridade, e que exatamente por isso não suporta nem ouvir falar em desenvolvimentismo ou em nova matriz econômica. E aquele que entende a corrupção como o câncer do Brasil e foi ensinado, por horas e horas de Jornal Nacional e pelo movimento Vem pra Rua (quem lembra?), que o PT é o partido mais corrupto do país.

E agora? Os 70% de antipetistas incluem os 30% de bolsonaristas. Os 70% de antibolsonaristas incluem os 30% de petistas. Mas é na intersecção desses dois conjuntos que mora o problema. Ou a solução, dependendo do ponto de vista. Fazendo uma conta rápida, se o grupo de antipetistas resolver ejetar os admiradores e defensores do alecrim dourado de suas hostes, sobrarão 40%. Eles poderiam se autoproclamar, por exemplo, antipetistas democráticos. Ou antipetistas antifascistas. Parece uma formulação coerente pra você? Esse grupo não é outro senão o dos antibolsonaristas de verde e amarelo, aqueles para os quais a bandeira jamais será vermelha. São os democratas contra a corrupção? Os democratas limpinhos?

Esses são 70%, mas são uma parte limpinha dos 70%. Eles não se misturam. Não admitem estar na mesma trincheira que uma presidente incompetente que mereceu cada adesivo sexista, cada afronta, cada batida de panela. Não admitem marchar ao lado de um político preso por 580 dias e condenado na Lava Jato por um juiz que cedeu ao bolsonarismo e foi cúmplice por mais de um ano de um governo higienista, violento, miliciano e que despreza as leis, a ciência, os direitos humanos, as relações internacionais e a dignidade humana. Eles preferem que ninguém use vermelho nas manifestações. Defendem que nenhuma bandeira de partido seja admitida. Porque partido é feio, é sujo. Se a bandeira for vermelha, então...

A verdade dói, mas os 70%, sem os 30% de petistas, caem para 40%.

A esquerda erra, e muito, ao achar que vitórias importantes são possíveis sem ampliar o debate, a pauta, o discurso, a estética e o modus operandi de modo a formar maioria, quiçá consenso, em torno do que é prioritário e urgente. Erra quando se esquece que 30% só vira maioria quando consegue atrair ao menos 20% do Centro. Erra, como ocorreu nos últimos dias, quando a maior liderança popular do país se recusou a assinar um manifesto quase insosso, repleto de boas intenções, concebido para agradar aqueles que normalmente fogem de manifestos, redigido para juntar intelectuais, globais e isentões. Erra ao depreciar um documento possível elaborado de forma estratégica para alcançar a meta a que se propôs e que é a única meta razoável neste momento: vencer o monstro.

Ao mesmo tempo, erram ainda mais as vestais que, na arrogância de suas castidades, desprezam as esquerdas, sobretudo as forças mobilizadoras representadas pelo PT e seu dileto MST, optando deliberadamente por suprimir 30% desse país dividido - o que significa quase 45% dos 70% - em nome de um delírio anacrônico que nega a política e os políticos, identifica os movimentos sociais organizados como coisa do passado, e tem a pretensão de emular em 2020 o levante branco, canarinho e "sem partido" dos que tomaram as ruas em 2016. Na ocasião, fustigaram um golpe que, para parte dessas mesmas pessoas, só foi escancarado dois anos depois, como bem assinalou recentemente o youtuber Felipe Neto. E, lamento dizer, chocou o ovo da serpente, eclodindo no que temos hoje.

Uns e outros deveriam estar mais preocupados em somar bandeiras do que em vetá-las. Salvar o país em 2020 e deixar para se digladiar em 2022, quem sabe. Porque os 70% precisam virar 90%, e não 40%. Com o Supremo, com tudo.