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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Às favas com os tratados internacionais e as instâncias superiores

O deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) - REUTERS/Ueslei Marcelino
O deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) Imagem: REUTERS/Ueslei Marcelino

Colunista do UOL

28/04/2022 00h10

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Difícil a vida de pai. A gente se esforça para transmitir aos filhos valores como gentileza e solidariedade, respeito às regras e às pessoas. Insiste em repetir que ofensas são intoleráveis, agressões são inaceitáveis e preconceitos são inadmissíveis. Explica que a vida em sociedade depende desses pactos, dessas convenções, e, de repente, vem o noticiário e crash blam cataploft: toda a argumentação desmorona.

Como explicar para as crianças que elas não devem agredir os colegas quando um deputado xinga um ministro do STF de bosta, de moleque, de filho da puta e mau caráter, e ainda menciona que qualquer cidadão seria inocentado se desse uma "surra bem dada" na cara de um dos membros da Suprema Corte, e nada acontece ao agressor? Ou pior: uma semana depois de ter sido condenado a oito anos e nove meses de prisão pelo pleno do Supremo, o agressor é eleito vice-presidente da Comissão de Segurança Pública e membro titular da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.

— Ele não vai ficar de castigo, papai?

— O presidente concedeu um indulto.

— O que é indulto?

— Ele foi perdoado, foi desculpado, entende?

— Mas quem precisaria perdoar não é o juiz que foi agredido? E ele pediu desculpas, pelo menos, para ser desculpado? A gente não pode falar essas coisas na escola, mas os deputados podem? Por que essa pessoa virou deputado?

E como ensinar aos nossos filhos que tortura é algo brutal, bárbaro, escandaloso, quando eles olham para o lado e se deparam com episódios reincidentes de banalização da tortura? "Só foi torturado quem mereceu", afirmou um deputado estadual do Paraná em tribuna na última segunda-feira (25). "Garanto que não estragou a Páscoa de ninguém; a minha, não estragou", declarou o presidente do Supremo Tribunal Militar, no dia 19, sobre a notícia de que um conjunto com 10 mil horas de audiências gravadas nos anos 1970 comprova que a prática de tortura contra presos políticos durante a ditadura militar era de amplo conhecimento daquele tribunal, que nada fez para interrompê-la. Dias antes, um filho do presidente da República havia debochado da tortura sofrida por uma jornalista.

— Quem mereceu ser torturado?

— Ninguém merece ser torturado.

— Nem quem cometeu crime?

— Nem eles. Esses devem ser punidos conforme a lei, e nenhum lei prevê a tortura como uma modalidade de pena. Mesmo assim, para ter alguma punição, precisa ter julgamento, precisa confirmar que ela cometeu mesmo aquele crime. Tortura, jamais.

— E esses deputados não sabem disso? Nem esse homem que disse esse lance da Páscoa?

— Sabe. Só que ele não é uma pessoa justa.

— Poxa, mas ele não é juiz?

Quando parece que o noticiário deu uma acalmada, que teremos uma trégua, shazam! Ficamos sabendo que um cara muito rico comprou o Twitter por uma quantia que seria suficiente para acabar com a fome no mundo, que a inflação atingiu em abril o recorde para o mês desde a implementação do Plano Real, em 1994, que além de cozinhar com lenha o povo está voltando a andar preferencialmente a pé em razão do preço do combustível, e que o ministro da Educação disparou uma arma num aeroporto.

— Por que o ministro da Educação tem uma arma, papai? Ele não deveria dar o exemplo e ser da turma do "mais livros, menos armas"?

— Pois é.

No Brasil, nada acontece. Um ministro negocia verbas no mercado paralelo a fim de favorecer uma igreja e, na semana seguinte, dispara um tiro no aeroporto. Um deputado defende tortura e outro ofende a vítima. Militares que praticaram crimes - alguns deles de lesa humanidade e imprescritíveis - são sistematicamente protegidos por um tribunal que não deveria existir. E nada acontece. Nada acontece.

Pesquisadores que estudam os regimes republicanos costumam usar a expressão "freios e contrapesos", emprestada do francês Montesquieu, para qualificar a coexistência de três poderes distintos num mesmo Estado: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Além de terem funções diferentes, cada um atuando de determinada maneira e com prerrogativas específicas, esses poderes também operam de modo a descentralizar as decisões, evitando a ascensão de um poder absoluto, como observado em outros momentos da história e em outros países. O presidente da República, por exemplo, figura mais próxima do imaginário do monarca, não pode criar leis, por exemplo. Ele pode sugeri-las, mas a deliberação, mediante emendas, acréscimos e supressões, é de outro poder, o Legislativo, que deve atuar com independência (e com parcimônia, este colunista acrescentaria). De forma análoga, quem executa o que está previsto no regramento e o transforma em políticas públicas é a Presidência. Garantir o cumprimento das leis, por sua vez, não cabe nem ao Legislativo nem ao Executivo. Para isso existe o poder Judiciário.

E quando esses poderes já não exercem o papel de freios e contrapesos? E quando decisões da corte suprema são solenemente ignoradas, ou debochadamente rasgadas, por um presidente obtuso e inadequado? E quando tratados internacionais são sistematicamente ignorados?

Veio do colega Jamil Chade a informação de que o Comitê de Direitos Humanos da ONU concluiu que o juiz Sérgio Moro foi parcial ao julgar e condenar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá. Muitos de nós já sabíamos disso havia muito tempo. Diversos juristas alertaram à época, outros precisaram esperar a "vaza jato", o escândalo do vazamento de conversas que demonstraram o jogo combinado entre a promotoria e a vara de justiça da Lava Jato com a finalidade explícita - e vergonhosa - de condenar o réu a qualquer preço, valendo-se de expedientes imorais e ilegais. Fato é que, agora, seis anos após a defesa de Lula encaminhar uma representação ao órgão, os dezoito peritos que integram o comitê da ONU deliberaram pela ilegalidade da condenação do ex-presidente. Cabe ao comitê supervisionar o cumprimento do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, assinado e ratificado pelo Brasil. Neste caso, os peritos entenderam que Lula teve seus direitos violados: na condução coercitiva, no julgamento parcial, na divulgação de conversas telefônicas privadas e no veto à sua candidatura em 2018.

A decisão tem poder vinculante, ou seja, a Justiça brasileira tem o dever de acatá-la. Mas não há como obrigá-la. Os Estados que compõem a ONU, bem como aqueles que firmaram o pacto, são soberanos em seu ordenamento: descumprir uma orientação vinda de Genebra pega mal, mas não vai muito além disso.

— Mas, papai, o Lula ficou todo aquele tempo preso sem motivo?

— Olha, se ele tinha motivo para ser preso, certamente não era o triplex no Guarujá. Nem poderia cumprir uma sentença daquele juiz que o condenou.

— Mas, papai, ele poderia ter sido candidato em 2018?

— Pois é.

— E o que vai acontecer com os moços que tramaram sua prisão?

— Não sei.

— E o que vai acontecer com o Lula?

— ...

— Papai?

— Err... posso te responder no fim do ano?