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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O dia em que Lula festejou o casamento numa cantina italiana

1974 - Apenas com bigode, Lula registra em cartório o casamento com Marisa Letícia da Silva (esq.) - Reprodução
1974 - Apenas com bigode, Lula registra em cartório o casamento com Marisa Letícia da Silva (esq.) Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

19/05/2022 04h00

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Essa aconteceu lá atrás, em 1974, também em maio. Lula não era ex-presidente da República nem candidato a nada. Apenas no ano seguinte, viria a disputar, com êxito, a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, na região metropolitana de São Paulo. O PT ainda não havia sido criado, o país vivia as agruras do bipartidarismo imposto pela ditadura, e as eleições diretas para presidente não passavam de um sonho distante.

A noiva de Lula chamava-se Marisa Letícia e trabalhava como inspetora de alunos numa escola estadual do Bairro Assunção. Antes disso, tinha sido babá dos 9 aos 13 anos e operária numa fábrica de doces dos 14 aos 19, quando se casou pela primeira vez. Marcos Cláudio, o primeiro marido, foi assassinado no táxi em que trabalhava, em 1970, deixando a esposa grávida de quatro meses.

Lula também era viúvo quando os dois se conheceram. Lourdes, a primeira namorada e primeira esposa, morrera de uma combinação explosiva de infecção, hepatite e negligência médica quando estava grávida de oito meses, em 1971. A criança também não resistiu.

Tanto Marisa quanto Lula ainda pelejavam para elaborar o luto, cada um à sua maneira, quando se encontraram, ele com 27 anos e ela com 23, em meados de 1973.

No início, descartaram qualquer hipótese de casamento. Os dois já tinham tido essa experiência. Sentiam-se calejados e permitiam-se a ideia de continuar como estavam, cada um em sua casa, encontrando-se e se conhecendo melhor. Marisa era mãe solo de um garoto de 2 anos, Marcos Cláudio como o pai, e resistia a embarcar numa aventura que lhe pudesse custar a independência e a segurança, sobretudo emocional. Seis meses depois, estavam de casamento marcado.

Só no civil

Marisa e Lula se casaram no dia 23 de maio de 1974, no 1º Cartório de Registro Civil da comarca de São Bernardo do Campo. Era uma quinta-feira de manhã, e pouquíssimas pessoas estavam presentes: Nelson Campanholo, seu colega na diretoria do Sindicato, e a esposa, Carmela, foram os padrinhos. Além deles, estiveram presentes a mãe de Lula, Dona Lindu, a mãe de Marisa, Dona Regineta, o filho Marcos, o juiz de paz José Antonio de Oliveira, e o escrevente. Os irmãos não foram: estavam todos trabalhando. O matrimônio foi lavrado no livro B-97, folha 59, sob o número 24.098.

Não houve cerimônia religiosa. Embora a tradição católica facultasse aos viúvos a possibilidade de contrair segundas núpcias, Lula e Marisa não julgaram necessário, optando tão somente pela discreta cerimônia civil. Apenas quatro anos depois, em 1978, quando foram batizar o filho Sandro na histórica igrejinha de Santo Antônio do Bairro dos Casa, mais tarde tombada pelo patrimônio histórico municipal, o padre responsável pelo batizado aproveitou a ocasião e ofereceu o sacramento de presente.

Em 1974, por volta do meio-dia daquela quinta-feira de maio, o pequeno grupo deixou o cartório e tomou a Rodovia Anchieta em direção à represa Billings. Havia uma mesa reservada para os noivos e seus convidados na Cantina do Pintor, um restaurante italiano localizado no Riacho Grande, distrito de São Bernardo. A especialidade da casa era o frango na panela de barro.

Champanhe ou sidra?

Nenhuma coluna social registrou o evento. Se beberam guaraná, cerveja ou vinho, se houve brinde com champanhe ou sidra, se alguém reclamou não ter sido convidado, se alguém ficou de pileque, não se sabe. Tampouco o nome do costureiro ou da costureira que cerziu o vestido da noiva. Eram tempos de pouca grana e muita liberdade: qual jornal se interessaria em seguir os passos de um torneiro mecânico lotado numa diretoria sem nenhum glamour num sindicato sem importância?

Essa fase durou pouco, muito pouco. Eleito presidente do Sindicato dos Metalúrgicos no ano seguinte, Lula colocou um pé na vida pública para nunca mais tirar. O outro pé foi colocado em 1979, na primeira das duas grandes greves que o alçaram ao posto de maior liderança popular do século XX e importante artífice da redemocratização. No ano seguinte, Lula fundaria o maior partido político de esquerda do país.

Desde então, Lula e família convivem com um assédio jamais superado, até hoje, em volume de notícias e em duração, por nenhum político ou artista. São 40 anos em evidência. Rara a edição da Folha de S.Paulo ou do Globo que não traga seu nome impresso ao menos uma vez.

O preço do assédio

O preço disso é alto. Já em 1980, quando Lula foi preso pela primeira vez, enquadrado na Lei de Segurança Nacional por conspirar contra a ordem pública convocando greves, circularam boatos de que ele não havia sido preso para valer, uma vez que o então chefe do DOPS, Romeu Tuma, permitia a ele ler os jornais e receber visitas a qualquer hora do dia.

Em 1982, panfletos apócrifos acusaram Lula de ser dono de uma casa de veraneio no Guarujá. Pois é, a Lava Jato não foi muito criativa nesse sentido. No mesmo ano, matéria do jornal O Estado de S. Paulo repercutiu a teoria de que Lula e Marisa, na verdade, não residiam na casa em que diziam residir, num bairro operário de São Bernardo, mas numa mansão no Morumbi, então um bairro em franco processo de povoamento pela elite em ascensão.

O auge da fixação da imprensa por Lula e esposa se daria durante a Lava Jato, quando parte significativa dos jornais e jornalistas atuou como menino de recados do juiz Sérgio Moro, colaborando para uma devassa sem precedentes na vida íntima de Lula e Marisa, esmerando-se em ecoar, por horas a fio, gravações de conversas pessoais, cuja divulgação foi autorizada sem que nada justificasse tal feito.

Tititi

Nos últimos dias, o assédio voltou com força graças ao terceiro casamento de Lula, desta vez com a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, celebrado em São Paulo na noite de quarta-feira (18/5). Tudo é motivo para tititi. Uma festa para 150 convidados foi tratada como superprodução em muitos portais. Um colunista classificou como "ostentação" o cardápio de bebidas, omitindo que o espumante citado na matéria é nacional e que o tinto é um malbec argentino de dois dígitos.

Ex-presidente Lula e a socióloga Rosângela da Silva, conhecida como Janja - Ricardo Stuckert/Instagram - Ricardo Stuckert/Instagram
Ex-presidente Lula e a socióloga Rosângela da Silva, conhecida como Janja
Imagem: Ricardo Stuckert/Instagram

A intriga maior, ao longo de pelo menos uma semana, ficou por conta da lista: quem são os familiares e os políticos que ficaram de fora? Que tipo de noivo sem coração deixa de convidar os sobrinhos? Alckmin foi convidado e Suplicy não?

Colorações ideológicas à parte, é um alívio saber que as notícias sobre Lula poderão se concentrar novamente nos temas que de fato interessam ao país, sobretudo em ano eleitoral. Ufa.

É igualmente urgente que nossa crônica social e política deixe de tratar esposas e companheiras de presidentes, governadores, prefeitos e candidatos como bibelôs de campanha ou pessoas públicas. Elas não o são. Desde que não resolvam fazer pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão, subverter o patrimônio arquitetônico dos palácios presidenciais, promover nepotismo ou receber cheques de origem duvidosa, elas não têm nada de virar protagonista. Eu, hein.