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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Hotel Cambridge agora é Residencial Cambridge: festa na ocupação!

Carmen Silva, liderança do Movimento Sem Teto do Centro: uma década à frente da ocupação no antigo hotel  - Fernando Moraes/UOL
Carmen Silva, liderança do Movimento Sem Teto do Centro: uma década à frente da ocupação no antigo hotel Imagem: Fernando Moraes/UOL

Colunista do UOL

19/01/2023 04h00Atualizada em 19/01/2023 07h47

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Começo com um comentário que, aparentemente, pouco tem a ver com o tema desta coluna: você já reparou que as palavras são carregadas de valores e preconceitos? As faculdades de jornalismo deveriam oferecer pelo menos uma aula, ainda no primeiro semestre, sobre as implicações ideológicas de certas expressões. Cem minutos bastariam para chamar atenção das novas gerações para esse aspecto da nossa profissão.

Devemos usar índio ou indígena? Homossexualidade ou homossexualismo? Esquerdista ou de esquerda? Golpe ou impeachment? Manifestante ou terrorista? Pode reparar: há uma miríade de termos que abundam na imprensa cujo uso jamais é neutro.

Anos atrás, quando fiz doutorado, dediquei um capítulo inteiro a analisar o emprego de duas nomenclaturas distintas na grande imprensa (ou teria sido na imprensa corporativa burguesa): controle ou democratização da mídia? Ambas eram expressões "editorializadas", empregadas nos jornalões para qualificar o que poderia ser chamado simplesmente de regulação da mídia. Controle é palavra usada por quem é contra a regulação. Democratização é usada por quem é a favor dela.

Ora, se uma legislação terá o condão de democratizar ou o vício de controlar os meios de comunicação, isso vai depender dos artigos sancionados e, principalmente, do seu emprego na prática. A mera existência de uma regulação — ou, no caso, sua modernização — não faz dela uma coisa nem a outra.

Mas, voltando ao nosso ponto: ainda foca na profissão, notei que repórteres e âncoras se dividiam em duas categorias de jornalistas, os que noticiavam invasões de terra e os que noticiavam ocupações de terra. A mesma distinção se aplicava aos prédios abandonados que se transformavam em pouso emergencial para quem não tinha onde morar: tais imóveis eram invadidos ou ocupados?

A escolha do termo precedia qualquer apuração sobre a situação cartorial do imóvel ou qualquer investigação para conferir se o local cumpria a função social da propriedade, uma exigência da Constituição. Tratava-se, antes, de uma orientação editorial, algo estabelecido no manual de redação do veículo, quando não estivesse arraigado por completo na cultura política daquele profissional. Nunca mudou.

Cresci nos anos 1990 e testemunhei, pelos jornais, dezenas de ocupações lideradas pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Até uma fazenda ligada ao então presidente Fernando Henrique Cardoso foi invadida na época — fazendas de presidentes da República são sempre invadidas nos jornais, jamais ocupadas, principalmente aqueles que gozam de generosas fatias da publicidade oficial.

De minha parte, descobri que eu era do tipo que passaria o resto da vida escrevendo ocupar. E homossexualidade. E indígena. E golpe. Para mim, liberdade de expressão não é liberdade de destruição. E mito é Remo e Rômulo alimentados por uma loba, é Ulisses preso ao mastro para evitar as sereias, é Antígona lutando para enterrar o irmão.

Então você nunca usa a palavra invasão? Claro que uso! São coisas diferentes. Invasão é entrar numa casa para furtar as TVs, os computadores, as joias e ainda raspar o cofre. Invasão é arrombar a porta de um prédio público, um palácio, a fim de quebrar vidraças, destruir um relógio bicentenário, esfaquear telas modernistas, suprimir esculturas, roubar equipamento fotográfico, cagar diante das câmeras e passar vergonha nos telejornais da noite e na internet.

Ocupar é diferente. Ocupar é reivindicar o que é direito, e não o oposto disso. Ocupar é lutar para que a terra seja sempre produtiva, para que o trabalhador possa transformar suor em alimento, forjar do trigo o milagre do pão. Ocupar é pressionar para que as escolas sejam locais de aprendizado e troca. Ocupar é garantir que as crianças cantem livres. É celebrar que ministérios sejam ocupados por negros e negras, por indígenas, por gente das águas, das matas, dos morros e da roça. Ocupar é repetir que existimos e somos importantes uns para os outros. Que eu sou porque nós somos. Que nunca mais sem nós. Ocupar é teimar, é inventar um futuro quando tudo à volta parece dizer não.

Os diversos movimentos de trabalhadores sem terra e sem teto compartilham dessa mesma estratégia de ocupação: uma estratégia legítima, pacífica, essencialmente reivindicatória.

Ocupar é uma forma de chamar atenção para a gravidade da situação e pressionar o poder público a agir. Não há lei, princípio moral ou versículo bíblico que justifique amplas extensões de terra permanecerem improdutivas por décadas, ou subaproveitadas, enquanto o campo está cheio de pessoas precisando trabalhar na terra para produzir alimentos e gerar riqueza. Não há lei, princípio moral ou versículo bíblico que justifique um prédio inteiro ficar vazio, abandonado, criando ratos, por dez ou vinte anos, sem que o poder judiciário se prontifique a garantir a função social da propriedade numa cidade em que 32 mil pessoas não têm onde morar. Ocupar é dar o primeiro passo. É dizer: se ninguém vai usar este espaço, nós o reivindicamos. Se ninguém vai usar este espaço, que ele seja desapropriado e convertido em habitação de interesse social.

No início dos anos 2000, o Hotel Cambridge se tornou um dos mais emblemáticos prédios abandonados do centro de São Paulo. Luxuoso nos anos 1950, o imóvel chegou ao final dos anos 1990 em franca decadência e com uma frequência que em nada lembrava a de três ou quatro décadas antes. Aos poucos, o hotel foi deixando de funcionar, mantendo por algum tempo apenas um andar, convertido num amplo salão de baile, que sediou festas icônicas, muitas delas dedicadas a um revival de músicas de gosto duvidoso dos anos 1980. Alguém aí esteve em alguma edição da Trash 80's? Depois veio a Gambiarra. Quando também as festas acabaram, o imóvel ficou vazio. Um baita prédio, que já tinha sido um hotel grã-fino, estava fadado a ruir. Ninguém apareceu para comprá-lo. Ninguém o alugou.

"Quem não luta tá morto", diz o lema — ou um dos lemas — do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). Em 2012, o grupo ocupou o Hotel Cambridge. Se vocês não tomam a iniciativa, nós tomamos. Se nenhum governo tem a dignidade de desapropriar esse edifício e destiná-lo à moradia social, então nós ocuparemos o espaço e cobraremos respostas do poder público até recebermos a escritura.

O Hotel Cambridge começou a renascer ali. À frente da ocupação, Carmen Silva foi se firmando como uma liderança combativa, zelosa das regras e pouco disposta a anistiar. Limite de horário para chegar, mensalidade cobrada dos moradores para cobrir as despesas comuns, batalhas jurídicas para regularizar o imóvel, reuniões frequentes para politizar o grupo e renovar a resistência. Em 2019, Dona Carmen, como é conhecida, chegou a ser presa, acusada de extorsão pelo Ministério Público, supostamente por ter expulsado da ocupação moradores que não quiseram ou puderam pagar a taxa cobrada pelo MSTC.

Dona Carmen fez o que sabe fazer melhor: resistir. Quem não luta tá morto, lembra? Demorou, mas a líder da ocupação foi solta. Coincidentemente, Lula também estava preso naquela época e seria igualmente solto meses depois. Nota mental: é preciso ocupar o judiciário, o Ministério Público e os Tribunais Regionais Federais.

O filme "Era o Hotel Cambridge", dirigido por Eliane Caffé e lançado em 2016, colocou Carmen em evidência e atraiu uma porção de pessoas solidárias à sua luta. Muitas delas passaram a se encontrar nos fins de semana em outra ocupação do MSTC, a poucos metros dali. Danças, festas, almoços colaborativos, shows, debates, aulas abertas e lançamentos de livros tornaram afetuosamente pujante a agenda cultural na Ocupação 9 de Julho, provida de um pátio e de um amplo espaço coletivo.

Na primeira vez que estive lá, em 2019, fiquei fascinado ouvindo textos de Carlos Marighella lidos em voz alta pela cantora Juçara Marçal, uma pletora de força e inspiração da mesma cepa de que são feitas Carmen e sua filha Preta, outra que não foge à luta.

Não muito antes daquele dia, o escritor Julián Fuks havia passado três meses no Cambridge, convidado a participar de uma residência artística, e sintetizou muitos dos seus sentimentos no livro "A Ocupação", um belo trabalho com um pé na auto-ficção, outro no ensaio e um terceiro na reportagem experiencial, não muito distante, no estilo (e na respiração e suspensão), de seu livro anterior, "A Resistência". Como dístico, é alvissareiro juntar resistência e ocupação lado a lado na mesma prateleira, como tomos de um mesmo título. Seria a Resistência irmã siamesa da Ocupação? Quem não luta tá morto!

"A literatura não me interessa em nada. Só o que me interessa é a abertura para o diálogo", afirma um personagem do livro de Fuks. Najati é um refugiado sírio, como são tantos os refugiados nas ocupações de São Paulo, em especial no Hotel Cambridge.

Para Carmen, são todos um pouco refugiados nas ocupações: os que se refugiaram porque deixaram seus países e os que, excluídos pela sociedade, também juntam os cacos, os troços, os trapos, e tratam de improvisar algum refúgio do jeito que dá.

Em janeiro de 2023, as palavras de Najati soam como oração. A verdade é que, desde a residência artística de Fuks e até o final do ano passado, o Brasil piorou em progressão geométrica. Diálogo, esse bicho cobiçado pelo refugiado sírio, virou artigo de luxo — e artigo importado, uma vez que a produção nacional de diálogo sucumbiu ao ponto de estrangulamento, que é quando a indústria não dispõe de uma das matérias-primas em quantidade suficiente. Só aos poucos retomaremos a produção normal de diálogo. Amém.

Talvez por isso a notícia da entrega das escrituras seja tão inspiradora uma semana após a invasão bárbara na Esplanada dos Ministérios. Quatro anos após o início da ocupação, a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab) providenciou a desapropriação do hotel e transferiu o imóvel para o MSTC com o compromisso de transformá-lo num conjunto habitacional de interesse social. O programa Minha Casa, Minha Vida Entidades, encerrado no governo Bolsonaro, foi o que permitiu ao movimento obter o dinheiro e as garantias para fazer a reforma necessária e para que os novos proprietários conseguissem financiar seus apartamentos em prestações viáveis.

São 121 famílias instaladas em unidades de até 58 metros quadrados. Cada uma delas quitará o valor do imóvel em até dez anos, em prestações que variam de R$ 80 a R$ 400 conforme a metragem e a renda. Hoje, o prédio de 11 andares, com parede creme e janelas quadradas, emolduradas em vermelho escuro, entrada gradeada e rampa de acesso para as pessoas com deficiência, confere sentido a cada peleja e a cada gastura enfrentada pela turma de Carmen nos últimos dez anos.

Que continuem ocupando — corações e mentes — enquanto os do lado de lá invadem e destroem. Promovem encontros e diálogo — em árabe, castelhano, guarani ou crioulo. E resistem. Quem não luta tá morto, parça.