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Camilo Vannuchi

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Junho de 2013 teve fotógrafo cego e repórteres presos por portar vinagre

Fotógrafo Sérgio Silva perdeu o olho esquerdo ao ser atingido por uma bala de borracha disparada por um PM de SP em 13 de junho de 2013 - 05.dez.2013 - Junior Lago/UOL
Fotógrafo Sérgio Silva perdeu o olho esquerdo ao ser atingido por uma bala de borracha disparada por um PM de SP em 13 de junho de 2013 Imagem: 05.dez.2013 - Junior Lago/UOL

Colunista do UOL

15/06/2023 04h00

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O fotógrafo Sérgio Silva tinha 31 anos quando parou por um instante no cruzamento da rua da Consolação com a rua Caio Prado, na região central de São Paulo, para conferir pelo display da câmera as fotografias que havia acabado de fazer. Nelas, policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), batalhão de elite da polícia paulista, abriam fogo contra manifestantes que subiam rumo à avenida Paulista e protestavam contra o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus e metrô.

Era noite de quinta-feira, 13 de junho, e a violência estatal buscava cumprir a missão de dispersar o ato para que os supostos arruaceiros não chegassem à praça do Ciclista. O gás lacrimogêneo cobria a Consolação de uma névoa irritante, um London fog insuportável, enquanto balas de borracha riscavam a neblina. Sérgio viu quando soldados reunidos na margem oposta da Consolação começaram a atirar bombas contra um grupo de jornalistas e, de longe, capturou a cena. O impacto veio em seguida, assim que ele baixou a câmera. O olho esquerdo, embotado de indignação e sangue, em meio à dor, ao desespero, à fumaça, já não via mais nada.

Que tiro foi esse? Que bala é esta que, disparada para o alto ou para o chão como manda o protocolo dos agentes de segurança pública em situações semelhantes, singra a neblina na altura do olhar de um homem com mais de 1,70 metro?

Sangue nos olhos, Sérgio caminhou por alguns quarteirões em direção ao hospital mais próximo, o Nove de Julho, e foi socorrido no caminho. De lá, foi transferido de madrugada para o Hospital dos Olhos, no Paraíso, onde passou parte da manhã na mesa de cirurgia. A visão do olho atingido pela PM não pôde ser preservada.

Na mesma noite em que o fotógrafo teve a visão roubada por agentes do Estado que deveriam protegê-lo, foram disparadas 178 balas de borracha segundo a Corregedoria da Polícia de São Paulo. O número real pode ter sido o dobro. Uma das balas, disparada contra jornalistas reunidos na avenida Angélica, atingiu o rosto de Fábio Braga, enquanto uma terceira acertou o olho direito de Giuliana Vallone, ambos repórteres da Folha.

Uma fotografia de Giuliana, com sangue escorrendo pelas bochechas, foi feita no calor da hora por um colega do Estadão, Diego Zanchetta, e ilustrou a parte inferior da primeira página da Folha do dia seguinte. A jornalista contou ter visto o policial mirar seu rosto. "Jamais imaginei que ele fosse atirar", disse.

A atuação dos policiais, em tudo abusiva e desproporcional, parecia responder com fidelidade canina a um clamor da burguesia paulista — os cidadãos de bem de sempre —, mais incomodada com os danos ao patrimônio do que com violência institucional e violações de direitos.

Tal clamor, diga-se, fora vocalizado naquele mesmo dia no próprio jornal em que Giuliana e Fábio trabalhavam. "É hora de pôr um ponto final nisso", propunha o editorial "Retomar a Paulista", conforme lembrou reportagem recente publicada na Revista Fórum. "Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer valer as restrições já existentes para protestos na Avenida Paulista, em cujas mediações estão sete grandes hospitais", orientava o jornal.

Repórter da revista Carta Capital, Piero Locatelli cobria o protesto a poucos metros dali quando foi preso e conduzido a uma delegacia por portar vinagre na mochila. Vinagre. Desde que os protestos contra o reajuste nas passagens haviam despertado a ira da guarda imperial comandada pelo Palácio dos Bandeirantes, ativistas divulgavam o uso do vinagre como antídoto caseiro aos efeitos do gás lacrimogêneo.

Em caso de bombas em profusão, cheirar um pano embebido em vinagre poderia reduzir a náusea, a coceira, a irritação da mucosa, a dor de cabeça e a asfixia que tal arma não letal é capaz de causar. Segundo os policiais, vinagre é utilizado na produção de bombas caseiras, o que motivou a prisão, atualizando o festival de besteiras que assola o país há mais de 500 anos.

A carnificina foi pior na segunda-feira seguinte, 17 de junho. O número (oficial) de balas de borracha empregadas para reprimir os protestos quadruplicou. A imprensa tradicional passou a cobrir os protestos de dentro das redações. Intimidada e acovardada, poupando o governo do Estado e o poder judiciário, essa imprensa dita corporativa foi incapaz de explicar corretamente a tática black bloc, reagir com ênfase à truculência da repressão ou refletir sobre a dispersão da pauta, antes circunscrita à defesa da gratuidade do transporte público em São Paulo.

Agora, o que ocupava as manchetes era um conjunto de reclamações de caráter nacional. Os ativistas deixaram de ser "vândalos" para se converterem, segundo o noticiário, em cidadãos insatisfeitos no pleno exercício do direito de manifestação. Instrumentalizado pela direita política, o movimento degenerou em palavras de ordem como "não vai ter Copa" e resultou, em questão de dias, numa queda sem precedentes da popularidade de Dilma Rousseff, que não era baixa antes do início do circo: sua aprovação cairia de 57% para 30% entre o primeiro e o último dias de junho segundo o Ibope.

Paulo Arantes chamou os protestos de 2013 de jornadas de junho, uma referência às jornadas revolucionárias que tomaram Paris em 1848, de origem operária e socialista. O mesmo filósofo não tardou a apontar as diferenças estruturais entre elas. No senso comum, no entanto, sobretudo após o episódio em que ativistas escalaram o prédio do Congresso Nacional, ficou o élan do protagonismo das massas, a simbologia da emergência da expressão popular de braços dados com a antipolítica. Vamos pra rua, dizia-se. O gigante acordou, exaltava-se. No longo prazo, no entanto, os efeitos não foram em tudo positivos como a maioria imaginava.

Sérgio Silva, o fotógrafo que perdeu a visão do olho esquerdo por levar um tiro da polícia enquanto cobria uma manifestação, luta até hoje por reparação. Passados dez anos, ele convive com as sequelas da violência da qual foi vítima, entre elas a perda de noção de profundidade, tão importante na sua profissão, e perdeu em primeira e segunda instâncias os processos que moveu, muito acertadamente, na esperança de responsabilizar o Estado e receber uma indenização.

Segundo juízes e magistrados, Sérgio é culpado por ter levado um tiro na esquina da rua da Consolação com a Rua Caio Prado (se Caio Prado soubesse...). A cadela do fascismo está sempre no cio, dizia Bertold Brecht.

Os argumentos que embasaram as sentenças beiram a psicodelia. Segundo um dos juízes, o fotógrafo teria "escolhido" permanecer no meio do tiroteio. Quem mandou? Outro argumento foi o de que não há prova de que o ferimento em seu olho tenha sido realmente provocado por uma bala disparada pela PM. Claro, deve ter sido provocado pela profunda decepção diante de um cenário catastrófico de injustiça, autoritarismo, ódio e violência de Estado. De fato, erramos quando chamamos o Poder Judiciário de Justiça. Justiça é outro troço.