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Carlos Madeiro

REPORTAGEM

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Justiça refuta polícia de MS e liberta indígenas suspeitos de atirar em PMs

Colunista do UOL

27/06/2022 18h36

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A juíza plantonista Tatiana Decarli, da Justiça do Mato Grosso do Sul, acolheu pedido das defensorias públicas da União (DPU) e do Estado (DPE) e determinou hoje a soltura das quatro pessoas feridas detidas suspeitas de atacarem a polícia durante operação da PM para ocupação de uma área rural pelos indígenas guarani-kaiowás em Amambaí, na sexta-feira. A ação resultou na morte Vito Pereira, 42.

Em três dos casos, os suspeitos tiveram relaxamento das prisões (quando não há medidas condicionantes) por total falta de provas. No outro, a Justiça concedeu apenas a liberdade provisória mediante uma série de medidas cautelares, já que a pessoa estaria armada no momento em que foi levada ao hospital.

A ação da PM resultou ainda no ferimento de pelo menos mais sete pessoas, que precisaram ser hospitalizadas. Dois indígenas (um adolescente e uma criança) seguem internados em Ponta Porã. Três PMs também ficaram feridos, mas não estão internados.

A operação foi alvo de críticas de entidades e testemunhas, que alegam truculência e violência desproporcional da polícia. O MPF (Ministério Público Federal) no Mato Grosso do Sul apura a conduta de todos durante o conflito.

Já os policiais afirmam foram alvo de tiros, flechas e rojões antes de atirarem. Essa versão, porém, é contestada pelos povos, que garantem que foram os policiais que chegaram atirando (veja mais abaixo).

A coluna recebeu nesta segunda-feira também uma sequência de imagens que mostram cápsulas de munição e uma bomba de gás lacrimogêneo que teriam sido utilizados pelos policiais durante a operação. O material teria sido recolhido por indígenas.

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Material supostamente usado pela PM na operação da sexta-feira e recolhido por indígenas
Imagem: Divulgação

Boletim relata operação na versão da PM

A coluna obteve a decisão judicial, que traz trechos do boletim de ocorrência feito pelos policiais que atuaram em Amambaí. No documento, eles alegam que, ao chegarem ao local, foram "surpreendidos com uma sequência de disparos de arma de fogo e outras armas artesanais, que resultaram em lesões de membros inferiores em três policiais".

Segundo o relato, na manhã da sexta-feira, houve uma sequência de disparos de arma de fogo e artesanais, "que resultaram em lesões de membros inferiores em três policiais".

Após o confronto, diz a PM, "os agressores fugiram em direção à aldeia Amambai, e alguns indígenas permaneceram nos arredores do local em que a tropa estava, lançando eventualmente flechas, pedras e rojões".

Diante das supostas agressões dos indígenas, a PM diz que foi solicitado o apoio da aeronave da Casa Civil, "que trouxe o reforço policial".

Relatam os militares que, "no momento que sobrevoava o local do confronto para reconhecimento do terreno, os ocupantes da aeronave foram surpreendidos por disparos de arma de fogo, de pronto repelido por policiais do 2º Pelotão de Choque, resultando em ferimentos na pessoa identificada como Vito Fernandes".

Em um dos vídeos recebidos pelo UOL, o helicóptero usado pela PM é filmado ao mesmo tempo em que vários disparos são ouvidos. Entretanto, não há como ter certeza que se trata de disparos vindo de policiais, como alegam os indígenas e entidades.

Ainda segundo o relato dos policiais, Vito estaria de posse de uma arma de fogo. "A arma que ele trazia consigo teria sido levada por outro indivíduo não identificado", diz o boletim.

Depois da ação, os policiais contam que foram até o hospital para ver quem estava sendo atendido e "verificou que seriam os prováveis indivíduos que efetuaram disparos contra a tropa de policiais militares", citando que eles foram lesionados "enquanto a injusta agressão era cessada".

Diante desses argumentos, a Delegacia formalizou a prisão e apreensão em flagrante de quatro dos cinco feridos que tiveram alta.

A juíza, porém, questionou os argumentos dos policiais e alegou que em três dos quatro casos havia "ausência de indícios mínimos de autoria nos crimes indicados". "Não foram reunidos indícios suficientes de que os flagrantes dos tenham concorrido de alguma forma para o delito", alegou.

Já sobre o homem que estava com a arma, ela determinou que o flagrante fosse consumado, concedeu "liberdade provisória sem fiança, a fim de que responda ao processo em liberdade".

Indígena ferida durante a ação da PM na sexta-feira  - Divulgação/Folha - Divulgação/Folha
Indígena ferida durante a ação da PM na sexta-feira
Imagem: Divulgação/Folha

Indígenas questionam

Segundo um missionário do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) que atua na região, mas que pediu para não ser identificado por medo de represálias, os policiais que é que chegaram atirando —inclusive do helicóptero—, e não o inverso.

"Foi algo muito parecido com o que ocorreu na favela da Maré [em maio de 2019 e que matou 8 pessoas], usando a aeronave como base de tiro. Embora a polícia diga que é uma questão localizada, está havendo uma série de ações de violações da mesma natureza, essa foi pelo menos a terceira [com helicóptero. A ação [de sexta] foi brutal e queria criminalizar os indígenas", relata.

Ele afirmou ainda que as pessoas atingidas pela PM estavam saindo do hospital direto para a delegacia e sendo acusados pela polícia de atirarem contra os PMs, alguns dos feridos passaram a ir não mais ao hospital com medo.

"Uma brigada de médicos populares foi para atender no local e descobriu-se uma quantidade grande de feridos", afirma.

Ele cita que o clima no local ainda é cercado por tensão. Nesta segunda-feira, os indígenas conseguiram uma autorização para enterrar o corpo de Vito na área onde ele foi morto, segundo manda a tradição do povo. O enterro reuniu dezenas de indígenas, que estavam indignados com a violência policial.

Enterro de Vito ocorreu sob forte comoção e revolta - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Enterro de Vito ocorreu sob forte comoção e revolta
Imagem: Arquivo pessoal

O litígio

A área em disputa e que foi palco da retomada Guapoy (termo usado pelos indígenas) é reivindicada pelo povo guarani-kaiowá como parte dos 3.220 hectares da reserva Amambai, criada ainda na década de 1920.

Ao longo dos anos seguintes, dizem os indígenas, o local foi sendo invadido e passando por grilagem de terra que reduziram a área a 2.490 hectares. "Cansados de esperar o andamento do processo, os indígenas decidiram fazer a retomada por conta própria", diz o missionário do Cimi.

Diante do conflito, no sábado o MPF-MS determinou várias providências, entre elas a realização de perícia antropológica para verificar a eventual violação de direitos indígenas. A perícia será conduzida por analista em antropologia do MPF entre amanhã (28) e 1º de julho.

O despacho também requisitou informações aos órgãos e entidades direta e indiretamente envolvidos no conflito para apurar os fatos e prevenir novos supostos conflitos. Os documentos devem ser encaminhados em até 72 horas.

Em nota, a DPU afirmou que entende que o caso é de interesse da coletividade indígena. "O processo deveria correr na Justiça Federal, e não na Justiça Estadual, já que a demarcação de terras indígenas é de competência da União", diz.