Barco no PA: Africanos podem ter entrado na rota mais mortal no Atlântico
Os africanos que morreram em um barco encontrado no litoral do Pará provavelmente entraram na rota mais mortal do mundo para quem tenta refúgio. Somente no ano passado, 500 pessoas que saíram da África morreram em média, por mês, tentando cruzá-la.
Segundo pesquisadores que conversaram com o UOL e com a PF, a principal hipótese é que a embarcação tinha como destino as Ilhas Canárias, na Espanha. O grupo saiu da Mauritânia, apontam as investigações.
A fuga da Mauritânia — assim como de outros países da África — é rotineira e tem explicações históricas, econômicas e climáticas, dizem os estudiosos.
Além da pobreza extrema e resquícios da escravidão, o deserto do Saara cobre 65% do território. Com as mudanças climáticas, a seca no país é uma realidade cada vez mais constante, o que gera ainda mais dificuldades envolvendo a segurança alimentar dos moradores.
O perfil de quem tenta sair é formado por homens de 20 a 30 anos. Em muitos casos, é um empreendimento familiar, parentes que juntam dinheiro para a pessoa ir. E quando ele chega, vai de alguma forma retribuir financeiramente.
Pio Penna Filho, professor de história e relações internacionais da África da UnB
Em relatório, a ONU cita que, devido à sua posição geográfica, a Mauritânia também tornou-se um "importante local de trânsito para movimentos migratórios, incluindo para migrantes irregulares que viajam para a Europa".
Pessoas do vizinho Mali, que desde 2012 vive um conflito, fogem para a Mauritânia, destacam os pesquisadores. Documentos achados no barco no Pará também indicam que havia malineses na embarcação.
Sabe-se que há muita fuga de pessoas de países vizinhos. A Mauritânia é a porta de entrada para o resto do continente para acessar o Atlântico, onde sabemos que há barcos clandestinos que fazem essa travessia para as ilhas Canárias. mas em regra não são pessoas da Mauritânia.
Cheikh Mohamed El Hacen, presidente da Câmara de Comércio Brasil Mauritânia em São Paulo
Corrente contrária
Segundo a ONG espanhola Caminhando Fronteiras, em 2023 ao menos 395 pessoas morreram no trajeto entre a Mauritânia e as Ilhas Canárias. Considerando toda a costa ocidental África, o número salta para 6.007 — 14 vezes o total de mortos que tentaram chegar à Espanha pelo Mediterrâneo (434 óbitos).
O número de barcos que partem da Mauritânia cresceu durante o segundo semestre de 2023, com um aumento particularmente rápido a partir de outubro. A maioria dos barcos é feita de madeira e fibra de vidro.
Relatório da ONG Caminhando Fronteiras
Tentar fugir em um barco de pesca, como provavelmente aconteceu com os 25 migrantes que teriam entrado na embarcação achada no Brasil, é uma ideia para lá de arriscada — especialmente por causa da corrente das Canárias que flui em direção à linha do Equador, ou seja, no sentido contrário ao destino pretendido.
É uma rota em mar aberto; as outras são ou na entrada ou dentro do Mar Mediterrâneo. E nesse ponto de mar aberto tem uma corrente muito forte, ondas muito fortes. Para chegar às Ilhas Canárias, eles teriam que vencer a corrente [contrária].
Carlos Teixeira, professor de oceanografia da UFC
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OLHAR APURADO
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Quero receberNo barco que chegou à costa paraense, a PF não encontrou nenhum tipo de leme ou motor — nem sistema de controle — que desse propulsão e direção desejada. As investigações ainda estão em curso.
Sem propulsão, o barco provavelmente seguiu a corrente e veio parar, após um período estimado de 90 dias, no Brasil — o que não é inédito: em 2021, um barco com três corpos foi achado a 1.000 km da costa de Fortaleza. A origem também foi a Mauritânia.
Por que as pessoas querem fugir?
A República Islâmica da Mauritânia é um país do noroeste africano com saída para o Atlântico e foi o último país do mundo a abolir a escravidão — em 1981.
De acordo com a diplomata armênia e pesquisadora de tráfico de seres humanos Gulnara Shahinian, apesar de possuir recursos naturais valiosos, como minério de ferro e ouro, a Mauritânia enfrenta pobreza e desemprego generalizados. Por causa das condições de risco, muitos moradores decidem fugir, ainda que conheçam os perigos da viagem.
Gulnara foi a primeira relatora especial das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão (entre 2008 e 2014).
Seja motivada pela privação econômica, pela opressão política, pela injustiça social ou pela degradação ambiental, a sua migração sublinha a necessidade urgente de soluções abrangentes para resolver as causas profundas do seu êxodo.
Gulnara Shahinian
Ela explica que a degradação ambiental e as mudanças climáticas são desafios expressivos ao país. Localizada no noroeste africano, a Mauritânia é altamente vulnerável à desertificação e às secas. "Isso ameaça a segurança alimentar, a disponibilidade de água e os meios de subsistência do país", diz.
A economia depende fortemente da agricultura, que é vulnerável às flutuações climáticas e à degradação ambiental.
Gulnara Shahinian
Além do cenário de pressão ambiental, ela afirma que a instabilidade política e as violações aos direitos humanos agravam ainda mais a situação e incentivam fugas. "O país tem uma história de golpes de Estado e de regimes autoritários, levando a um clima de medo e repressão. Há grupos minoritários que enfrentam discriminação e marginalização, alimentando a instabilidade social e incentivando fugas. Além disso, a persistência da escravatura continua a atormentar a sociedade."
Segundo o professor Pio Penna Filho, a escravidão no país, apesar de estar abolida, ainda é tolerada socialmente em muitas situações. Ele ressalta que não são os escravos que tentam fugir do país. "Ele não tem nem dinheiro."
Existem muitas pessoas que vêm da África subsaariana e ficam agregadas a uma casa, prestando serviços à família em condição análoga à escravidão. Elas não são livres, são dependentes. A escravidão não é legal, mas ainda é tolerada. Essa mentalidade tem mudado aos poucos.
Pio Penna Filho
Sobre a embarcação
Oito corpos foram encontrados no barco que chegou ao Brasil na região de Bragança, no litoral do Pará. Um outro corpo estava próximo. Os investigadores acreditam que era do mesmo grupo formado por pessoas ao menos de Mauritânia e Mali. A embarcação foi localizada no sábado passado (13).
A PF recolheu 25 capas, 27 celulares e documentos que estavam no barco. As informações de celulares, chips e cartões de memória devem ser utilizadas para descobrir a identidade dos ocupantes.
A polícia já concluiu a perícia nos corpos, mas ainda não identificou as pessoas que estavam na embarcação.
Por conta da falta de prazo, os corpos serão temporariamente sepultados em Belém — até que as identidades sejam descobertas, e as famílias das vítimas sejam comunicadas.
Todos os dados foram enviados para os institutos Nacional de Criminalística e Nacional de Identificação da Polícia Federal, com apoio da Interpol e organismos internacionais.
A PF acredita que a causa da morte dos africanos foi fome e sede pelo tempo de viagem. A estimativa é que eles tenham saído da Mauritânia em algum momento depois de 17 de janeiro.
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