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'Garantismo não é sinônimo de impunidade', diz juiz sobre Lava Jato
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Entre as múltiplas polêmicas suscitadas pela Lava Jato, uma delas foi a polarização entre garantismo e punitivismo no STF (Supremo Tribunal Federal). A primeira corrente prioriza as prerrogativas dos investigados, enquanto a segunda faz uma leitura mais rígida do cumprimento do Direito Penal. O juiz, professor e doutrinador Guilherme Madeira acredita que é preciso desfazer o mito de que garantismo é sinônimo de impunidade.
Madeira comanda a 44ª Vara Cível Central Central de São Paulo. É mestre e doutor em Direito pela USP (Universidade de São Paulo). Nas redes sociais, assume outra personalidade: Doctor Wood. Coleciona 150 mil seguidores no Twitter e 165 mil no Instagram. Seus temas preferidos são séries de TV e corrida.
Na opinião do senhor, os julgamentos referentes à Lava Jato, especialmente no STF, contribuíram para polarizar o entendimento do Direito, especialmente entre leigos? Existe hoje a ideia de que o garantismo é ruim e o punitivismo é bom?
A gente tem que entender que a Lava Jato é parte de um movimento maior. Antes da Lava Jato, teve o mensalão, esse movimento começa lá atras. Pelos mais diversos motivos, me parece que há uma certa confusão sobre o que é e o que não é o garantismo. Essa confusão costuma ser assimilada também por parcela da mídia. É importante deixar claro o que eu sempre falo para os meus alunos na primeira aula da graduação: qual é a minha ideologia no processo penal. Todo mundo tem uma ideologia, é inegável. Aqueles que dizem que não a têm, só não perceberam isso, ou pretendem esconder, mas todo mundo tem. No processo penal, notadamente no Brasil, há dois grandes movimentos: de um lado, o garantismo, e de outro, o eficientismo. Aqueles que veem o garantismo de uma forma extremada dizem que ele é uma forma de contenção do poder do Estado, apenas isso. Aqueles que veem o eficientismo de maneira extremada dizem que o processo penal serve para combater a impunidade. Eu não consigo ler esses dois fenômenos de maneira exclusiva. Eu gosto muito de um autor argentino, Alberto Binder, que fala: Precisamos de um máximo de eficiência com um máximo de garantismo. Eu procuro entender o processo penal para além dessa polarização. O processo penal não pode ser um instrumento de punição a qualquer custo, mas ele também não pode ser um instrumento de impunidade.
Hoje em dia, chamar um juiz de garantista pode dar a impressão de que ele tem pouca vontade de condenar. Essa visão é equivocada?
É preciso desconstruir um mito. Quando se diz que alguém é garantista, não se quer dizer que essa pessoa é a favor da impunidade. Não é isso. O garantismo, na forma desenvolvida por Luigi Ferrajoli, é o modelo ideal. Não dá pra dizer que, porque um ministro condenou fulano, ou absolveu beltrano, ele seja garantista ou punitivista. Não dá pra tirar de uma decisão uma forma de ver o mundo. É muito maior do que isso.
Mas algumas decisões dão pistas. O ministro Kássio Nunes Marques, do STF, disse há um ano, na sabatina no Senado, que era garantista. No entanto, como integrante do STF, negou mais habeas corpus do que concedeu. Existe contradição nisso?
Vamos desfazer um mito. Você fez uma análise quantitativa. Mas eu acho que, para a gente poder dizer a essência do ministro, a gente precisa ter uma análise qualitativa. Garantismo não é sinônimo de impunidade. Pode ser que esses habeas corpus negados pelo ministro fossem mesmo o caso de negativa de habeas corpus. O garantismo não quer dizer soltar todo mundo, não é essa a ideia. Se você teve cumprido o devido processo legal, é natural que se negue um habeas corpus. O garantismo cuida, dentre outras coisas, da observância das regras do devido processo legal.
Você tem razão quando diz que pode ser um indício de que o ministro não seja garantista. Mas é um indício apenas. Sem entender o conteúdo das decisões, a gente não consegue ir muito além.
O senhor acha que hoje o STF é mais garantista ou punitivista?
Eu não me atrevo a cravar um retrato do Supremo hoje, de dizer se é mais garantista ou eficientista. Os meus amigos que são na essência eficientistas, na sua maioria promotores, dizem que o Supremo é muito garantista. Os meus amigos defensores, portanto, com uma visão de maior proteção e de contenção do poder punitivo, dizem que o Supremo não é nem um pouco garantista. Eu acho que, em alguns temas, o Supremo caminha para posições mais garantistas e, em outros, o Supremo aparenta mais eficientista.
No capítulo da Lava Jato, o garantismo ganhou?
Eu não sei se essa é uma leitura que possa ser feita. Foi um julgado do Supremo que reconheceu a parcialidade do então juiz (Sergio Moro), que era dada pela imensa maioria dos professores de Direito Penal. Eu não diria que foi uma vitória do garantismo. Eu diria que foi uma vitória do Estado de Direito. Prevaleceu a lei. Lembrando que a Lava Jato não acabou, ainda vão se reiniciar os processos que foram anulados, invariavelmente é capaz que haja prescrição em alguns deles, por conta da idade dos réus. Uma das maiores causas da impunidade são processos com garantias atropeladas, porque uma hora vai ser tudo anulado e vai gerar prescrição. A Lava Jato pode vir a ser mais um exemplo vivo disso.
O Lula foi uma vítima do punitivismo em 2018, quando ele foi impedido de concorrer? Agora ele foi liberado e verificou-se que aqueles motivos que causaram a inelegibilidade dele não subsistiram.
Meu cargo não me permite dar essa resposta. Eu não posso responder isso sem ultrapassar uma linha que deve ser observada pelo juiz.
Desde a campanha de 2018, existe uma polarização intensa na política. Nos últimos anos, também é possível ver polarização nas discussões jurídicas. O senhor acha que o Judiciário se contaminou pelo ambiente político?
O juiz não existe fora da sociedade, ele é um membro da sociedade e vive cotidianamente com seus amigos, seus grupos de WhatsApp. Temos que abandonar essa ideia do juiz asséptico. As decisões acabam refletindo a forma como ele vê o mundo.
O senhor considera que a sociedade hoje está mais acirrada?
Algumas das decisões que eu dei lá atrás, talvez hoje gerassem mais confusão do que na época que eu decidi. Eu fui o primeiro juiz no país que autorizou a mudança de nome de um transexual sem fazer cirurgia. Na época, sofri alguns ataques, dentro do esperado. Mas hoje, provavelmente, seria muito pior. E também a decisão que eu dei no caso João Drumond, que determinou que constasse da certidão de óbito que ele morreu na ditadura dentro do DOPS (Departamento de Ordem e Política Social) por tortura. Foi a primeira do país, cumprindo uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Me parece que hoje uma decisão dessas geraria muito mais confusão do que deu na época. Os ataques foram dentro do esperado para temas difíceis como esses. Hoje, talvez tacassem ovos em mim por uma decisão dessas. O ambiente da sociedade degenerou-se um pouco. A gente perdeu a capacidade de conversar, se é que algum dia nós a tivemos.
O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, costuma dizer que o Judiciário tem o papel iluminista de impulsionar a história e encarar temas muitas vezes evitados pelo Legislativo e pelo executivo. O senhor concorda?
Eu compartilho muito de uma série de visões do professor Barroso. No entanto, nós divergimos sobre o papel do Judiciário. Confesso que o papel do Supremo nesse período pandêmico me faz ter um pouco de dúvida. Pré-pandemia, eu não teria dúvida em dizer que eu discordo do ministro Barroso. No pós-pandemia, eu já não estou tão seguro. Se o Supremo não tivesse agido da forma como agiu, a gente poderia ter uma história mais triste do que tivemos. Eu não vou tão longe em dizer que temos o papel de ser um farol iluminista. Mas eu já não sou tão resistente a essa tese quanto eu era no pré-pandemia.
Quais decisões o senhor poderia citar que evitaram o agravamento da situação da pandemia no país?
A do passaporte vacinal e a decisão que deu autonomia a estados e municípios para estabelecerem regras. Essas duas decisões foram muito importantes para conter a pandemia.
Em um ambiente politicamente conflagrado, existe quem defenda que o STF tenha um poder moderador. O senhor acha que o Supremo tem esse papel?
A minha visão tem algumas reservas a esse papel do STF. A minha visão é de um Poder Judiciário com uma vocação contramajoritária. O Supremo é guardião da Constituição, guardião dos direitos e garantias fundamentais, e esses direitos são contramajoritários. Infelizmente, parcela da sociedade não consegue entender isso. Nós juízes temos uma série de garantias, como inamovibilidade, como irredutibilidade de vencimentos, justamente para que nós possamos decidir de uma forma impopular. Esse papel do Judiciário me parece que não se coaduna com o poder moderador. Fica difícil ser contramajoritário e moderador. Como você vai defender minorias e ser moderador?
Como juiz, o senhor sente que a categoria passou a ser mais criticada de um tempo para cá?
Acho que todo mundo passou a ser mais criticado, não só o Judiciário. É que o Judiciário é a Geni do Chico. É fácil criticar. E não devemos fazer ouvidos de mercador para essas críticas, e sim separar o joio do trigo. Há criticas que são muito pertinentes, que a gente deve ouvir, entender e saber o que melhorar.
Qual a crítica que o senhor acha que o Judiciário merece hoje?
Nós precisamos aprender a gerir melhor os nossos processos, a usar melhor a tecnologia. Eu vou fazer um elogio que eu acho que responde a uma crítica. Quando começou a pandemia, o Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior tribunal do país, teve que trocar os quatro pneus com a coisa andando. E funcionou. O que o presidente e o corregedor fizeram foi algo inimaginável. Nós viramos a chavinha para o digital e continuou a coisa a funcionar. Era uma crítica e a resposta foi muito feliz. A gente tem que continuar aprimorando no uso da tecnologia.
Antigamente, juízes só se manifestavam nos autos dos processos. Hoje, muitos são usuários de redes sociais, e o senhor é um exemplo disso. É de alguma forma inapropriado que juízes comentem temas na internet?
Eu respondo com uma pergunta que você me fez quando a gente conversou no Twitter e que me deixou muito feliz. Você me perguntou se eu era juiz, promotor, professor ou advogado. Porque, no meu perfil, não tem o que eu sou, não tem meu nome. E eu acho que o juiz não pode ir além do que ele é autorizado pela Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional). Você não vai me ver no Twitter falando mal ou bem do candidato A,B ou C, porque juiz não pode fazer isso. Eu dei uma decisão em que condenei um deputado que ofendeu o ministro Alexandre de Moraes. Você não me viu falando no Twitter sobre esse caso. E eu não falaria. Não é adequado que eu fale sobre o caso que eu estou julgando. Eu posso falar de casos que eu julguei no passado, transitados em julgado. E, mesmo assim, eu falo com muito comedimento. Posto um link para a decisão e pronto. Se a pessoa critica, eu não vou ficar batendo boca no Twitter.
É adequado que juízes defendam posições políticas em redes sociais?
Nós podemos, e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) permite, discutir ideias, mas eu não posso discutir pessoas. E acho que está correto isso. A sociedade não pode achar que eu julguei de determinada forma porque eu gosto ou desgosto de determinado político.
O presidente Jair Bolsonaro tem feito ataques constantes contra o Judiciário e ministros do STF. O presidente da República, assim como o senhor fez com o deputado, deveria ser punido por esse tipo de comportamento?
Eu não posso falar sobre o presidente da República ou sobre qualquer pessoa em específico. O que eu posso falar é em termos gerais. Foi publicada neste ano uma lei que trata dos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Críticas são sempre bem-vindas, mas ataques podem incidir nos tipos penais dessa lei. Falo em tese, e não direcionado ao presidente da República ou qualquer outra pessoa.
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