Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Luiz O., decano do Supremo, deixa para os jornalistas o otimismo dos fortes
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Eu conversei com o Luiz Orlando Carneiro pela primeira vez em 1º agosto de 2001. Antes eu já o tinha visto por aí, mas essa foi a data que eu parei para conversar. Eu entrava no STF (Supremo Tribunal Federal) pela primeira vez na vida. Ele já estava lá havia uma vida. Era o decano da Corte, como a gente gostava de chamá-lo. O repórter que há mais tempo cobria o Supremo.
Eu fiquei intimidada, claro. Foca que era, tinha medo dos jornalistas mais antigos, medo de tomar um furo logo na primeira semana, medo de ser escanteada no pequeno comitê de imprensa do Supremo.
Mas logo percebi que o Luiz O., como era chamado na turma, não era nada daquilo que eu imaginava. Ele era um menino. Piadista, bem-humorado, conversador. Puxava papo sobre tudo. Falava do passado, das coberturas do Itamaraty, das viagens a trabalho a locais distantes, contava como se fosse anedota sobre o convívio com os poderosos.
Naquela época em que o STF não era lá tão importante no noticiário, éramos seis jornalistas no comitê. Numa era pré-mensalão, era raro ter notícia por ali. Os processos na pauta de julgamentos não interessavam tanto às redações. De modo que as horas vagas eram muitas.
Luiz O. era o comandante diário de um campeonato de palavras cruzadas. Ele sempre vencia. Me ensinou os macetes, passei a pontuar melhor nos campeonatos.
Quando aparecia uma notícia e eu estava perdida, ele também me ensinava os macetes. Abria um velho Código Penal, ou a Constituição Federal, para me mostrar o artigo no qual aquela decisão tinha sido baseada. Era formado em Direito, mas não desfilava esse fato por aí.
Luiz O. era o sujeito que, no meio do expediente, começava a falar de jazz - sua grande paixão, depois da esposa, Branca. Tocava "air jazz", como lembrou o colega Felipe Recondo. Colocava a música para tocar no computador e fingia acompanhar em um instrumento de sopro imaginário.
Ele tocou piano na juventude. Disse que não era talentoso, que não tinha o ouvido bom. Duvido. Ele tinha o melhor dos ouvidos. Escutava todo mundo, sem jamais interromper. Depois de ouvir com muita atenção, às vezes ele vinha perto de mim e confessava: "Ele é um chato!". Mas ouvia até o final. Vai ver ele também me achava uma chata, mas eu jamais saberei.
Luiz O. era de uma gentileza ímpar. Incapaz de falar um palavrão, incapaz de um gesto indelicado. Falava baixinho, era preciso chegar perto para ouvi-lo. Elogiava as amigas, reparava quando alguém mudava o penteado, perguntava sobre a família.
Uma vez cortei o cabelo bem curto. Ele falou: "Você está linda, parece a Branca!". A Branca foi a fiel detentora de um amor comprometido, um amor intenso, devotado, desses que não existem mais no mundo. Quando a Branca morreu, Luiz O. não se desesperou. Dizia que ela estava bem, que era só uma questão de tempo para se reencontrarem. Para manter a sanidade, continuou trabalhando.
Luiz O. falava de um jornalismo totalmente diferente. De um tempo em que a correria do dia a dia não tinha atropelado o senso crítico. Reclamava do "efeito manada" - quando um editor cobrava do repórter a notícia que tinha visto na concorrência, ainda que não fosse tão importante assim.
Reclamava quando todo mundo escrevia a mesma notícia, sem questionar qual era a importância dela. Se recusava a escrever o óbvio, ia pelas beiradas para encontrar uma abordagem mais técnica. Puxava a gente para o jornalismo às antigas. Era um contraponto.
Mas o que eu sempre admirei mesmo era o Luiz Orlando, aos 84 anos, ser repórter por escolha. Ele já tinha chefiado sucursal em Brasília e escolheu ser repórter até o fim da vida. Gostava mesmo era de escrever notícias, não tinha prazer nenhum em esbanjar um poder que, com a experiência que tinha, poderia alcançar.
Ao mesmo tempo, a forma gentil como tratava todo mundo o deixou poderoso. Ele conquistava com gentileza e mansidão, pelas beiradas. Todos os ministros do STF o admiravam. Tanto que hoje o tribunal soltou uma nota conjunta lamentando a morte dele. Uma unanimidade no Supremo não é toda hora que se vê.
Eu não me atrevo a escrever um obituário do Luiz Orlando. O Jota, portal onde ele trabalhava, já fez isso com maestria. Este texto é uma singela homenagem pessoal àquele cara que eu sempre admirei e que me honro de ter trabalhado lado a lado, literalmente, por duas décadas.
Todas as vezes que o encontrei, eu perguntava se ele estava bem. Ele abria um sorriso e dizia: "Estou ótimo!" Nos vimos pela última vez em setembro de 2022. Eu sabia que não estava tudo bem com a saúde dele. Ele estava ligeiramente menos animado que o usual. Mas, diante da minha pergunta de sempre, disse, sem pestanejar: "Estou ótimo!"
Agora que você se foi, amigo, assumo eu o posto de decana do Supremo entre os jornalistas. Deixo para os mais jovens sua lição: vai em paz, que aqui vai ficar tudo bem.
Hoje farei uma palavra cruzada em sua memória.
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