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Chico Alves

Atenção, PGR: extirpar discurso de ódio não é censura

Augusto Aras, procurador-geral da República - TSE
Augusto Aras, procurador-geral da República Imagem: TSE

Colunista do UOL

25/11/2019 16h04

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Já se tornou clichê a expressão "tempos estranhos" para designar esse momento do país, com tantas bizarrices e retrocessos. Um dos que mais a utilizam é o ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal, mas é comum vê-la repetida em comentários e postagens de origens variadas. Afinal, quem imaginou a essa altura do campeonato ter ainda que convencer políticos de que a preservação da Amazônia é necessária, que a polícia não pode matar sem ser punida ou que os professores devem ter autonomia em sala de aula?

Todos os dias surge uma inacreditável proposta que aponta ao país o caminho da barbárie. As sandices não são exclusividade de uma ou duas autoridades nacionais. Podem vir de qualquer instância do poder. Dessa vez, é a Procuradoria-Geral da República o nascedouro.

Segundo o repórter Leandro Prazeres, do jornal O Globo, o secretário de Direitos Humanos da PGR, Aílton Benedito, por duas vezes tentou impedir que o Facebook banisse por iniciativa própria postagens com mensagens de ódio, violência, exploração sexual e conteúdo cruel. Isso foi antes de assumir o posto, mas em qualquer lugar do mundo soaria estranho que alguém que se oponha à erradicação do discurso de ódio seja designado para ocupar o cargo de defesa dos Direitos Humanos.

Mas não foi só. O próprio procurador-geral da República, Augusto Aras, encaminhou parecer referente a uma ação sobre ofensas feitas no falecido Orkut contra uma professora. Aras argumentou que não cabe às empresas de tecnologia fazer o controle prévio das postagens sob pena de a prática implicar em censura, informa a matéria.

Nos últimos meses, tornou-se comum ver produtores de fake news usarem o falso argumento da liberdade de expressão para defender o que na verdade é liberdade de ofensa e ataque a reputações. Surpreendentemente, agora é o procurador-geral da República que se coloca contra o esforço de empresas que controlam as redes sociais de tornarem o ambiente virtual menos tóxico.

É sintomático que no mundo todo o Facebook e seus congêneres sejam nesse momento alvo de pesadas críticas e campanhas de boicote que vão justamente no sentido inverso. Teve repercussão mundial a conferência do comediante Sacha Baron Cohen sobre o tema, feita na quinta-feira, em uma organização de luta contra o antissemitismo, em Nova York.

"Se você pagar, o Facebook transmitirá toda a publicidade 'política' que você quiser, mesmo que contenham mentiras", criticou Cohen, conhecido por interpretar no cinema o personagem Borat. "A partir desta lógica retorcida, se o Facebook existisse na década de 1930, teria deixado que Hitler publicasse anúncios de 30 segundos sobre sua 'solução para o problema judaico'".

Cohen e outras personalidades famosas cobram os empresários que lucram com as redes sociais que apertem muito mais o controle sobre o conteúdo de ódio veiculado em suas timelines. Argumentam que tudo o que Mark Zuckerberg fez até agora foi muito pouco.

Por aqui, nesse país em que a última campanha eleitoral foi marcada por ofensas e fake news nas redes sociais (distorção que se estende aos dias de hoje), Aras e o secretário de Direitos Humanos da PGR querem se opor a que as empresas façam por si uma mínima regulação no conteúdo que veiculam.

Extirpar mensagens de ódio, violência, exploração sexual e conteúdo cruel não tem nada a ver com censura. É o mínimo que os gigantes das redes sociais podem fazer para que os internautas retomem o diálogo civilizado.

Ter que repetir tal obviedade ao procurador-geral da República é mais uma prova de que o clichê "tempos estranhos" ainda será muito utilizado para definir o momento em que vivemos.