A crise na saúde do Rio e o eterno gerúndio de Crivella
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Muita gente não lembra, mas o Rio de Janeiro foi à falência uma vez. Mais precisamente em 1988, quando o prefeito era Roberto Saturnino Braga. O nocaute no município foi causado por uma mistura de fatores: gigantesca dívida herdada de gestões anteriores, falta de ajuda do governo federal, prejuízos resultantes de uma das maiores enchentes de sua história e inabilidade política que levou o chefe do Executivo municipal a brigar com os vereadores.
Como resultado, houve a paralisação dos serviços públicos. A interrupção da coleta de lixo criou montanhas de detritos nas ruas, o calote nos fornecedores resultou em falta de merenda e o mais dramático: a saúde passou a funcionar precariamente. Vindo de vários mandatos elogiados no Senado e reconhecido como homem íntegro, o prefeito teve que passar pelo constrangimento de anunciar oficialmente à população que a cidade tinha quebrado. A circunstância levou o jornalista Millôr Fernandes a cunhar uma de suas frases mais impiedosas: "Saturnino foi o homem que desmoralizou a honestidade".
Passados 31 anos, a Prefeitura do Rio está de novo na pindaíba, mais uma vez com consequências graves para a saúde. No impressionante índice de 72% de desaprovação constatado pelo Datafolha em relação ao governo Crivella, os cariocas apontam como principal motivo justamente o atendimento nos hospitais e clínicas do município. Nada menos que 68% citaram esse problema.
Para se ter uma ideia do drama vivido pelo cidadão carioca, é elucidativo ler a matéria em que o jornalista Igor Mello, do UOL, revela que o Sistema de Regulação criado para ordenar os pacientes à espera de consultas e exames registra 18.825 casos considerados como emergência de último grau. Para esses, em estado desesperador, o tempo médio de permanência na fila virtual é de mais de oito meses. No caso mais agudo, o repórter identificou um paciente que espera há quatro anos.
Números lidos na tela de um computador são insuficientes para traduzir o drama de alguém acometido por uma doença grave e que se vê obrigado a esperar tanto tempo por uma consulta ou exame que representa a diferença ente a vida e a morte. Basta pensar como seria se isso acontecesse com um de nossos amigos ou parentes.
Entre Saturnino e Crivella, o sistema de hospitais e clínicas municipais do Rio esteve em crise aguda também na gestão do prefeito Cesar Maia. Em 2005, o governo federal decretou calamidade pública na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) e determinou intervenção federal em seis dos mais importantes hospitais da cidade.
De todas as áreas de qualquer gestão governamental, saúde e segurança pública deveriam ser consideradas prioritárias, já que delas depende a integridade física e a vida da população. Pela prioridade nos discursos e nas destinações orçamentárias, pode-se dizer que a segurança já é vista assim. A saúde, por incrível que pareça, não. Na visão de alguns prefeitos do Rio, é como se fosse apenas uma secretaria a mais.
Para Crivella, que se elegeu prometendo "cuidar das pessoas", os pacientes deveriam ser os primeiros a receber cuidados. No entanto, desde o início do seu mandato o que se vê são as tais "pessoas" à porta dos hospitais, implorando por socorro que muitas vezes não encontram.
A crise levou a Justiça do Trabalho a determinar arresto nas contas do município para pagar os atrasados devidos a funcionários de Organizações Sociais. A prefeitura pretendia usar para isso o dinheiro repassado pelo governo federal a obras e outros fins. O Tribunal Superior do Trabalho não permitiu e, em um recurso, Crivella apelou: pediu piedade ao TST para autorizar excepcionalmente um arresto de R$ 325 milhões para pagar funcionários.
Nos últimos três anos, houve acúmulo de atrasos nos pagamentos das equipes terceirizadas da saúde, promessas não cumpridas de regularização do sistema e falta de insumos básicos denunciados pelos doentes. A cada capítulo da crise, o prefeito carioca gravava um videozinho, com fala mansa e aparência serena, para anunciar nas redes sociais que tudo "estava sendo" regularizado. Quem procura um hospital carioca sabe que não foi o que aconteceu.
Nos últimos tempos, Crivella abandonou a serenidade. Nas imagens mais recentes, aparece de cenho franzido, dedo em riste e cercado de funcionários para dirigir impropérios a quem atribui a culpa pela crise: os jornalistas. Mais especificamente, as Organizações Globo. No vídeo postado ontem, chama os profissionais da Globo de "canalhas".
"Nós não somos responsáveis pelo caos, nós lutamos contra o caos! Canalhas! Canalhas! Sei que fazem isso não pela saúde do povo, mas porque querem dinheiro. Não vamos nos agachar e não vamos dar um tostão para vocês!", vocifera o prefeito, seguido dos aplausos da claque.
Na mesma gravação, Crivella repete a noção de tempo infindável dos últimos três anos: "Todos os salários já estão sendo colocados em dia".
Talvez essa seja a principal diferença da crise atual para as anteriores, quando Saturnino e César Maia estavam na prefeitura: nenhum dos dois lançou mão desse eterno gerúndio para escamotear a gravidade dos problemas. Mas o recurso é inútil. Como se vê pelo resultado da pesquisa Datafolha, o gerundismo de Crivella não engana mais ninguém.
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