Topo

Chico Alves

Coronavírus: sem aulas, mães são obrigadas a deixar filhos com avós

Visão geral de favela do Rio - Tiê Vasconcelos/Voz das Comunidades
Visão geral de favela do Rio Imagem: Tiê Vasconcelos/Voz das Comunidades

Colunista do UOL

19/03/2020 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Diante do avanço da pandemia do coronavírus, vários governantes suspenderam as aulas para que as escolas não se transformassem em focos de transmissão. Surgiu então um novo dilema. Em muitas casas onde os pais trabalham, as crianças que não vão para a escola ficam com os avós - justamente os cidadãos da faixa etária com maior taxa de mortalidade pela doença.

Normalmente sensato, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, sugeriu para o problema uma solução tão simples quanto difícil de ser cumprida. "É preciso que os pais não deixem os filhos com os avós nesse momento", disse ele. Especialmente para as famílias com menor poder aquisitivo, esse desafio é quase insolúvel.

"O que se percebe no discurso das autoridades sanitárias, nos discursos dos políticos, é uma visão de classe média", observa o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão. "A sociedade brasileira é muito mais complexa".

O caso da assistente administrativa Fabíola Alves, de 36 anos, moradora do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, ilustra bem essa complexidade. Sem alternativa, diante da obrigatoriedade de trabalhar, ela teve que fazer o que sempre fez: manter o filho Guilherme, de oito anos, sob os cuidados do pai e da madrasta. Ambos estão no grupo de risco do coronavírus por dois motivos: o pai, de 76 anos, teve pneumonia, a madrasta tem 61 anos e sofre de bronquite.

"Conversei com meu filho, expliquei a gravidade da situação. Resolvi deixar Guilherme de segunda a sexta com eles", conta Fabíola, que é separada e cria o menino sozinha. "Na sexta vou chegar, tomar um banho, fazer a higiene rigorosa e pegar Guilherme para passar o fim de semana comigo. Assim, acho que não coloco meu pai e minha madrasta em risco". Após o fim de semana, o garoto volta apara os avós.

"Dei orientações a ele: entra em casa, não encosta no vovô e nem na vovó, não pode dar beijo, vai direto para o banheiro, joga a roupa dentro do tanque, toma um banho completo e volta à vida normal com eles", diz ela. "Lavando a mão de hora em hora".

Fabíola e Guilherme - Reprodução - Reprodução
Fabíola e e o filho Guilherme
Imagem: Reprodução

Nas favelas do Rio de Janeiro, há muitos casos como o de Fabíola, de mães que criam os filhos sozinhas e não têm alternativa para seguir a recomendação do ministro Mandetta.

Nessas áreas, o drama do coronavírus tem um elemento a mais. "A doença tem um grupo mais vulnerável: os idosos. Depois, tem os idosos com problemas de saúde pré-existentes. Mas há uma terceira dimensão que não está sendo levada em conta e é tão importante quanto essa para definição da vulnerabilidade, que é a condição econômico-social", alerta o ex-ministro Temporão.

"Vários estudos demonstram que famílias de baixa renda desenvolvem condições crônicas de saúde entre 5 a 15 anos mais cedo que o extrato de melhores condições socioeconômicas", explica ele. Isso deveria ser motivo para evitar deixar as crianças com os avós, mas na prática não é o que acontece.

Ana dos Santos Viana também é separada, mãe de Bernardo, de três anos, e mora na comunidade da Coréia, na zona Norte do Rio. Quando sai para trabalhar, ela lança mão de um recurso muito comum nas comunidades: deixa a criança com uma senhora, Carmem, de 60 anos, que é cuidadora informal dos pequenos do lugar. Além de Bernardo, a cuidadora toma conta de mais seis crianças.

"A médica acha melhor eu deixar meu filho com a minha mãe, porque com a cuidadora a chance de pegar a doença das outras crianças, ou vice-versa, é maior", lamenta Ana. "Mas é difícil tomar essa decisão. Minha mãe é quase cega, tem 63 anos, tem saúde debilitada".

Ana e Bernardo - Reprodução - Reprodução
Ana e seu filho Bernardo
Imagem: Reprodução

"Foi feita uma proposta que, na prática, é inexequível", diz Celso Ramos, infectologista, professor da UFRJ e membro da Academia Nacional de Medicina. "Muitas famílias só têm a mãe, e, mesmo nas que têm pai e mãe, há aquelas em que os dois têm que trabalhar".

Ramos sugere medidas preventivas. "Quando esse contato de crianças com avós é inevitável, o ideal é manter as crianças apenas entre a casa dos pais e a casa dos avós, desde que avós e pais mantenham o distanciamento social. Assim a chance de contaminação diminui, mas isso não é fácil".

Depois da entrevista ao UOL, a empresa onde Fabíola Alves trabalha decidiu dar férias coletivas que vão começar na segunda-feira. Ela respira aliviada, mas várias outras mães que não têm outra alternativa senão deixar os filhos com os avós para trabalhar continuam angustiadas, sem saber como seguir a orientação do ministro Mandetta.