Nosso Gambito da Rainha: Brasil teve ídolo mundial de xadrez na Guerra Fria
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Ao contar a história da jovem que supera seus próprios fantasmas para se tornar estrela internacional do xadrez, a série Gambito da Rainha encantou o público de tal forma que se tornou a mais assistida desde a criação da Netflix. Além dos conflitos pessoais, a protagonista Beth Harmon teve que enfrentar outro grande desafio: o explosivo contexto da Guerra Fria, nos anos 60 e 70, em que Estados Unidos e União Soviética disputavam a hegemonia política.
À medida que a moça vai se tornando um grande prodígio dos tabuleiros, tanto organizações religiosas anticomunistas quanto o governo americano tentam cooptá-la para representar seus ideais. O objetivo era transformar a jogadora em uma rival capaz de abalar a supremacia dos soviéticos, à época absolutos no xadrez.
No Brasil de cinco décadas atrás, um enxadrista teve na vida real experiência parecida com a da fictícia Beth Harmon. Hoje relegado a injusto ostracismo, o gaúcho Henrique Mecking foi o único ídolo popular do xadrez nacional. Ficou famoso como Mequinho, o grande talento precoce desse esporte.
Aos 13 anos, ganhou o campeonato brasileiro de adultos e aos 20 anos tornou-se Grande Mestre Internacional. O cartel vitorioso de Mequinho chamou a atenção do mundo.
Seu reconhecimento era tal que tornou-se jogador do Flamengo e foi ovacionado no Maracanã antes de uma partida do time rubro-negro. Tornou-se atração no programa do Chacrinha, campeão de audiência então. Virou personagem de música de Raul Seixas.
A notoriedade do enxadrista foi usada pelo presidente Emílio Garrastazu Médici para passar uma ideia de sucesso de seu governo, em plena ditadura militar (1964-1985).
KGB, ditadura militar e religião
A possibilidade de desafiar os maiores enxadristas do mundo na época, o russo Boris Spassky e o americano Bobby Fischer, poderia transformá-lo em campeão mundial, algo que Médici planejava usar em sua propaganda da mesma forma como fez com a seleção brasileira de futebol campeã do mundo no México em 1970.
No clima da Guerra Fria, vencer um campeão enxadrista soviético seria especialmente útil para a o discurso anticomunista de então. Mequinho sofreu grande pressão por isso. Algumas vezes queixou-se de perseguição da KGB, o serviço secreto da União Soviética.
A história do jogador brasileiro fica ainda mais parecida com a da protagonista da série Gambito da Rainha quando se sabe de sua aproximação com grupos religiosos conservadores.
Isso aconteceu em 1979, depois que ele teve uma doença grave. Ao contrário de Beth Harmon, que se recusou a defender os ideais religiosos, Mequinho mergulhou no catolicismo. Tornou-se teólogo, hoje se diz um dos profetas do Apocalipse e volta e meia escreve mensagens anticomunistas nas redes sociais.
Um prodígio dos pampas
Desde que a mãe de Mequinho, dona Maria José, deu a ele o jogo de damas, o menino mostrou que as disputas no tabuleiro eram sua especialidade: já então ganhava dos adultos que o desafiavam na pequena cidade gaúcha de São Lourenço do Sul.
Mas logo que aprendeu as regras do xadrez não quis saber de outra atividade. "As peças eram mais bonitas e o jogo tinha mais possibilidades, isso me atraiu", recorda ele.
Um vizinho, o delegado Mena Barreto, ensinou-lhe as regras e algum tempo depois fez uma profecia. "Ele disse que eu tinha potencial para ser campeão do mundo", conta Mequinho.
O desempenho do menino nos anos seguintes parecia confirmar a avaliação do policial. Aos sete anos Mequinho foi vice-campeão da sua cidade entre adultos. Com 13 anos foi levado pelo pai ao Rio de Janeiro para disputar o campeonato brasileiro. Para espanto geral, Mequinho acabou se tornando campeão.
Empurrãozinho do general Médici
A carreira continuou ascendente. Com 14 anos, ganhou no campeonato sul-americano o título de Mestre Internacional.
Ao fim da adolescência, de acordo com os planos da família, Mequinho deveria abandonar os torneios de xadrez para dedicar-se aos estudos. Mudou-se para Porto Alegre aos 18 anos para estudar Física na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Estudava bastante, mas seu sonho era dedicar-se integralmente ao tabuleiro.
Até que soube que o presidente Emílio Garrastazu Médici, o terceiro general da Ditadura Militar a comandar o país, visitaria a capital gaúcha. Através de um amigo, conseguiu uma audiência.
Apresentado como jovem prodígio que tinha conquistado vários títulos muito cedo, ele despertou o interesse do presidente. Contou a Médici a dificuldade de continuar praticando o esporte sem apoio. Sua explicação foi convincente.
"Vou resolver o seu problema, vou lhe dar um cargo no Ministério da Educação e Cultura (MEC)", disse o presidente. Pouco depois do encontro, Mequinho foi nomeado assessor do MEC e mudou-se para o Rio. Conheceu o responsável pela pasta, o coronel Jarbas Passarinho, a quem se refere como uma "pessoa espetacular", que dava todo o apoio.
Popstar nerd
Aos 20 anos tornou-se Grande Mestre Internacional e sua imagem passou a ser ainda mais difundida na imprensa.
Nesse ano, 1972, apareceu várias vezes no programa do Chacrinha, campeão de audiência na TV, e em uma das oportunidades jogou uma partida contra vários adversários ao mesmo tempo. Passou a ser oficialmente jogador do Flamengo e foi ao Maracanã lotado dar o pontapé inicial em uma partida.
Sua popularidade à época o levou a ser citado na música Super-Heróis, de Raul Seixas. Diz a letra: "Quem é que no Brasil não reconhece/ O grande trunfo do xadrez?/ Saí pela tangente disfarçando uma possível estupidez/ Corri para um cantinho pra dali sacar o lance de mansinho/ Adivinha quem era? Mequinho! ".
A ligação com um presidente da Ditadura gerou críticas na imprensa. "Mas eu não ligava para isso", diz ele. "Em um torneio realizado em Petrópolis conheci um jogador de um país comunista que disse para mim: 'Aqui não há ditadura. No meu país, se algum jornalista fizer críticas como os jornalistas fazem aqui, o jornal acaba na hora'".
Aquele país comunista
Até hoje, Mequinho não cita o nome da União Soviética, mas atribui a agentes "daquele país comunista" os acidentes e os problemas de saúde e psicológicos que impediram vários jogadores de xadrez da época de ameaçarem a hegemonia dos jogadores russos.
A trajetória de Mequinho continuou em ascensão acentuada. Em 1977 ele alcançou a terceira posição no ranking da Federação Internacional de Xadrez. Em 1978, no entanto, começou a sentir os sintomas de uma grave doença autoimune, a miastenia, que afeta a comunicação entre os sistemas nervoso e os músculos.
Foi internado em um hospital de Houston, nos Estados Unidos, mas os médicos não conseguiram curá-lo.
Em maio de 1979 já não conseguia mastigar, não tinha força para escovar os dentes e o corpo não aquecia, sentia frio permanentemente, mesmo no verão carioca "Enfraquecia dia a dia, entrei em depressão", diz. "Me deram 15 dias de vida".
Foi quando uma senhora chamada Tia Laura, da Renovação Carismática, foi até ele e rezou. Mequinho diz que sentiu melhoras no mesmo dia. Progrediu até ficar 99% curado.
Status: profeta do Apocalipse
A cura milagrosa que Mequinho diz ter experimentado o levou a conhecer um dos líderes do movimento da Renovação Carismática no Brasil, o padre Edward Dougherty, americano naturalizado brasileiro. "Fui aos retiros dele e gostei muito", elogia. "Ele me ajudou a escrever o livro 'Como Jesus Cristo Salvou a Minha Vida'".
A maior estrela do xadrez brasileiro hoje vive em Taubaté (SP), tem alimentação natural, faz halterofilismo e luta caratê.
Além de jogar xadrez online, mantém-se invicto em partidas simultâneas há 47 anos e em jogos rápidos é atualmente o líder nacional. Quando se vê em dificuldades frente a um adversário, recorre a orações para reagir.
Diz que ficará conhecido mundialmente como Profeta do Apocalipse, inimigo do país comunista que ele não nomeia. Sua missão, diz, é impedir que o comunismo reprima a mensagem de Cristo.
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