Guerra cultural de Bolsonaro prejudica combate à pandemia, diz pesquisador
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Desde antes da eleição à Presidência da República, Jair Bolsonaro deixou claro que seu principal objetivo é apagar as marcas que, segundo ele, os governos de esquerda deixaram nas instituições brasileiras. Essa guerra cultural, baseada em fake news e informações sem comprovação científica, é elemento tão central de seu governo que se transformou em obstáculo no enfrentamento à pandemia de covid-19.
A análise é do pesquisador João Cezar de Castro Rocha, professor doutor de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que está lançando o livro "Guerra cultural e retórica do ódio" (Editora Caminhos).
"Só há governo se houver política pública. Política pública, por definição, não pode ser pautada por ideologia", explica Rocha. "Tenho que respeitar os dados objetivos da realidade".
Por isso, diz o pesquisador, enquanto Bolsonaro e os bolsonaristas se debatem em informações falsas sobre o coronavírus (benefícios não confirmados da cloroquina e da ivermectina, malefícios da vacina), o país sofre com a falta de medidas concretas de enfrentamento da pandemia.
"O Ministério da Saúde não tem seringa. Falta oxigênio! Qual a dificuldade de reunir outros governadores para mandar oxigênio a Manaus?", questiona Rocha. Essas providências não são tomadas porque, diz ele, é da natureza do governo agir sem conexão com os dados concretos.
Nessa entrevista, o professor mostra as origens desse confronto de narrativas (que remontam a um livro escrito na década de 80 por agentes da repressão da Ditadura Militar), admite que Bolsonaro não tem rival hoje no Brasil como líder de vocação messiânica, mas aponta um paradoxo: "Quanto maior o êxito do bolsonarismo, que é a guerra cultural, maior o fracasso do governo Bolsonaro":
UOL - O Brasil tem um presidente que minimiza a pandemia causadora da morte de 200 mil brasileiros, defende terapias ineficazes para a covid-19, desdenha da vacina e distribui fake news sobre desastres como as queimadas da Amazônia. Como chegamos até aqui?
João Cezar de Castro Rocha - A minha hipótese é de que, mesmo antes de o governo principiar, o eixo definido foi a guerra cultural. Nesse momento que vivemos, a maneira pela qual a pandemia de covid é tratada é a evidência concreta da centralidade dessa guerra cultural.
No sentido bolsonarista, isso quer dizer: dividir o mundo entre os meus e os outros. Esses outros não são apenas adversários, são inimigos que devem ser eliminados. Nessa visão de mundo bélica não há lugar para a consideração de dados objetivos da realidade.
Porque não é possível dividir o mundo dessa forma. Só é possível se eu lanço mão o tempo todo de intrincadas teorias conspiratórias que atribuem a todo "outro" intenções perversas e malévolas. O colapso total do tratamento da covid 19 é fruto direto da centralidade da guerra cultural na percepção de Bolsonaro.
O bolsonarismo, movimento político de mobilização de massas, está entre os mais exitosos da história republicana brasileira. O Bolsonaro como líder de vocação messiânica não tem rival hoje no Brasil. Nós precisamos dizê-lo com clareza. Temos que assumir isso.
O sr. diz no livro que o êxito do bolsonarismo significa a derrota do governo Bolsonaro. Pode explicar essa ideia?
Num país que sempre foi exemplo mundial de campanhas de vacinação em massa, de dezenas de milhares de pessoas em 24h, hoje há um grupo de pessoas que formam o movimento antivacina. Esse movimento foi formado antes da existência da vacina.
Isso é resultado do paradoxo que pode levar esse país ao caos que nunca vivemos.
Só há governo se houver política pública. Política pública, por definição, não pode ser pautada por ideologia. Tenho que respeitar os dados objetivos da realidade.
Só posso vacinar uma pessoa se eu tiver seringa. Sem isso, não vacino as pessoas. E o Ministério da Saúde não tem seringa. Falta oxigênio! Qual a dificuldade de reunir outros governadores para mandar oxigênio a Manaus?
Por isso digo que quanto maior o êxito do bolsonarismo, que é a guerra cultural, maior o fracasso do governo Bolsonaro.
Como nasceu essa tática da guerra cultural adotada pelo governo Bolsonaro?
A minha hipótese é que Jair Bolsonaro foi o ponto de fuga não planejado de um caldo de cultura que no Brasil começa nos anos 80, com a redemocratização, Vai engrossando nos anos 90 e começa a explodir com a chegada do PT ao poder.
Esse caldo de cultura é de direita, que rapidamente se transforma em reacionário e que tem a seguinte percepção da história do Brasil: há uma permanente e iminente ameaça comunista. Os comunistas estão sempre prestes a tomar o poder. Inicialmente tentaram tomar o poder pelas armas. Quando fracassaram pelas armas, segundo essa interpretação, os comunistas se desviaram para o campo da cultura, aparelhando as instituições.
Nessa concepção, ganhar as eleições é apenas mais um passo, e nem é o passo mais importante. O principal é destruir todas as instituições que se julga que foram aparelhadas. Não é algo casual ou desvio de rota, é um projeto.
Quando esse projeto se tornou explícito?
Na primeira viagem internacional de Bolsonaro depois de eleito, ele foi para os Estados Unidos. Em um jantar na embaixada do Brasil em Washington, tinha, de um lado, Olavo de Carvalho, de outro, Steve Bannon. Bolsonaro levantou para fazer um brinde e disse o seguinte: "Nós temos que desconstruir muita coisa, de desfazer muita coisa, para depois recomeçarmos a fazer".
A ideia por trás desse projeto é que a nova direita brasileira é muito crítica em relação aos governo militares da Ditadura. Demorei muito a entender, porque para minha geração, a direita abraçou a Ditadura Militar. Mas para a nova juventude de direita a Ditadura não é exemplo, porque tinha que ser pior.
Para eles, os militares ganharam a guerra das armas mas perderam a guerra da cultura. Daí a radicalidade desse governo. O importante não é governar, o importante é destruir todo o edifício de direitos assegurado pela Constituição de 1988. É o anticomunismo de almanaque.
Em que medida o livro feito por militares na década de 80, o Orvil, influencia nessa guerra cultural?
O Orvil é um documento do Exército que foi preparado entre 1985 e 1988 como resposta de um ressentimento em relação ao livro "Brasil: Nunca Mais", que denunciava as torturas do regime militar, publicado em 1985.
Esse texto foi feito por agentes do Centro de Informações do Exército, que era um dos centros de repressão mais temidos pela tortura, assassinato e desaparecimento de corpos dos guerrilheiros. É um catatau de 956 páginas em que eles faziam o contrário do "Brasil: Nunca Mais". Se o livro denunciava os crimes da Ditadura, o Orvil, que é livro ao contrário, denuncia crimes da esquerda armada. O "Brasil: Nunca Mais" se baseia em processos do Superior Tribunal Militar, o Orvil se baseia em arquivos secretos do Exército. Enquanto um livro diz nunca mais à tortura, outro diz que nunca mais a esquerda tomará o poder.
O Orvil é uma lista tediosa de crimes, de nomes. Mas há 30 páginas em que é possível identificar as diretrizes do governo Bolsonaro
Como Jair Bolsonaro se transformou no protagonista desse projeto?
Como um deputado corporativista do baixo clero que só tratava das Forças Armadas e forças de segurança pública conseguiu ter 58 milhões de votos? Em 2011, Bolsonaro tenta ser presidente da Câmara. Teve apenas três votos. Mas no discurso de apresentação da candidatura ele toca em dois temas que permite ampliar seu horizonte político. O primeiro tema foi bater forte na Comissão Nacional da Verdade.
Ele deixa o Exército desonrado, considerado como rebelde e indisciplinado, mais interessado em aumentar seus proventos. O presidente Ernesto Geisel chamou-o de mau militar. O oficialato tinha desprezo por ele, chegou a ser proibido de entrar na Academia Militar das Agulhas Negras, onde ele se formou.
Ao atacar a Comissão da Verdade, ele se reconciliou com o alto oficialato, o que permitiu que ele chegasse à Presidência da República. No discurso de lançamento da candidatura à presidência da Câmara, em 2011, já falava em kit gay, que estimula o homossexualismo e a promiscuidade. E dizia que a Comissão da Verdade é uma Comissão da mentira.
O retorno ao seio do alto oficialato das Forças Armadas de um lado e de outro a adesão a essa luta contra a fantasiosa ideologia de gênero e a denúncia de inexistente kit gay, garantiram a sua posição.
A alta rejeição da atividade política pelos brasileiros certamente o ajudou bastante
As manifestações de 2013, ninguém sabe o que elas foram, continuam sendo enigmáticas. Mas houve um paradoxo. A política tradicionalmente preconcebida foi rejeitada de maneira absoluta. Foi emblemático aquele momento nas manifestações em que pessoas apareceram nas manifestações e quase foram linchadas. Ninguém queria saber de partidos. A política foi completamente rejeitada.
Ao mesmo tempo, a política tornou-se a paixão do brasileiro. Hoje, no Brasil, a paixão nacional não é a seleção brasileira, não é o futebol. O cidadão médio brasileiro hoje não sabe escalar a seleção brasileira. Mas o cidadão médio brasileiro hoje sabe que o STF tem onze ministros, se for politizado sabe ainda se são garantistas ou punitivistas..
Isso cria a pós-pós-política. Você ao mesmo tempo abole a política, mas ela retorna como a paixão do dia a dia. Isso tem uma consequência e Bolsonaro é fruto dessa consequência. Se você aboliu a política como mediação institucional, mas a política é sua paixão absoluta, só tem uma forma de resolver essa equação: o ativismo, a ação direta, o governo direto. Você não quer governar através de ministério, mas das redes sociais. Coloca a massa na rua para pressionar os deputados.
Não sabemos ainda interpretar ainda as manifestações de 2013, mas podemos falar desse resultado, o paradoxo da pós-pós-política. O desejo de governar sem mediações institucionais, apenas pela voz da maioria, tem nome na história da humanidade: isso se chama ditadura.
O que fazer para evitar a escalada autoritária?
A resposta mesmo ninguém tem. Mas tenho algumas hipóteses. Em primeiro lugar: a direita e a extrema-direita venceram o debate político na esfera da linguagem. A esquerda perdeu.
Mas o mais importante é que é preciso abandonar a caricatura do Bolsonaro e passar para a caracterização do bolsonarismo. Isso nos permitirá entender que o bolsonarismo, como esse caldo de cultura, antecede Bolsonaro e pode sucedê-lo. Então, a primeira providência é abandonar a obsessão com a figura do presidente.
Deixa ele falar. Não se deve disputar narrativas com ele.
O que o episódio da tentativa de golpe de Trump, que é um personagem bastante parecido com Bolsonaro, pode nos ensinar?
Em janeiro de 2017 o secretário de imprensa de Trump disse que a multidão na posse do republicano era a maior da história. Imediatamente, a imprensa do mundo inteiro fez comparações com fotos aéreas. O resultado era humilhante em relação à posse de Barack Obama, que tinha três ou quatro vezes mais público.
Foi quando uma conselheira do Trump deu uma entrevista e negou que fosse uma mentira. Disse ela que o secretário de imprensa deu "fatos alternativos".
Pois bem: o governo Bolsonaro e o governo Trump são máquinas de fatos alternativos. Eles não existem sem a criação de narrativas polarizadoras.
O limite para isso é a realidade. Não adianta dar cloroquina para as pessoas que estão precisando de balões de oxigênio em Manaus.
O que proponho é que esqueçamos Bolsonaro e Pazuello. Vamos mostrar o colapso total da administração do país. As pessoas têm que entender que o que está acontecendo em Manaus seria evitável. Bastaria reunir os balões de oxigênio em três ou quatro estados. É a realidade.
O que aconteceu com Trump foi o esgotamento das narrativas e a incapacidade de produzir fatos.
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