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Historiador Luiz Antonio Simas: 'É preciso fazer o Brasil dar errado'
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Concentração de renda, racismo, violência, machismo, desemprego. Na interpretação do historiador carioca Luiz Antonio Simas, esses e outros ingredientes dramáticos, tão frequentes no cotidiano nacional, não devem ser interpretados como sinais de que o Brasil fracassou. "Isso aqui é um projeto bem-sucedido de país", apregoa. "Um projeto colonial, fundado na ideia de exploração da terra, na exploração dos corpos, no genocídio do indígena, na escravização do negro".
No diagnóstico feito por Simas, em entrevista à coluna, é justamente esse roteiro de exclusão que o país vem seguindo à risca desde a colonização. Para que as mazelas nacionais sejam superadas, o historiador defende que o projeto cruel, que tem dado certo até aqui, seja modificado.
"Acho que a gente tem que começar a encarar a necessidade de fazer o Brasil dar errado, nessa perspectiva", sugere.
Ele tem apontado em palestras, aulas e nos 21 livros publicados a alternativa ao rumo trágico que a vida brasileira tomou: o saber do povo, forjado na superação cotidiana das dificuldades e tantas vezes ignorado pelas instituições oficiais.
"Nas miudezas, num certo amiudamento dos fazeres, na prática da rua, na prática das comunidades, a gente pode começar a reconstruir uma ideia mais generosa de país", acredita Simas.
Com o cuidado de não romantizar o precário, ele acredita que a bússola para esse caminho pode ser encontrada na história dos povos oprimidos.
"Esse é o país em que a chibata de bater no corpo foi transgredida em baqueta de bater no coro do tambor, para reconstruir o mundo a partir do samba", diz o historiador, citando uma ideia que incluiu em um dos seus livros.
A seguir, tópicos da entrevista de Luiz Antonio Simas. A íntegra pode ser ouvida no podcast Outro Mundo.
Projeto de Brasil que deu certo
É uma coisa que eu escrevo há anos: isso aqui é um projeto bem-sucedido de país, um projeto colonial, fundado na ideia de exploração da terra, na exploração dos corpos, no genocídio do indígena, na escravização do negro. Isso tudo foi projeto.
Acho que a gente tem que começar a encarar a necessidade de fazer o Brasil dar errado, nessa perspectiva. Porque a gente precisa encarar essa realidade que é dura, mas é com ela que a gente tem que trabalhar, que o país foi projetado para ser o que é, foi projetado para ser excludente, concentrador de renda, heteropatriarcal, branco. E até agora tem sido. Então, a nossa tarefa, na verdade, é transgredir esse projeto bem-sucedido de horror, e começar a fazer o Brasil dar errado, nessa perspectiva que a gente tem.
O que fazer?
Eu poderia responder com aquela sinceridade absoluta dizendo que não tenho a menor ideia. Mas acho que é necessário a gente saber que é um jogo. E algumas vezes a lógica do jogo é a gente não ser aniquilado em um certo momento. Se a gente imaginar que isso aqui é uma espécie de jogo de capoeira, é preciso reconhecer que, da mesma forma que o ataque é fundamental, também é fundamental a arte da esquiva, a arte da ginga, a arte do drible. É fundamental construir formas de vida que permitam que a brasilidade consiga sobreviver.
A gente está em um momento em que devemos ter estratégia de sobrevivência, que não deve ser meramente reativa. Por isso, nem sou muito adepto da palavra resistência, assim isolada, porque resistir é você se colocar na posição de ser pautado pelo outro. Acho que a resistência deve ser acompanhada da palavra invenção. Nós temos que inventar a vida também.
Um país mais generoso
Penso muito no futebol por esse aspecto, um certo jeito brasileiro de jogar futebol que está se perdendo. O futebol inglês tinha a bola alçada na área, o futebol escocês tinha o passe, o futebol brasileiro acabou sendo o esporte do drible. Não tínhamos como alçar boa na área porque nossos jogadores são mais baixos. É a estratégia que eu chamo de "garrinchamento" do mundo: se você tem um marcador na sua frente, é preciso ver que a arte do drible, que constroi a vida, é você ir para o vazio. Acho que incessantemente temos que buscar isso.
Me apego muito na reconstrução da vida cotidianamente. Porque nas miudezas, num certo amiudamento dos fazeres, na prática da rua, na prática das comunidades, a gente pode começar a reconstruir uma ideia mais generosa de país. Mas é um processo longo, não há dúvida.
O resgate da política
A crise de representação política é mais que evidente. De certa maneira, tem horas que a gente tem que perceber que o lance que vai permitir a jogada que vai te levar para o gol não vai ser o lance convencional, aquele lance que já está marcado, viciado. Ao mesmo tempo que acho que a gente não pode desqualificar a política e acho interessante a ideia de construir militância partidária institucional, acho que a gente deve pensar também nas bordas desse processo, nas frestas desse processo, na construção de sociabilidades que driblem o caminho meramente institucional e reconstruam modos de vida que são profundamente comunitários.
Eu sou profundamente impressionado com uma frase que o Paulo Freire falou pouco antes de morrer. Em um livro de estudos sobre a mídia, disse que estava com a impressão de que a gente está vivendo um tempo com muito comunicado e pouca comunicação, muito comunicado e pouca comunidade. Então a gente vive uma era de comunicados.
Toque de poesia na política
De certa maneira, a política institucional está muito viciada pela lógica do comunicado e para essa geração de garotos e garotas essa política institucional se desgastou, inclusive em relação a pensar a utopia. Até acho que é importante que a gente trabalhe no concreto, acho que é necessário trabalhar numa política do dia a dia, de redução de danos. Mas ao mesmo tempo conciliar isso com a dimensão de transformação e generosidade, acho que é o grande desafio.
Não consigo pensar uma política que não seja acompanhada da poética e nem consigo entender uma poética que seja desprovida do sentido político. Sobretudo na circunstância que a gente vive, no país que a gente vive, com uma desigualdade brutal. Com todos os problemas que a gente tem. Mas sinceramente, esses fazeres vão ser construídos na experiência cotidiana. Não estou mais acreditando naquelas grandes soluções que passam por uma certa tradição do messianismo brasileiro, cada vez mais acredito em uma política cotidiana que é poética e que se faz sobretudo a partir da prática. Não acho que seja inconciliável com a luta institucional.
A sabedoria da escassez
A cultura de terreiro consegue se reconstruir constantemente a partir da experiência do precário. Falo na posição de branco de classe média que conseguiu estudar no Brasil: nós que temos uma vida mais confortável, a gente fica apavorado e sem rumo porque de alguma maneira nós não vivenciamos a experiência do precário que marcou a maior parte do povo brasileiro ao longo da nossa história.
O Milton Santos, o grande geógrafo, falava da sabedoria da escassez. Como é que em algumas situações de escassez você constroi formas de vida que, ao superar a escassez, inventam novos sentidos para o mundo. Isso não é romantizar o precário, porque o precário não tem que ser romantizado, é um horror. Mas ter a dimensão que incessantemente a vida aqui foi o tempo todo reconstruída a partir do precário, nas brechas da violência.
Uma coisa que escrevi em um livro meu e gosto de ressaltar: esse é o país em que a chibata de bater no corpo foi transgredida em baqueta de bater no coro do tambor, para reconstruir o mundo a partir do samba.
Eu sinceramente não acredito em nada do que venha de uma certa burguesia brasileira que tem tudo muito fácil, que é muito acomodada na posição que tem. Eu realmente acredito numa sabedoria que é engendrada pela escassez, nas ruas, que o tempo todo vai recriando sentidos de mundo. E que está presente no samba, nas rodas de rima, no rap, no baile, nos corpos que dançam, que celebram, que transgridem, portanto, essa certa normatividade que nos acomete o tempo todo.
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