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Chico Alves

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Após sofrer racismo, filha de senegaleses quer mostrar a África ao Brasil

Fatou Ndiaye, tendo ao fundo os mapas do Brasil e do Senegal - Ilustração: Camila Pizzolotto
Fatou Ndiaye, tendo ao fundo os mapas do Brasil e do Senegal Imagem: Ilustração: Camila Pizzolotto

Colunista do UOL

15/08/2021 04h00

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Ser alvo de ataques racistas em um caso de repercussão nacional é experiência dramática para qualquer pessoa, mais ainda para uma adolescente. Aos 15 anos, a filha de senegaleses Fatou Ndiaye experimentou esse sabor amargo.

Colegas da escola de classe média alta em que ela estudava, no Rio, destilaram no ano passado altas doses de preconceito em um aplicativo de mensagens. Foram denunciados à polícia e Fatou tornou-se a primeira vítima no território fluminense a usar a nova lei contra o racismo.

A partir de então, a jovem mostrou-se forte e passou da defesa ao ataque. É hoje influencer nas redes sociais, colunista na Folha de S. Paulo e recentemente encontrou uma forma de combater a discriminação pela raiz.

Aos 16 anos, decidiu divulgar a história e as belezas contemporâneas do continente dos pais, a África, Criou e está à frente da Afrika Academy, uma empresa que terá cursos de história, geopolítica e cultura africana no geral, além de prestar consultoria a empresas e atuar nas escolas, revisando material didático e capacitando professores sobre o tema.

Nessa entrevista à coluna, Fatou fala da desinformação e dos mitos que os brasileiros sustentam sobre um dos berços da nossa nacionalidade. "Entender a história da África é entender como a gente se organiza como civilização, como a sociedade se organiza", diz ela. "Além disso, conseguimos entender várias questões sociais que assolam o Brasil".

A adolescente corrige a noção errônea de que a África precisa ser salva. "A gente precisa de políticas de desenvolvimento", esclarece. "São países novos que foram sabotados durante toda sua existência pela Europa e pelas políticas neocolonialistas".

Ela rebate a ideia de que conhecer a África só serve para quem estuda a história negra ou para quem é negro. "Muitas das questões sociais que a gente vê aqui no Brasil têm a ver com o fato de que somos mal resolvidos com as nossas dores", ensina Fatou,

A íntegra da entrevista pode ser ouvida no podcast Outro Mundo:


Conhecimento do brasileiro sobre a África

Eu acredito que a gente tem dois pontos. O primeiro é aquele brasileiro que tem uma visão muito folclorizada da África. Aquele que acha que a gente dança o dia inteiro, toca tambores o dia inteiro, que a gente não quer falar de desenvolvimento, não quer falar de economia, que a gente vive na selva dos animais, etc. e tal.

E tem a visão do brasileiro ignorante que acha que a África é uma pobreza extrema, que a gente não tem nada a oferecer para o mundo, que a gente não consegue produzir nenhum tipo de epistemologia. A gente tem esses dois extremos quando se trata do imaginário brasileiro acerca da África.

Mitos comuns dos brasileiros

Eu gosto muito de transpor esses mitos para o Brasil. É como se eu resumisse a América Latina inteira à Amazônia e dissesse que vocês andam de onça, entendeu? Inclusive perguntaram pra mim se eu ia para a escola de elefante quando morava no Senegal. Eu morava no centro de Dakar, que é como o centro do Rio de Janeiro.

Lógico que a gente tem uma savana riquíssima, assim como o Brasil tem uma fauna e flora riquíssimas. Conseguem naturalizar ter uma metrópole como São Paulo e ao mesmo tempo ter uma Amazônia, mas não entendem que enquanto na África a gente tem essa natureza diversa, tem também grandes metrópoles.

Existe também o mito de que a África não está fazendo nada e precisa ser salva. Esse é um dos mitos mais perigosos, inclusive que a grande mídia passa sempre: o de que você vai salvar a África doando um real por dia.

A África não precisa ser salva. A gente precisa de políticas de desenvolvimento, até porque os países africanos são novos. As independências africanas aconteceram na década de setenta, na década de oitenta, as mais precoces na década de sessenta. São países novos que foram sabotados durante toda sua existência pela Europa e pelas políticas neocolonialistas. Então, a gente não precisa de salvação, a gente precisa de políticas de desenvolvimento. Não vai ser um real por dia que vai mudar a vida dos africanos.

Importância do Brasil conhecer a história da África

Criaram esse mito de que história da África só serve se você quer conhecer a história negra ou se você é negro. Mas eu acho que entender a história da África é entender como a gente se organiza como civilização, como a sociedade se organiza. O mundo começou na África.

Além disso, conseguimos entender várias questões sociais que assolam o Brasil. Falo isso pela perspectiva de alguém que já esteve lá. Pra você resolver os problemas de qualquer lugar, tem que entender o passado. Muitas das questões sociais que a gente vê aqui no Brasil tem a ver com o fato de que somos mal resolvidos com as nossas dores. Isso tem muito a ver com a nossa falta de interesse em África, tanto sobre a história quanto sobre o cenário atual.

O que é a Afrika Academy

É uma empresa que tem o intuito de disseminar o ensino de África no Brasil. A gente atua em vários segmentos. Vamos lançar em breve nossos primeiros cursos pra aqueles que queiram aprender mais sobre história, geopolítica e cultura africana no geral. Também vamos em breve ter cursos de idiomas.

Atuamos em empresas que queiram expandir seus negócios para a África e também com consultoria de diversidade. Trabalhamos com escolas, revisão de material didático e capacitação de professores. A gente tem uma equipe de professores, doutores, juristas, economistas, engenheiros, africanos e brasileiros. A gente sabe que entender história da África é entender a história do mundo. Sempre soubemos que isso é muito importante.

Ensino de África nas escolas

O problema da Lei 10.639 (que obriga o ensino de história e cultura africana nas escolas) é que é uma das leis brasileiras mais curtas. Ela não prevê sanção e não diz como deve ser aplicada, esse é o grande problema.

Então, se a escola der um mês de África, se der dez anos de África, se só falar de escravidão, se só fizer uma alusão à África, pode dizer que está cumprindo a lei. E se não cumprir também, não tem problema nenhum porque, como eu falei, ela não prevê sanção.

Acho que é uma lei poderosa, mas que tem que ser revista. Nosso ensino já é muito eurocêntrico. Sem aplicar essa lei, fica mais eurocêntrico ainda.


Houve punição para o caso em que sofreu racismo?

Está rolando ainda o processo legal e não posso falar muito. Mas a gente denunciou e correu atrás. Está acontecendo ainda a ação. Por causa da pandemia, todo processo que já era lento ficou mais lento ainda. Mas a gente segue nessa luta.

O racismo piorou no Brasil?

Não é que o racismo aumentou, ele sempre esteve na mesma intensidade. A diferença é que agora existem todos os mecanismos pra mostrar. Com a internet, eu pego o meu celular e gravo. Foi o que aconteceu comigo. Ao mesmo tempo a gente também está tendo mais mecanismos para denunciar. Com a inserção de mais pessoas negras no ensino superior a gente vem tendo mais meios para denunciar e fazer a diferença.

Lógico que a gente ainda tem leis muito fracas. A maioria dos casos acaba caindo em injúria racial, que tem uma pena mais branda. Mas no geral a gente realmente está caminhando lentamente para conseguir extinguir esses casos e ter mais mecanismos de defesa.


Sugestões para os legisladores

Abolir a lei de injúria racial. Esse foi o mecanismo que a Justiça encontrou pra não punir as pessoas, porque a lei de injúria racial tem uma pena extremamente branda. A lei contra o racismo tem uma pena boa, tem pena de reclusão, tudo nos conformes. Mas muitos casos acabam caindo em injúria racial, nem tem uma pena direito, é muito branda. Eu com certeza aboliria a lei de injúria racial, porque mais atrapalhou do que ajudou. A lei de racismo era boa.

Também é preciso ter leis mais claras, mais descritivas sobre o que é considerado racismo. O primeiro caso a ser indicado por racismo no Rio de Janeiro foi o meu. Alguém teve que falar que eu não sou gente, alguém teve que falar que iria me vender na OLX para que fosse considerado racismo. Se alguém fizesse só uma piada sobre o meu cabelo ser crespo, não seria considerado ao racismo. Então, acho que falta primeiro uma compreensão do sistema judiciário do que é racismo e a partir daí a gente pode reformular as leis e torná-las mais claras para termos julgamentos mais justos.