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Chico Alves

REPORTAGEM

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'Vamos ter que reconstituir a cidadania brasileira', diz Francisco Bosco

Francisco Bosco - Ilustração: Camila Pizzolotto
Francisco Bosco Imagem: Ilustração: Camila Pizzolotto

Colunista do UOL

12/09/2021 04h00

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Nos últimos anos, o debate político no Brasil parece que se desgarrou da lógica. O bolsonarismo é o fenômeno mais visível dessa desconstrução. No 7 de setembro, multidões em verde e amarelo foram às ruas de Brasília, São Paulo e Rio para apoiar o presidente Jair Bolsonaro, desconsiderando a desastrosa gestão do combate à pandemia de coronavírus, a alta nos preços da comida, do gás e dos combustíveis e o agravamento da crise hídrica.

Como explicar que, mesmo com popularidade em viés de queda, Bolsonaro mantenha entre 25% a 30% de apoiadores cativos? Filósofo, escritor e debatedor do programa Papo de Segunda, no GNT, e ex-presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte) no governo Dilma Russeff, Francisco Bosco tem interessantes reflexões sobre o atual momento do país, que podem ajudar a entender o que está acontecendo.

Para o fervor dos bolsonaristas, Bosco argumenta que conservadores, ultraconservadores e reacionários não têm mais os problemas econômicos como principal preocupação. "Eles temem perder a hegemonia recém-conquistada do modo de vida conservador", explica o filósofo, nessa entrevista à coluna.

É preciso, porém, reconhecer que há turbulências no outro lado. Nos debates, parte da esquerda também adota certo grau de sectarismo, jogando no mesmo balaio qualquer grupo ideológico que não esteja integralmente alinhado com suas convicções.

"Se você considera que toda tradição liberal ou que toda a tradição conservadora é um lixo, é fascista, você está caricaturando essa tradição", diz Bosco. "Ninguém gosta de ser caricaturado, demonizado. E aí quem sofre esse processo vai fazer o mesmo pro outro lado".

Diretor do documentário "O mês que não terminou", sobre as manifestações de junho de 2013, ele responde se há uma linha de ligação entre aquele momento e o quadro político que estamos vivendo.

A seguir, tópicos da entrevista. A íntegra pode ser ouvida no podcast Outro Mundo.

Crise econômica x modos de vida

É importante entender que nós saímos de um momento de hegemonia das democracias liberais - mais liberais que democráticas - e entramos num momento nacional-populista de caráter conservador. Para os conservadores, os ultraconservadores e reacionários, o fundamental não são a inflação, a conta de luz, o dólar alto. As questões econômicas não são, portanto, fundamentais para orientação do voto e apoio político. São questões mais relacionadas a modos de vida. É o que está acontecendo agora

Esses grupos que apoiam Bolsonaro, mesmo que heterogêneos, têm uma característica comum: eles temem perder a hegemonia recém-conquistada do modo de vida conservador. Eles têm muito medo de que o Brasil volte a retomar a agenda liberal no sentido civil.

Existe uma relação entre a emergência dos chamados movimentos identitários e a reação ultraconservadora, que encontrou no Bolsonaro o seu líder.

Lógica de grupo dos bolsonaristas

A outra característica do bolsonarismo é um fenômeno que a psicanálise estudou muito profundamente: as lógicas de grupo. O Brasil passou por um processo a partir de 2013, com as chamadas jornadas em junho, que foi de súbita politização da sociedade que se encontrava em estado de narcolepsia democrática.

Como eu falei, as democracias liberais eram mais liberais que democráticas, tinham um déficit de soberania popular. A gente era governado por tecnocracias, por relações espúrias entre Executivo e Legislativo. Junho de 2013 deu um choque nisso, um choque de soberania popular. E, a partir daí, com os acontecimentos seguintes - a Lava Jato, o impeachment da Dilma, a hiperpolarização -, muitas pessoas que eram apolíticas descobriram uma identidade. Descobrir uma identidade, descobrir o pertencimento a um grupo é acontecimento psíquico que a gente não pode subestimar nunca.

O que está acontecendo agora com os bolsonaristas? Eles estão num beco sem saída, porque descobriram uma identidade política que é o bolsonarismo e fizeram dessa identidade uma espécie de religião, confundiram o seu próprio "eu" com essa ideologia e agora eles não podem abandonar essa ideologia.

Seria como abandonar uma religião, abandonar o seu próprio "eu", que foi profundamente identificado com isso. Então eles não têm pra onde ir.

Fanatismo ultraideologizado

A gente já viu isso em outros momentos do século 20, em outros movimentos sociais ultraideologizados. Isso vai desde do nazismo até o que aconteceu na União Soviética, sobretudo - mas não apenas - sob Stálin. Eu sei que tem muita gente que não gosta dessa comparação, mas estou entre os que defendem a pertinência da categoria de totalitarismo e outras analogias entre essas formas totalitárias.

Então, os bolsonaristas são fanáticos ultraideologizados que se acostumaram a gozar com uma lógica de grupo e estão em pânico com a possibilidade de que esse grupo se desfaça. Por tudo isso, eles ficam comprando essas pautas malucas do Bolsonaro.

Caricatura recíproca

O que eu venho chamando de lógica de grupo não é um fenômeno exclusivo dos bolsonaristas, da direita radical, da extrema-direita. Este é um problema que atinge também a esquerda. E isso instaurou no debate público uma dinâmica de retroalimentação, porque quanto mais cada lado se entrincheira nas suas próprias posições, mais isso produz um acirramento da lógica de grupo adversária.

Então, se você considera que toda a macroideologia a que pertence um grupo, se você considera que toda tradição liberal ou que toda a tradição conservadora é um lixo, é fascista, você está caricaturando essa tradição, está demonizando essa tradição. Ninguém gosta de ser caricaturado, demonizado. E aí quem sofre esse processo vai fazer o mesmo pro outro lado.

Assim, a pessoa de centro-esquerda vai virar comunista, vai virar petralha, vai virar corrupto, pedófilo. É um processo de caricatura recíproca.

Reconstrução da cidadania brasileira

Teremos que nos reconstruir na esfera pública. O debate público do Brasil está completamente envenenado. O custo psíquico da degradação da sociabilidade no Brasil está muito grande. A gente vai ter que reconstruir isso e evidentemente reconstruir a cidadania brasileira, porque o pacto da Constituinte, o pacto da Constituição de 1988, bem ou mal vinha sendo sacramentado por todos os governantes da redemocratização, em maior ou menor grau.

Pela primeira vez, a dimensão cidadã inclusiva da nossa Carta foi atacada frontalmente. Então, a gente vai ter que reconstruir também o projeto de uma nação democrática inclusiva. Vai ai ter que ser uma reconstrução geral. Vai ser difícil.

Sectarismo no debate público

O dissenso é constitutivo na democracia e ele é mais que aceitável: é desejável. Em qualquer sociedade de classes você vai ter antagonismos e é importante que esses antagonismos sejam explicitados, tanto no debate público quanto no sistema partidário. Isso é fundamental.

Mas é preciso que cada agente do debate público - com as redes sociais isso quer dizer qualquer pessoa - exerça uma metarreflexão sobre seu papel. A minha orientação é a de recusar dogmatismos, sectarismos, a ideia de que o campo a que você se filia está incondicionalmente certo em todas as circunstâncias e o campo que é seu antagonista está incondicionalmente errado em todas as circunstâncias.

Além disso, é preciso rever a postura de exigir alinhamento incondicional em quaisquer posições e procurar cancelar o outro, seja cancelar nas redes ou transformar uma pessoa que tem afinidade fundamentais com você em um inimigo por conta de eventuais dissensos pontuais.
Essa dinâmica está degradando a vida política brasileira. O que está acontecendo é que muita gente não fala o que pensa, por medo. Porque existe um ambiente intimidatório.

Reflexos de 2013
Eu tenho analogias um pouco incômodas. Porque tanto junho de 2013 quanto o bolsonarismo são os fenômenos que emergem em resposta a uma crise da democracia liberal. Eles contêm analogias, formalmente falando: são insurgências da sociedade civil contra a disfunção institucional do país. Então, em 2013 vimos a primeira pedra atirada no modus operandi dos poderes no Brasil.

Todo mundo vai se lembrar que o leitmotiv (tema dominante) de junho de 2013 era o "não me representa". Foi um ataque da sociedade civil às instituições, notadamente ao Congresso Nacional, mas não apenas. Inclusive o Congresso foi ocupado. A gente lembra daquelas imagens de pessoas subindo no teto do Congresso Nacional e outros prédios de Legislativo de outras cidades também foram atacados.

Então, naquele momento abriu-se uma espécie de buraco na credibilidade das instituições no Brasil. E o bolsonarismo foi um dos destinos que essa abertura assumiu. Existe sempre uma polêmica aí, porque quando se fala isso tem gente que ouve que você está falando que existe uma relação direta causal entre junho 2013 e a eleição de Bolsonaro. Não existe. Mas eu considero que aquele momento não pode ser pensado nem exclusivamente sob o critério do destino que efetivamente teve, que foi o bolsonarismo, mas nem tampouco pode ser pensado como se o destino efetivo nada tivesse a ver com aquele acontecimento.

Aquele foi um acontecimento inaugural, que por maus caminhos de toda a sorte e que poderiam não ter acontecido acabou levando ao bolsonarismo. Mas acho que o que é importante pensar aí é o risco que se corre quando se tenta promover transformações sociais atacando as instituições por fora, em vez de tentar reformá-las radicalmente por dentro.

Algum aspecto positivo?
Eu não acredito que o acirramento das contradições vá produzir uma situação que seria subitamente regeneradora. Isso não faz parte das minhas convicções. Portanto, eu acho que a gente está vivendo um momento tétrico, horrendo, que vai exigir do país uma reconstrução em praticamente todos os níveis da sua experiência.