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Chico Alves

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bloquear o Telegram por não cumprir ordem judicial não é censura

Alexandre de Moraes e Telegram - Adriano Machado/Reuters e Dado Ruvik/Reuters
Alexandre de Moraes e Telegram Imagem: Adriano Machado/Reuters e Dado Ruvik/Reuters

Colunista do UOL

20/03/2022 04h00

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Pode parecer surpreendente para alguns, mas as leis foram feitas para serem cumpridas. Essa noção talvez seja difícil de assimilar para quem vive no país em que o presidente diariamente esculhamba as instituições, comete crimes de responsabilidade e chega a ensaiar golpe de Estado sem sofrer nenhuma sanção. Apesar da impunidade deste e de outros poderosos, a bagunça brasileira não chegou ao ponto de abolir a Constituição e as prerrogativas do Poder Judiciário.

Sendo assim, determinações do Supremo Tribunal Federal (STF) devem ser cumpridas. Quem discordar, que recorra da decisão — mas cumpra. Isso vale também para empresas transnacionais, como o Telegram.

Como se sabe, o dono do aplicativo de mensagens, o russo Pavel Durov, ignorou várias determinações do Supremo, inclusive para que o Telegram desse informações sobre a monetização e as doações feitas aos perfis de Allan dos Santos, o bolsonarista conhecido por espalhar fake news e ofender autoridades.

Depois de várias tentativas fracassadas de fazer cumprir a decisão, o ministro Alexandre de Moraes considerou que a empresa demonstra "total desprezo pelo ordenamento jurídico brasileiro" e mandou bloquear o funcionamento do aplicativo no país.

Ontem, Moraes estabeleceu um novo prazo para efetivar a punição: até o fim da tarde de hoje, o Telegram terá que indicar à Justiça um representante oficial no Brasil; informar as providências adotadas para "o combate à desinformação e à divulgação de notícias fraudulentas, incluindo os termos de uso e as punições previstas para os usuários que incorrerem nas mencionadas condutas"; bloquear o canal "Claudio Lessa" e excluir imediatamente os links no canal oficial de Jair Bolsonaro que permitem baixar documentos de um inquérito sigiloso e não concluído da Polícia Federal.

Até à noite de sábado, somente o último item tinha sido cumprido, então o risco de bloqueio do aplicativo continua.

Não foram poucas as reclamações contra a punição aplicada por Moraes. Bolsonaristas e também alguns antibolsonaristas argumentam que é censura.

Volta e meia usam o exemplo dos Estados Unidos, onde a legislação não comportaria impor limitação semelhante à liberdade de expressão. Também há quem argumente dizendo que a medida é ineficaz, já que pode ser driblada através de VPNs, um tipo de rede privada.

Sem dúvida, sustar o funcionamento de um aplicativo de comunicação não é algo desejável. Porém, diante do desdém do Telegram com a Justiça brasileira, não restou alternativa. Afinal, todas as outras plataformas toparam negociar com a Justiça algum tipo de controle ou limitação ao conteúdo tóxico e mentiroso. Somente o Telegram ficaria acima das leis brasileiras?

Nos Estados Unidos, por exemplo, o Telegram excluiu perfis que incitavam à violência e abortou a criação de uma moeda própria por determinação da Justiça americana. Se cumpre as leis por lá, por qual motivo não cumpriria por aqui?

Censura é um movimento autoritário, imotivado, discricionário, sem amparo nas leis democráticas. Não é o caso do bloqueio determinado por Moraes ao Telegram. Repetir que toda liberdade tem limite e corresponde a responsabilidades é um clichê, mas não deixa de ser verdade por isso.

Sobre a eficiência da punição imposta pelo ministro: é certo que as milícias digitais vão tentar driblar o bloqueio com vários recursos. Mas muitos especialistas em internet concordam que cada dificuldade acrescentada ao processo exclui uma fatia do público. Dificilmente as tias e tios do Telegram vão recorrer ao VPN.

A decisão de Moraes é um gesto extremo. Necessário para o momento extremo que vive a democracia brasileira.

É preciso que os democratas tenham consciência disso, antes que seja tarde demais.

Algumas vezes o Brasil nos leva a esquecer esse preceito básico, mas, por incrível que pareça, as leis foram feitas para serem cumpridas.