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Uma viagem perturbadora de cinco horas à mente de Bolsonaro
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Mentiras, negacionismo, teorias da conspiração, mais mentiras, homofobia, golpismo, ainda mais mentiras, acusações sem provas, falseamento da história, outra saraivada de mentiras... Esse foi o repertório apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) na entrevista que concedeu ontem ao Flow Podcast. Mesmo que não seja novidade, ainda assim acompanhar por cinco horas o encadeamento de tantas ideias despropositadas emitidas pelo político mais poderoso do país não deixa de ser uma experiência perturbadora.
Quem procurar por momentos de lucidez na maratona verborrágica de Bolsonaro sairá com muito pouco ou quase nada para apresentar.
A sequência de lorotas já amplamente desmentidas que o presidente continua a repetir, o raciocínio alucinado sobre economia ou política, a falta de compostura no cargo são marcas a que lamentavelmente nos acostumamos. Vistos assim, em conjunto, são elementos que deixam ainda mais evidente a distopia em que o Brasil se meteu.
Os historiadores terão muito trabalho para explicar por quais motivos integrantes poderosos das Forças Armadas escolheram alguém como aquele que esteve ontem no Flow para liderar seu projeto de volta à política. Também vão ter dificuldade para justificar a adesão de grandes empresários e banqueiros a alguém com ideias tão toscas sobre economia. Mais fácil de entender, talvez, mas não menos distópica, é a participação dos chefões neopentecostais nesse governo retrógrado.
A entrevista de Bolsonaro ao podcast impressiona pelo conjunto da obra.
É possível dividir a retórica bolsonariana em algumas categorias, mas a base principal são as mentiras. Tem de todos os tipos.
Acusações sem provas são comuns. Nesse tópico, o presidente disse, por exemplo, que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), manipulou o trabalho da delegada Denisse Ribeiro, que trabalhava no inquérito das fake news. Também inventou que o programa "Mais médicos" estava infestado de agentes secretos cubanos querendo implantar a guerrilha. Como de hábito, não apontou nada de concreto para sustentar o que disse.
Exercitou outra modalidade de cascata, a que tenta reescrever a história do período da ditadura. Teve a coragem de dizer que "ninguém no regime militar prendeu um deputado por um dia". Como se sabe, vários parlamentares foram para a cadeia. Mais que isso: há casos trágicos como o do deputado Rubens Paiva, que foi sequestrado por agentes da repressão e morto. Outra barbaridade: "Nenhum jornalista foi preso no regime militar". O caso de Wladimir Herzog, o jornalista que foi preso e assassinado na cadeia, é um entre vários.
Modalidades de mentiras especialmente cruéis são as que abordam a pandemia, todas já exaustivamente desmentidas por especialistas. Com quase 700 mil mortos, Bolsonaro continua defendendo cloroquina, desestimulando a vacina - já fala, inclusive, contra um hipotético imunizante para a varíola dos macacos —, criticando governadores pelo isolamento social (que ele apelida de "política do fique em casa e a economia a gente vê depois"), elogiando a desastrosa gestão Pazuello e se gabando de que defende a autonomia médica (sem citar que uma força-tarefa do Ministério da Saúde foi ao Amazonas no auge da crise sanitária para obrigar médicos a receitar o tal "kit covid").
Mais uma vez, o presidente teve o desplante de dizer que não há corrupção em seu governo. Finge ignorar a denúncia contra seu ex-ministro do Meio Ambiente, acusado no STF de associação com contrabandistas de madeira; o escândalo em que dois pastores indicados por ele intermediavam verbas no Ministério da Educação; a compra de kits de internet para escolas que não tinham internet; a aquisição de tratores superfaturados; a contratação sem concorrência de empresa para asfaltar vários quilômetros de estrada e por aí vai. A relação é extensa.
Contra as urnas eletrônicas, Bolsonaro repetiu todos os argumentos falsos que disparou na famosa live de julho do ano passado, algo tão irresponsável que o YouTube excluiu da plataforma.
Mas a live no Flow Podcast teve algo além da repetição de mentiras. Em alguns raros momentos, Igor, o apresentador, fez perguntas incômodas (mesmo que sem cobrar respostas minimamente convincentes).
- E os R$ 89 mil de Queiroz para Michelle? O presidente mais uma vez diz que o dinheiro era para ele, como pagamento de um empréstimo, sem explicar por qual motivo usou a conta bancária da mulher.
- E a rachadinha? "É um assunto do Flávio. Eu respondo pelos meus atos", diz Bolsonaro. Mas a transferência de delegados da PF e limitação dos poderes do Coaf são assuntos do presidente.
- E por qual motivo o Auxílio Brasil não foi aumentado antes, só agora às vésperas da eleição? "Não tinha clima para fazer no passado", respondeu o presidente, sem explicar direito o que seria esse tal "clima". Acabou desconversando: "Por que o PT não fez?".
A entrevista teve também momentos inusitados em que Bolsonaro praticamente se confessa culpado. Como na acusação feita em 2018 pela Folha de S. Paulo de que ele recebia auxílio-moradia como deputado, apesar de ter imóvel em Brasília. "Não foi ilegal, foi imoral", admitiu.
Em outro surto de sinceridade, o presidente define como "tráfico de influência" a causa de uns deputados receberem mais recursos de emendas do orçamento secreto que outros. O responsável pela distribuição da grana é o aliado Arthur Lira.
Se juntarmos tudo isso aos momentos constrangedores em que Bolsonaro usa tom de duplo sentido para dizer que não tem "boca de veludo" ou para comentar a declaração de Igor sobre tomar vacina ("Tenho certeza que você vai tomar", disse, com um sorriso lúbrico), temos um levantamento completo sobre o que se passa na mente de Bolsonaro.
Acostumados com a enxurrada diária de absurdos, muitos nem se espantam mais com esse quadro aterrador.
Mas se alguém colocar a entrevista ao Flow em uma cápsula do tempo, os habitantes do futuro certamente vão perguntar, ao examinar o material: "O que deu na cabeça dos brasileiros, afinal?"
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