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Chico Alves

REPORTAGEM

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É racismo religioso, diz padre Júlio Lancellotti sobre demonizar culto afro

O padre Júlio Lancellotti é coordenador da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo - Arquivo pessoal
O padre Júlio Lancellotti é coordenador da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

11/08/2022 14h38Atualizada em 11/08/2022 17h23

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O comentário feito por Michelle Bolsonaro, criticando um vídeo em que o presidenciável Luiz Inácio Lula da Silva aparece em um culto de religião afrobrasileira, deixou transparecer o preconceito que a primeira-dama tem quanto a esse tipo de crença. Também o deputado Marco Feliciano (PL-SP) mostrou intolerância ao qualificar a cerimônia como algo "maligno".

Um dos nomes mais respeitados da Igreja Católica do Brasil, padre Júlio Lancellotti classifica as falas de Michelle e Feliciano como racismo religioso. "Grande parte das pessoas que integram essas religiões são negras", comentou ele, à coluna. "Pessoas que são extremamente desrespeitadas, maltratadas e alguns até mortos".

Em entrevista à coluna, Lancellotti diz que a ideia de "demônio" associada a essas religiões é equivocada e manipulada.

UOL - Como o sr. vê as declarações da primeira-dama Michelle Bolsonaro e do deputado Marco Feliciano (PL-SP), que criticaram Lula por participar de um culto de religião afro, como se fosse algo "maligno"?

Padre Júlio Lancellotti - Não é uma opinião só deles. Tanto a senhora primeira-dama quanto o deputado e outros representam uma parcela grande da população brasileira que pensa assim. Haja vista os ataques sistemáticos, crescentes e ininterruptos aos templos e aos lugares sagrados das religiões de matriz africana.

Não há uma proporção de ataques religiosos como os que são feitos a essas religiões. Se hoje há grupos religiosos que são atacados de maneira cruel são os de matriz africana.

Ao que atribui esse tipo de declaração?

Isso é um resquício do fundamentalismo, de uma mentalidade escravagista que obrigou os nossos antepassados de matriz africana, os escravizados que vieram para o Brasil, a achar no sincretismo religioso uma saída.

Hoje, as religiões de matriz africana são muito presentes em todos os lugares do Brasil. Então, como nós dizemos que vivemos em uma democracia, as religiões de matriz africana devem ser respeitadas por todos, inclusive pelas autoridades.

Essa ideia de "demônio" associada a essas religiões é equivocada, manipulada e desrespeitosa.

Talvez a melhor forma de classificar essas manifestações seja como "racismo religioso", não acha?

Sem dúvida. É racismo religioso, porque grande parte das pessoas que integram essas religiões são negras. Pessoas que são extremamente desrespeitadas, maltratadas e alguns até mortos. Temos vários casos.

Eu acho incrível, por exemplo, que a mentira que se consagrou de que o vereador negro Renato de Freitas invadiu uma igreja em Curitiba tenha levado ele a ser cassado pela terceira vez na Câmara Municipal. Quanto ao deputado que demoniza, desrespeita e inspira o ódio contra as religiões afro não acontece nada.

Invadir um recinto religioso de matriz africana para destruir, queimar, matar ou arrasar não dá em nada. Não tem a celeuma que teve a fake news de Curitiba. O Renato não invadiu a igreja. O racismo é estrutural e dentro disso, está o racismo contra as manifestações religiosas de matriz africana.

Qual é a gravidade disso vindo dessas personalidades políticas de projeção nacional?

Eles legitimam o preconceito e incitam o ódio.

O objetivo não seria eleitoral?

Eu acredito que tenha um pragmatismo político nisso, na medida em que grandes grupos religiosos neopentecostais e setores fundamentalistas ristãos, sejam católicos ou evangélicos, se identificam com esse discurso.


Nós usamos conceitos errôneos e depreciativos, falando de macumba, demonizando. São todas formas de depreciar e que são muito usadas pelos grupos fundamentalistas cristãos católicos ou evangélicos.


Qual é, na sua opinião, a grande contribuição das religiões afro para a sociedade brasileira?


As religiões de matriz africana fazem parte da nossa identidade brasileira, da nossa identidade afro-ameríndia. Há uma lacuna na nossa história que traria uma incompreensão. E uma negação histórica de toda a escravidão, que não acabou, e de toda a forma cruel como os deportados africanos sofreram no Brasil. É impossível entender a nossa identidade afro-ameríndia sem as religiões de matriz africana.

Queria lembrar que uma figura do Brasil, da Bahia, como Santa Dulce dos Pobres, e a amizade dela e o respeito dela e o respeito mútuo com a mãe Menininha do Gantois. Duas grandes mulheres que, apesar de serem de diferentes religiões, se respeitavam e sabiam conversar.

É bom deixar claro então que as religiões afro não têm nada de demoníaco.

Imagina! Demoníaca é a fome, é a miséria. Isso é que é demoníaco, porque destroi a vida.