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Livro expõe tutela dos militares sobre governos civis pós-ditadura
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Em um país cuja história é marcada por pelo menos oito golpes militares desde a Independência, nunca é demais lembrar o óbvio: nas democracias, as Forças Armadas obedecem ao governo civil. Quando presidentes ou monarcas se submetem à vontade de seus exércitos, a lógica da política está invertida e as instituições são mera fachada.
No Brasil, depois de 21 anos de regime militar, os generais aprenderam a ser discretos. Um excelente livro recém-lançado mostra que, mesmo antes do início do governo de Jair Bolsonaro, quando os fardados da reserva - e alguns da ativa - assumiram cargos importantes no Executivo, a caserna já exercia influência velada sobre os governos civis que se sucederam desde o fim da ditadura.
A extensão dessa tutela dos fardados sobre os presidentes eleitos é exposta pelo jornalista Fabio Victor em "Poder camuflado: Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro" (Companhia das Letras). Leia aqui o primeiro capítulo do livro, O exaustivo trabalho de pesquisa e entrevistas do autor ilumina os movimentos que os generais fizeram nas sombras nos últimos 37 anos.
Ao chegar à última página, resta ao leitor uma questão inevitável: pode ser considerado uma democracia um sistema político como o brasileiro, em que a casta dos oficiais militares é intocável e ameaça as instituições a qualquer gesto para limitar seus privilégios?
A ascendência dos fardados sobre o poder civil se verifica em momentos-chave, desde o início do período que chamamos de redemocratização.
O livro relata a ordem dada em 1985 pelo general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército, a José Sarney quando ele hesitava em aceitar o cargo de presidente, após a morte de Tancredo Neves. Cogitava repassar a responsabilidade a Ulysses Guimarães.
"Sarney, deu muito trabalho organizar todo este evento para amanhã e está previsto de acordo com a Constituição que você assuma, e portanto seu argumento acho que não vale. Boa noite, presidente", comandou Leônidas. E, como se sabe, assim foi feito.
O mesmo ministro do Exército atuaria junto aos constituintes para que atribuições das Forças Armadas não fossem modificadas radicalmente. O ponto principal foi manter os militares como responsáveis pela garantia da lei e da ordem, algo sacramentado no controvertido artigo 142 da Constituição, hoje citado pelos golpistas como reconhecimento de um inexistente "poder moderador".
Nos mandatos seguintes, a relação do Executivo com os interlocutores verde-oliva foi tanto melhor quanto menos os presidentes insistiam em temas do desagrado dos generais.
Manter e se possível aumentar remuneração, investimento e status sempre foram meta dos chefes militares. Assim como a reafirmação do acordo de impunidade quanto aos crimes cometidos na ditadura, materializado na Lei de Anistia.
Foi justamente quando o governo Dilma Rousseff aprofundou os trabalhos da Comissão da Verdade e cogitou mudança no conteúdo de ensino das academias militares que os generais começaram a sair das sombras para embarcar na empreitada que culminaria na eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.
O livro deixa claro que não foi Bolsonaro que atraiu os fardados para o governo, mas que na verdade foi ele o escolhido pelos chefes das Forças Armadas para representá-los no projeto de tomada do poder pelo voto.
Nesse esforço, de aparência democrática, valeu fazer ameaças indiretas ao Supremo tribunal Federal, como no tuíte do general Eduardo Villas Bôas em 2018, pouco antes do julgamento do habeas corpus reivindicado por Luiz Inácio Lula da Silva - que acabou negado. Valeu ressuscitar o fantasma do comunismo. Valeu apelar para valores da família. Valeu fake news. Valeu quase tudo.
Para alcançar seu objetivo, os fardados não tiveram pudor de se deixar representar por Bolsonaro, alguém que o Tribunal Militar definiu, em 1988, como homem que "revelou comportamento aético e incompatível com o pundonor militar e o decoro da classe". Nos quatro anos de mandato, como se viu, fez jus ao conceito de seus julgadores.
Fabio Victor guia o leitor pelos bastidores por onde se movem os generais, para mostrar como eles fazem para perpetuar essa intangibilidade, inalterada mesmo após o fim da ditadura.
Compreende-se também porque, mesmo com a eleição de Lula para seu terceiro mandato, é preciso saber que tudo continuará como está. Os petistas sabem - e o livro mostra suas declarações nesse sentido - que não há condições e não é hora de modificar essa tutela exercida pelas Forças Armadas.
Porém, os quatro anos de governo Bolsonaro serviram ao menos para alguma coisa: os militares se expuseram mais e os brasileiros puderam identificar melhor suas competências e incompetências.
Se é verdade que a tutela vai continuar, também é verdade que agora sabemos mais sobre os nossos tutores.
Isso pode ser um trunfo para debates futuros, "Poder camuflado" é leitura de grande valia para ajudar a imaginar o que será possível fazer para o Brasil se tornar uma democracia plena, em que os governantes digam às Forças Armadas o que fazer, e não o contrário, como acontece hoje.
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