Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Sob Bolsonaro, qualquer palavra soa vazia diante da destruição
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* Raphael Tsavkko Garcia
Parece contraditório, mas talvez uma das coisas mais difíceis na cobertura diária sobre os atos de Bolsonaro e seu governo seja manter o público interessado e os especialistas e jornalistas motivados para escrever sobre o tema.
Não falta assunto. Bolsonaro e seu governo são talvez a fonte mais farta de notícias negativas, absurdos e descalabros da história recente da República, e no entanto a quantidade é tão avassaladora que acabamos inundados. Muitas vezes não dá para saber onde um absurdo começa e outro termina ou mesmo como é possível condensar tanta coisa em um espaço limitado - e, claro, tornar o conteúdo interessante para o leitor que talvez comece a se sentir anestesiado.
É fato que, de tanta notícia ruim, uma hora nosso cérebro cansa e começa a deixar de lado todo o horror dos 240 mil mortos por covid que o governo tem em sua conta, considerando todas as declarações estapafúrdias do presidente e suas constantes mentiras.
Por vezes algumas vitórias merecem ser comemoradas, como a suspensão dos canais do YouTube da central de fake news bolsonarista, Terça Livre, mas em geral é sempre uma espiral para as profundezas.
Enquanto escrevia as primeira linhas deste texto, abria as notícias do dia e não encontrava uma única relacionada ao presidente - na verdade, apenas uma, em que ele não é a estrela, mas nela ele tão somente exige ter acesso a mensagens relacionadas ao caos que se tornou a Lava Jato. Talvez seja um respiro, talvez seja apenas a calmaria que precede mais uma tempestade. Ou talvez estejamos apenas cansados.
Não faltam os que culpam o BBB pela aparente redução de notícias negativas relacionadas ao governo, mas a verdade é que as pessoas precisam de um descanso, de uma diversão - e também o programa tem colocado parte da esquerda dita identitária (também lacradora) diante do espelho e o que estão vendo é algo horroroso e que, no fim, ajudou a eleger o presidente e a fortalecer a extrema direita. Ou seja, de certa maneira, estamos falando de Bolsonaro, mesmo que sem sua nada ilustre presença.
O mesmo acontece com a notícia de que líderes indígenas acusam missionários de estarem instigando aldeias da Amazônia contra a vacina. Novamente, temos o espectro de Bolsonaro presente - o ódio anti-indígenas, a tentativa de limpeza étnica, o negacionismo da pandemia e da eficácia da vacina e o fundamentalismo religioso que é a cara de sua ministra da Mulher, Família e Direitos humanos, Damares Alves.
E os indígenas têm sido abandonados. Pior, estão sendo ativamente vitimados por uma política genocida do governo federal, que não apenas faz vista grossa para a situação desesperadora de diversas tribos diante da pandemia - de madeireiros, mineradores e outros invasores -, mas que ativamente apoia esses grupos e incita o extermínio de povos inteiros.
Em conversa com o blog, o professor da Universidade Federal da Bahia e um dos pesquisadores que mais intimamente conhecem a questão indígena brasileira, Felipe Milanez, disse que o governo é responsável por levar a pandemia a regiões de forte presença indígena no Mato Grosso do Sul.
"Tem um médico na região do Xingu que atende os indígenas Kamaiurá, que defende a cloroquina - ele sequer possui diploma reconhecido no Brasil. E ele passou a ter relações sexuais com uma paciente indígena Kamaiurá, ele engravidou a menina, é acusado de ter feito um aborto ilegal (ele é investigado pelo Ministério Público) e foi afastado não pelos crimes, mas para descansar, de férias. Foram 14 ou 15 mortes no pólo base desse posto", afirmou Milanez.
Os altos índices de mortalidade entre indígenas não podem ser só explicados pelo acaso e pela baixa imunidade deles diante de mais uma doença de branco, mas sim por ações e estratégias montadas pelo governo brasileiro.
"Considero um genocídio," Milanez acrescentou, dizendo ainda que "independe de um Tribunal de Haia julgar Bolsonaro, porque ele lidera, e [o genocídio] é praticado pela estrutura do governo."
A letalidade da pandemia é maior onde o governo está presente, ele diz. E explica:
"Nesse período da pandemia, especialmente abril, maio e junho de 2020, foram os meses em que mais se espalhou, foi quando o governo fez um grande esforço para autorizar invasões de terras indígenas, dificultou assistência com a proibição de funcionários da Funai visitarem aldeias, começou a minar medidas para evitar invasões de terras."
Milanez ainda afirma, categoricamente, que o espalhamento da covid-19 pelo interior e em tribos indígenas "tem a ver com economia de saque dos territórios indígenas. A mineração espalhou coronavírus no Pará, seja a legal ou a ilegal - que é incentivada pelo governo, não apenas tolerada."
Mas, mesmo assim, muitos de nós têm dificuldade em achar o fio da meada. Parece que gritamos no vazio, que nada do que seja denunciado fará diferença. Sim, os índices de aprovação do presidente caem cada vez mais, mas o Congresso está em suas mãos e a sua sobrevida é inegável. É trágico chegar a esta conclusão enquanto jornalista, mas, sob Bolsonaro, sinto que qualquer palavra soa vazia diante de tamanha destruição.
* Raphael Tsavkko Garcia é jornalista e doutor em direitos humanos pela Universidade de Deusto. Contribuiu para veículos como Foreign Policy, Undark, The Washington Post, Deutsche Welle, entre outros.
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