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Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

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Democracia não será salva por Lula, mas pelo povo que enterra seus mortos

10.mar.2021 - O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em primeiro discurso após anulação de todas as suas condenações na Lava Jato - Marcelo D. Sants/Framephoto/Estadão Conteúdo
10.mar.2021 - O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em primeiro discurso após anulação de todas as suas condenações na Lava Jato Imagem: Marcelo D. Sants/Framephoto/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

14/03/2021 12h27

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* Vinícius Rodrigues Vieira

Há quem diga que Lula, com a confirmação da decisão monocrática do ministro Edson Fachin, salvará a democracia. Na Folha deste domingo (14), o professor André Singer -- petista histórico e ex-porta-voz no primeiro governo petista (2003-2007) -- relata que, com a anulação dos processos contra o ex-presidente, lembrou-se de um amigo que, a propósito do destino da presidência de Dilma Rousseff, citou Filoctetes, peça de Sófocles, sobre uma vítima de ostracismo. Tudo para chegar à conclusão de que Lula voltou para salvar nossa democracia.

Não são apenas os líderes que decidem o destino da democracia -- compreendida muito além da realização de eleições livres e competitivas. É sobre os ombros do povo que repousa o fardo de decidir como somos governados. O mesmo povo que elegeu Collor, FHC, Lula e Dilma também votou em Bolsonaro, um político que, como todos sabiam, tinha sido, na prática, expulso do Exército nos anos 1980 sob a suspeita de planejar atentados terroristas, louva torturadores e prega em praça pública a morte de opositores.

Não se insiste aqui, portanto, na tese infundada e surrada de que bolsonarismo e o petismo -- ou até mesmo o lulismo, conforme definido pelo mesmo Singer em 2009 --, sejam polos equivalentes. A corrente política liderada pelo atual presidente ataca sempre que possível as instituições e chancela um genocídio fundamentado na postura obscurantista do governo que tem lidado da pior forma possível com a pandemia. Lula, por sua vez, jamais flertou com um golpe ou coisa parecida, muito embora setores de seu partido costumem louvar experiências autoritárias, para dizer o mínimo.

Desconfio que, nas analogias com o teatro grego, estamos mais para Antígona do que para Filoctetes, citada por Singer em seu libelo. Tal como Antígona e sua irmã, Ismênia, estamos neste momento mais interessados em enterrar nossos mortos com o mínimo de dignidade acima de qualquer disputa política.

Não que a política não tenha contribuído para o atual estado de coisas: ela está no centro de nossa tragédia. Ao constatar que dia após dia, com uma média de 2 mil mortos em cada intervalo de 24 horas, ainda não tenhamos iniciado uma revolta contra o governo, lembro-me do que Carlos Lacerda, líder da UDN e precursor do moralismo lavajatista, à época preso pela ditadura que ajudara a instalar em 1964, teria ouvido do irmão ao iniciar uma greve de fome para se opor ao AI-5: "[O]s jornais não estão noticiando nada disso; as praias estão repletas; está um sol maravilhoso e está todo mundo na praia; ninguém está tomando conhecimento disso! Então você vai morrer estupidamente. Você quer fazer Shakespeare na terra da Dercy Gonçalves?"

Não me arrogo o papel de intérprete do povo, mas lanço uma hipótese que nada contra a toada atual. Os brasileiros -- todos nós filhos de relações sociais e econômicas mais incestuosas que o casamento de Édipo e Jocasta -- não vão querer nem Bolsonaro nem Lula em 2022. Se direita e esquerda insistirem em oferecer esses dois candidatos e, por consequência, nos conduzirem a um segundo turno entre eles, teremos não uma aventura épica, mas uma nova tragédia, a começar por um recorde de votos nulos e brancos e abstenções.

Derrotado ou vitorioso, Bolsonaro ampliará suas ambições golpistas. Na vitória, vai se considerar detentor de um mandato para solapar ainda mais as instituições. Na derrota, ensaiará um golpe a la Trump, com chances de sucesso significativo dado o antipetismo e antilulismo que emana das fileiras militares. Lula, se eleito e empossado, terá pouquíssimas condições de reeditar o sucesso econômico de seu segundo mandato em especial. Viveremos mais quatro anos de dura instabilidade.

Não deixaria de ser irônica, porém, a possibilidade de uma nova presidência lulista. O ex-presidente teria que lidar com todos os fantasmas que, em última instância, foram gestados em seus mandatos. O alinhamento em demasia com a China deu força ao agronegócio e à desindustrialização, e a aliança com o Centrão -- sem mover uma palha para desidratá-lo -- pavimentou o caminho para a atual estagnação. Mesmo Fernando Haddad, se vitorioso em 2018, teria sido constrangido por um Congresso dominado pelo arcaísmo da bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia), ainda que não testemunhássemos a carnificina que o colapso (deliberado) dos sistemas de saúde implica em meio a uma pandemia.

E quanto a nós? Pois continuaremos a enterrar nossos mortos, talvez não mais vitimados pela covid, mas pelas chagas que dizimam os pobres e não brancos há séculos: falta de saneamento básico, fome, violência policial. Esta última, aliás, foi combatida nos anos do PT? Sempre que faço essa pergunta, ouço silêncios ensurdecedores vindos daqueles que se refestelaram no poder entre 2003 e 2016, em que pese alguns benefícios materiais concedidos ao povo, todos quase que apagados por mais uma década perdida.

Somente o povo -- e não figuras personalistas que julgam encarná-lo -- determinará o seu destino. Democracia implica em termos não apenas eleições livres e competitivas, mas instituições sólidas que pairem acima de quaisquer personalismos.

No fim, Lula talvez seja o que tenhamos de menos pior para derrotar a barbárie. Nesse cenário, porém, não se enganem: estaremos ainda sob a ameaça de intervenção militar, o domínio das oligarquias e o crescente obscurantismo resultante da invasão da religião na esfera pública. Enterremos nossos mortos enquanto juntamos forças para, sem qualquer messianismo, salvarmos a democracia. Isso, sim, será algo épico.

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na FGV