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ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Muito além de Lula, guerras jurídicas ameaçam soberania brasileira

10.mar.2021 - O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em primeiro discurso após anulação de todas as suas condenações na Lava Jato - Marcelo D. Sants/Framephoto/Estadão Conteúdo
10.mar.2021 - O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em primeiro discurso após anulação de todas as suas condenações na Lava Jato Imagem: Marcelo D. Sants/Framephoto/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

12/03/2021 16h06

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* Cesar Calejon

Em artigo prévio e com base no trabalho do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, foi enfatizado nessa coluna que, ao admitir a influência externa dos Estados Unidos, a Operação Lava Jato distinguiu-se, fundamentalmente, de outros casos clássicos de ativismo judicial já registrados no Brasil.

Conforme se tornou evidente após surgirem as conversas dos promotores e do ex-juiz Sergio Moro detalhando a sordidez e a falta de escrúpulo jurídico da Lava Jato, instituições estadunidenses se envolveram diretamente no sentido de cooptar, treinar, instruir e oferecer dados secretos (obtidos por meio dos gigantes da tecnologia) a agentes do Estado brasileiro para que estes cometessem atos de sedição, influenciando os rumos das searas econômica e geopolítica do Brasil em detrimento do próprio país e a favor dos interesses estadunidenses.

Em entrevista à coluna, Rafael Valim, jurista, professor e coautor do livro "Lawfare: uma introdução" (Contracorrente), apontou três dimensões estratégicas fundamentais das guerras jurídicas: (1) a geografia, (2) o armamento e (3) as externalidades, cada qual com as suas táticas correspondentes.

Como em qualquer conflito - e as guerras jurídicas são contíguas às guerras híbridas, aos Estados de exceção e ao ativismo judicial como uma evolução das guerras tradicionais -, dominar o terreno no qual a batalha se desenrolará é um ponto nevrálgico para conquistar a vitória.

A dimensão seguinte, que diz respeito ao armamento usado nas guerras jurídicas, tem como destaque o Foreign Corruption Practices Act (FCPA), a atuação da Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC) e do Tribunal de Vigilância de Inteligência Estrangeira dos Estados Unidos, por exemplo, invocando exatamente a narrativa que foi usada no Brasil ao longo dos últimos anos: o combate à corrupção.

"Desde 2016, ano denominado como a Era de Ouro do FCPA, dezenas de empresas - algumas delas brasileiras - formalizaram acordos com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e/ou com a SEC (Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos) em consequência de operações de enforcement [aplicação da lei] do FCPA", explica Valim.

Ou seja, existem, atualmente, instituições e instrumentos que são usados em verdadeiras guerras jurídicas como armamento para conferir aos Estados Unidos um poder extraterritorial de controle sobre empresas, Estados e cidadãos de outros países. Ontem foi o Lula, amanhã pode ser você ou a sua empresa.

A terceira e última dimensão estratégica do lawfare trata das "externalidades": a participação da mídia em determinado processo, guerra de informações, operações psicológicas etc. Evidentemente, não se faz necessário ser doutor em semiótica para perceber como as atuações de alguns dos principais grupos midiáticos do Brasil foram fundamentais para estabelecer a narrativa de que o "PT quebrou o Brasil" e do antipetismo. Sem dúvidas, essas falácias viabilizaram a inelegilibidade e a prisão do ex-presidente Lula, passos que, por etapas, também foram fundamentais à ascensão do bolsonarismo.

As táticas correspondentes à primeira dimensão estratégica, nesse contexto, tratam de escolher a jurisdição mais adequada para avançar determinado processo junto a magistrados que estejam inclinados a deliberar a favor do que se é pretendido, basicamente. Existem diferentes neologismos que foram cunhados para endereçar esses conceitos de forma mais clara e eficaz: forum shopping, libel tourism e as manipulações das regras de competência. O debate nominalista é necessário, pois boa parte do jogo jurídico se dá com base em interpretação de leis que estão escritas. As palavras importam - muito.

Considerando o armamento, explica Valim, os processos de lawfare atuam, geralmente, com "denúncias sem materialidade ou sem justa causa, excesso de prisões preventivas como forma de tortura para fins de delações premiadas, visando colaborações formais e informais de investigados e a utilização dessas delações para deslegitimar e aniquilar os inimigos, excesso de acusações em busca de acordos, o método das 'cenouras e do porrete', estados de exceção, entre outros instrumentos". Qualquer semelhança com a Lava Jato não é mera coincidência.

Relacionadas à terceira dimensão estratégica (externalidades) estão "a manipulação de pautas mobilizadoras para iniciar a perseguição ao inimigo, a promoção da desilusão popular por meio da influência da opinião pública e a utilização do Direito para fazer publicidade negativa contra determinado alvo".

Recentemente, assisti, atônito, a um ministro da mais alta corte do Brasil dizer, ao vivo em um programa de televisão, que daria ali um "furo" de informação sobre determinado processo. Parece óbvio que um magistrado dessa envergadura deveria manifestar-se exclusivamente no âmbito do processo. No Brasil, contudo, esses métodos acarretaram o sentimento de "antissistema", o que desacreditou a política institucional e exacerbou conflitos de todas as ordens, em virtude da ausência do único processo mediador do caos social.

Portanto, o lawfare não está restrito ao caso Lula - o mais emblemático dos últimos anos - e estende-se a diferentes dimensões da vida nacional de forma a ameaçar todo o arranjo social brasileiro (e a democracia) no começo do século XXI.

A imparcialidade do Poder Judiciário e dos seus processos é fundamental não somente para o ordenamento jurídico brasileiro, mas para toda a organização social que sustenta a composição da República. Sem a retidão dos juristas, resta o colapso social e o resultado, a essa altura, já é bem conhecido por boa parte da população.

Os magistrados brasileiros que prezam as suas respectivas biografias precisam encerrar, de uma vez por todas, as insanidades conduzidas pelo conluio jurídico-midiático que orquestrou a Lava Jato e punir os seus perpetradores. Muito mais do que um instrumento de responsabilização penal, a instauração de uma CPI para investigar as bases dessa arquitetura criminosa é, hoje, uma questão de soberania nacional.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).