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Em Portugal da Inquisição, Lava Jato seria tachada de primitiva

O procurador Deltan Dallagnol e o ex-juiz Sérgio Moro - Jorge Araújo / Folhapress
O procurador Deltan Dallagnol e o ex-juiz Sérgio Moro Imagem: Jorge Araújo / Folhapress

Colunista do UOL

11/03/2021 22h19

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[RESUMO] Historiador especializado no estudo de Portugal dos séculos XVIII e XIX afirma que, mesmo segundo os códigos daquela época, os procedimentos da Operação Lava Jato seriam considerados bárbaros, primitivos e incivilizados.

* Igor Tadeu Camilo Rocha

A anulação dos processos envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no âmbito da Operação Lava Jato, além do subsequente julgamento de suspeição do ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro, ao que tudo indica, mudam substancialmente a direção de alguns rumos políticos do Brasil, agora e num futuro próximo.

Isso ocorre, creio, menos pela decisão jurídica do ministro do STF Edson Fachin ou pelos contundentes votos dos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski a favor da suspeição de Moro, e mais pelo que venha a significar o talvez iminente crepúsculo da operação farsesca conduzida pela "República de Curitiba". Isso acontece se lermos o lavajatismo como crença política, como ideologia que atravessa vários setores de imprensa, classe política, partidos e militâncias de todo o espectro da direita e até alguns setores e figuras da esquerda.

A exposição da miséria do lavajatismo fere algumas identidades políticas pouco afeitas à institucionalidade democrática e às mediações e garantias fundamentais para ela funcionar. E essa falta de afeição - que de certa forma, contraditoriamente, se configura num afeto político poderoso - se dá por motivos variados, que vão do ódio de classe à ingenuidade política de entender a corrupção num sentido quase religioso, como um mal que paira sob a política e se materializa em certos "vilões" inseridos nela.

O lavajatismo, antes de tudo, é um sintoma da profunda precariedade institucional do Brasil, além de forte indício do nosso déficit de democracia. Bem antes de se chegar a junho de 2019, quando começaram a ser reveladas as conversas entre Moro e procuradores da República pela famosa "Vaza Jato", a Lava Jato parecia se esforçar, a cada dia, para cruzar alguma fronteira do que é permissível no Direito das democracias liberais, e nossos aplausos a ela dizem algo (de muito mal) sobre nós.

Como especialista no período do Reformismo Ilustrado (1750-1822), recorte histórico que cobre minhas pesquisas de mestrado e doutorado e que ficou marcado, grosso modo, por reformas em Portugal e colônias (Brasil, sobretudo) inspiradas pelo Iluminismo, costumo fazer a provocação de que os procedimentos da Lava Jato (2014-2021?) seriam considerados bárbaros, primitivos e incivilizados pelas regras do Regimento da Inquisição de Portugal de 1774.

Exemplos: no Título XV do Livro II do mencionado regimento inquisitorial, limitam-se os chamados "autos de fé" (cerimônia muito representada em filmes, na qual membros da Inquisição liam publicamente as sentenças dos condenados e os submetiam à pena), com o argumento, no preâmbulo do título, de que tal procedimento nada mais era que transformar a justiça num espetáculo público. E, para aqueles inquisidores setecentistas, a espetacularização da aplicação da justiça era obra de "malignididade" de tempos antigos e de pessoas que queriam fomentar "ignorância e fanatismo" nos povos, causando "geral escândalo nas Nações estrangeiras" que consideravam civilizadas.

O escândalo e o espetáculo judiciais, condenados pelos inquisidores portugueses em 1774, eram parte constitutiva da Lava Jato, com prisões e conduções coercitivas feitas com todo alarde e com aparato totalmente desproporcional à necessidade das ações. Isso fora os vazamentos feitos à imprensa - em especial o grampo ilegal contra Lula e a ex-presidenta Dilma Rousseff, divulgado em 2016 e lido ao vivo no Jornal Nacional - dentre outros. As estátuas de Moro fantasiado de super-herói espalhadas pelo Brasil, o jejum do procurador Deltan Dallagnol ante o julgamento de habeas corpus do ex-presidente e incontáveis outras manifestações do tipo pareciam confirmar o argumento dos inquisidores setecentistas de que espetacularização da justiça e fanatismo caminhavam de mãos dadas.

Já no Título IV do Livro II do mesmo Regimento de 1774, condena-se o procedimento de se aceitar denúncias "vagas e genéricas" feitas por aqueles que já estivessem presos ou condenados, que, visando atenuar suas penas, saíam denunciando aos seus algozes da Inquisição "todas quantas pessoas lhe fornece a memória" como supostos cúmplices, além de proibir de se conferir validade a qualquer "testemunha única" de algum crime denunciado, salvo a exceção do crime de "solicitação".

Na Lava Jato, as delações premiadas pareciam reproduzir exatamente o que o mencionado regimento inquisitorial condenava com veemência, num procedimento que se construía à base de prisões arbitrárias e confissões/denúncias sem ou com poucas provas, mas que eram alardeadas como verdades suficientes para sustentar uma condenação. Essas delações iam à imprensa para serem tratadas como fatos políticos, e algumas vezes repercutiam como uma espécie de condenação anterior a qualquer julgamento ou direito de defesa.

Já escrevi artigo científico analisando o regimento de 1774 da Inquisição portuguesa, e digo por isso, do ponto de vista de historiador especialista no tema, que nunca faria outro comparando metodicamente a Lava Jato com essa instituição, que teve suas atividades encerradas a exatos 200 anos. São universos intelectuais, culturais, políticos e jurídicos tão díspares, separados por tantos anos, que tornam os anacronismos muito evidentes e incontornáveis para se executar tal análise.

O ponto aqui não é comparar esses dois universos dessa maneira, mas sublinhar o caráter pré-iluminista, pré-democrático e pré-moderno da Operação Lava Jato. Se trata, aqui, como disse acima, de uma provocação a se pensar no quanto depositamos expectativas numa operação que prometia um combate implacável à corrupção, mas entregou fissuras na sociedade brasileira e seus precários consensos democráticos, garantindo condições objetivas para o bolsonarismo florescer.

O lavajatismo sintetiza uma crença política ancorada no consenso de que o PT é corrupto, e diante desse pressuposto não haveria necessidade de qualquer Estado de Direito, com garantias e devido processo legal. A fim de tirar o partido do poder, absolutamente tudo era lícito. Daí, as inúmeras alusões de Moro a heróis contemporâneos das HQs estadunidenses, tão adequadas para materializar e personificar a própria figura daquele que age contra criminosos e malfeitores de maneira direta, recorrendo somente à sua força - física, espiritual e moral - sem intermédio de qualquer lei. A lei, no caso, mais deve a esse herói que ele deve a ela, já que sem o herói esse mesmo conjunto de leis jamais conseguiria, por si, eliminar esses malfeitores.

O resultado disso foi a potencialização no discurso de que tudo valia para tirar "os vilões" do poder, sobretudo meios não políticos que passavam pela judicialização e fomento do clima de Estado policial. Nesse sentido, o impeachment de 2016 passou a ser um objetivo em si e a prisão de Lula, como os diálogos da Operação Spoofing mostraram, assumia status de troféu. O resultado mais óbvio disso é o clima de anti-política que predomina até os dias atuais, na qual se naturalizou a demonização de adversários políticos e até mesmo de instituições como o voto popular ou o Supremo Tribunal Federal.

Fazendo outra alusão, essa divisão maniqueísta de bem x mal enquanto visão de mundo e aplicada à política, presente no lavajatismo, se assemelha muito a outra sensibilidade política que atiça as mentes conservadoras do Brasil: a da narrativa do bandido bom/bandido morto, que demoniza sistemas de garantias ou a defesa dos direitos humanos, qualificando-os como "defensores de bandidos", além de exaltar-se a justiça sumária. Por esse viés, divide-se o mundo entre um "nós", "cidadãos de bem", e os "bandidos", estes onipresentes e onipotentes em um mundo tomado por corrupção e imoralidade.

Em um e outro, no lavajatismo e na narrativa do bandido bom/bandido morto, o inimigo, o corrupto ou o bandido, já está julgado assim que foi identificado e classificado como parte do "outro lado". O "herói" é quem age contra esse inimigo, não importa como, uma vez que a justificativa moral também se constrói a partir dessa identificação prévia.

Guardadas as proporções e consequências dessa aproximação feita acima entre a narrativa do bandido bom/bandido morto e o lavajatismo - as vítimas do bandido bom/bandido morto são mais numerosas e possuem muito menos mecanismos de defesa, vide as políticas de "pacificação" em favelas ou o encarceramento em massa no Brasil, por exemplo - o que se pode ressaltar nesse tipo de provocação é que ambos são constitutivos de formas maniqueístas de ver a realidade, constroem o outro como algo a ser eliminado e, nesse sentido, ignoram qualquer forma moderna de garantia contra abusos e arbitrariedades do Estado para se executar injustiças em nome de algum suposto bem coletivo.

A exposição e desmoralização da Lava Jato, que entendo serem fundamentais para se construir algum consenso democrático no Brasil, coloca ou deveria colocar seus entusiastas num divã. Afinal, qual a coerência de se condenar personalismo na política num dia, o populismo de algumas figuras políticas ou partidos no outro, e nesse mesmo período cultivar a crença que precisamos de heróis que ignorem as leis para derrotar nossos adversários políticos? Qual a dificuldade de entender a corrupção como um emaranhado de mecanismos complexos, que funciona e se reproduz por relações sociais que envolvem pessoas, instituições, empresas, etc. ao invés de pensá-la como um demônio que sempre "são os outros"?

Não precisamos de heróis fora do plano da ficção. Se nelas eles são divertidos e até mesmo nos inspiram, nas democracias eles são perigosos e acreditar neles não passa de uma infantilidade da qual nossa democracia insiste em não sair.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.