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Entendendo Bolsonaro

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Com Lula de volta ao jogo, WhatsApp bolsonarista parte para ofensiva

6.mar.2020 - O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante evento sobre desigualdade em Genebra, na Suíça - Fabrice Coffrini/AFP
6.mar.2020 - O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante evento sobre desigualdade em Genebra, na Suíça Imagem: Fabrice Coffrini/AFP

Colunista do UOL

23/03/2021 15h50

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* Raul Galhardi

Pedidos de intervenção militar com Bolsonaro no poder. Petições para destituir membros do STF. Textos de generais ameaçando as instituições. Xingamentos de toda sorte ao ex-presidente Lula e documentário amador acusando-o de roubar R$ 300 bilhões. Esses são exemplos do que foi discutido em grupos bolsonaristas de WhatsApp entre os dias 8 e 15 de março. No dia 8, uma decisão do ministro Edson Fachin, do STF, anulou todas as condenações de Lula na Operação Lava Jato, restabelecendo seus direitos políticos e tornando-o elegível.

Essa ação, por sua vez, reverberou de forma extremamente negativa no círculo digital do presidente Jair Bolsonaro. Nesse período, cerca de 300 mensagens por dia foram veiculadas em três grupos pró-Bolsonaro no app de mensagens ("Aliança pelo Brasil", "Muda Brasil" e "Respeite a bandeira").

Entre elas, foi observada a existência de muitas fake news, conteúdos com exageros e imprecisões e matérias jornalísticas baseadas em fatos reais, porém descontextualizadas. Em menor quantidade, também foi possível verificar críticas embasadas na realidade, utilizando editoriais e matérias de veículos jornalísticos.

Tudo isso teve como fontes desde sites de notícias, alguns tradicionais e outros de credibilidade duvidosa, até perfis de redes sociais de políticos e figuras públicas, passando por canais de YouTube e páginas de Facebook.

STF e a conspiração global

O Supremo e Lula foram os principais alvos de ataques. Uma petição pedindo a convocação de plebiscito para retirar todos os ministros do STF e colocar juízes concursados no lugar, que conta com mais de 460 mil assinaturas, e vídeos mostrando uma manifestação de pessoas e buzinaço de carros em frente ao prédio em Curitiba onde mora o ministro Fachin estão entre os conteúdos mais disseminados.

Links para sites de notícias pró-Bolsonaro como o "Folha da Política", que não possui matérias assinadas e não informa quem são os responsáveis pelo seu conteúdo, ressaltam, por exemplo, o fato de sete dos onze ministros da Suprema Corte terem sido indicados pelo PT.

WhatsApp bolsonarista denuncia "aparelhamento" do STF - Raul Galhardi - Raul Galhardi
WhatsApp bolsonarista denuncia "aparelhamento" do STF
Imagem: Raul Galhardi

Por outro lado, mídias jornalísticas tradicionais como o Grupo Jovem Pan de Comunicação também serviram como fonte, principalmente o editorial da rede contrário a decisões monocráticas do Supremo que, segundo a empresa, "mergulham o país em um cenário de incertezas, descrédito e desconfiança."

Um elemento central presente nessas comunidades, verificável também em redes sociais de grupos extremistas ao redor do mundo, é a disseminação de teorias da conspiração.

Postagens afirmando que existiria um "grande Acórdão para sabotar o governo em plena pandemia" (sic) viralizaram. O texto, de autoria desconhecida, defende que políticos como Lula, FHC, Ciro Gomes, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre fariam parte de um plano, em conjunto com ministros do STF e "todos os abutres desse pais", para derrubar o governo Bolsonaro acusando-o de querer implantar uma ditadura no Brasil.

WhatsApp bolsonarista denuncia "complô contra Bolsonaro" - * Raul Galhardi - * Raul Galhardi
WhatsApp bolsonarista denuncia "complô contra Bolsonaro"
Imagem: * Raul Galhardi

Outra publicação na mesma linha acusa o Supremo de "estar provocando propositalmente um caos no país". O "esquema" teria o ministro Alexandre de Moraes como "cabeça" e seu objetivo seria afastar Bolsonaro do governo "alegando nulidades das eleições através de provas forjadas no absurdo e ilegal inquérito das FAKE NEWS" (sic).

WhatsApp bolsonatista acusa conspiração comandada pelo STF - Raul Galhardi - Raul Galhardi
WhatsApp bolsonarista acusa conspiração comandada pelo STF
Imagem: Raul Galhardi

Um texto cuja autoria é atribuída ao astrólogo Olavo de Carvalho foi outra peça que circulou nas redes. Intitulado "10 Passos que farão do Brasil uma ditadura socialista", o texto afirma que Lula faz parte de plano para derrubar o presidente que inclui o STF, a Câmara, o Foro de São Paulo e até a ONU.

A "ditadura socialista", plano oculto da oposição a Bolsonaro, segundo o WhatsApp bolsonarista - Raul Galhardi - Raul Galhardi
A "ditadura socialista", plano oculto da oposição a Bolsonaro, segundo o WhatsApp bolsonarista
Imagem: Raul Galhardi

Segundo a teoria, após o Supremo soltar Lula, a população protestaria nas ruas contra o fato. Militantes do Foro se infiltrariam nas manifestações, provocando violência. O ex-presidente, então, surgiria como "pacificador" e a Câmara aprovaria o impeachment de Bolsonaro alegando que ele "não possui liderança", fazendo com que Lula volte ao poder por meio de uma campanha trilionária.

Exército, a salvação nacional

Outra constante nesses grupos são os pedidos de intervenção militar, que se intensificaram após a decisão do STF favorável a Lula. Usando o artigo 142 da Constituição Federal como fundamento, um conhecido artifício bolsonarista para o autogolpe, os integrantes querem "intervenção militar com Bolsonaro no poder".

WhatsApp bolsonarista prega interveção militar no Brasil - Raul Galhardi - Raul Galhardi
WhatsApp bolsonarista prega intervenção militar no Brasil
Imagem: Raul Galhardi

"Bolsonaro acabou com a saliva. Agora é com as Forças Armadas - Art. 142 do STM já!!! "Não à escravidão comunista e globalista!" (sic) e "o clamor popular vai obrigar o presidente a invocar o artigo 142 da CF e dissolver o atual STF e nomear 11 magistrados de carreira. Pelas redes sociais aos milhares e o povo nas ruas pedindo a intervenção militar no STF" são exemplos de publicações com essa temática.

O citado artigo, no entanto, não prevê a possibilidade de intervenção militar, mas descreve o funcionamento das Forças Armadas. O ministro do STF Luis Fux delimitou no ano passado a interpretação do artigo, reforçando que a prerrogativa do presidente de autorizar emprego das Forças Armadas não pode ser exercida contra os outros dois Poderes.

Esses pedidos, entretanto, acabam encontrando reverberação entre militares, que devido às suas atitudes por vezes acabam estimulando manifestações como essas. O texto "Aproxima-se o ponto de ruptura", publicado no site do Clube Militar pelo general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva, que se tornou membro da Comissão de Anistia na gestão de Jair Bolsonaro, foi um dos mais compartilhados nas redes.

Whatsapp bolsonarista repercute pregação golpista do Clube Militar - Raul Galhardi - Raul Galhardi
Whatsapp bolsonarista repercute pregação golpista do Clube Militar
Imagem: Raul Galhardi

Na peça, o general afirma que a decisão de Fachin é uma "bofetada na cara da nação brasileira" e que o STF "feriu de morte o equilíbrio dos Poderes". Para ele, "a continuar esse rumo, chegaremos ao ponto de ruptura institucional".

Lula, o grande vilão

Se a Suprema Corte já vinha há muito tempo sendo atacada nessas redes, as investidas contra Lula, entretanto, voltaram com força total após a anulação de suas condenações. Para uma parcela da população, especialmente para os militantes bolsonaristas mais radicais que integram esses grupos, o ex-presidente ainda representa o maior inimigo a ser combatido.

"Lula o maior bandido vigarista que a república do Brasil já viu" (sic); "Parabéns Lula !! nunca na história da humanidade Um Líder Formou Tantos Ladrões Bandidos Corruptos Maconheiros Desordeiros Jumentos E Retardados para o defender" (sic); "Quando um analfabeto consegue manipular magistrados é sinal de que o país virou um curral..." são uma amostra do que foi dito sobre o petista.

Whatsapp bolsonarista publica ofensas a Lula - Raul Galhardi - Raul Galhardi
Whatsapp bolsonarista publica ofensas a Lula
Imagem: Raul Galhardi
Ofensas a Lula nas redes bolsonaristas - Raul Galhardi - Raul Galhardi
Imagem: Raul Galhardi
A conspiração Lula-STF, denunciada no WhatsApp bolsonarista - Raul Galhardi - Raul Galhardi
A conspiração Lula-STF, denunciada pelo WhatsApp bolsonarista
Imagem: Raul Galhardi

Um meme afirma: "esse lixo não é comunista, pois vive na riqueza. Não é socialista, porque só pensa nele próprio. Não é capitalista, pois não produz nada, nem com capital, nem com trabalho. É um ser abjeto, desonesto, mentiroso. Em resumo: um bosta" (sic).

Embora as eleições de 2018 tenham sido marcadas pelo antipetismo, novas pesquisas parecem indicar que a rejeição à figura do ex-presidente tem diminuído, o que o transforma na principal ameaça, pelo menos por enquanto, ao projeto de poder bolsonarista caso se torne de fato candidato nas eleições de 2022.

Com mais de um milhão de visualizações e quase dez minutos de duração, o minidocumentário "Os roubos de Lula e do PT, e as obras de Bolsonaro (vídeo em inglês) The Edge of the Corruption " (sic), do canal de YouTube "Luiz viajante 2022", foi bastante disseminado. O vídeo compara os governos petistas e de Bolsonaro e acusa o ex-presidente de ser responsável pelo roubo de US$ 300 bilhões, afirmando que a Petrobras teve bilhões de dólares anuais de prejuízo durante seu governo, entre outras alegações.

A obra tem início com a imagem de Bolsonaro chegando a cavalo em uma manifestação de simpatizantes em frente ao Palácio do Planalto com a voz da narradora dizendo que no Brasil "a democracia está forte e a corrupção, em vertigem". Ela chama Lula de "o maior corrupto mentiroso da história do Brasil" e Bolsonaro de "democrático, honesto, humilde e corajoso".

Outra categoria de postagem são notícias antigas, colocadas fora de contexto, e usadas de forma imprecisa. A notícia "Lula vai deixar dívida recorde para sucessor", publicada pelo jornal O Globo, em 2010, foi usada em um meme que diz: "Relíquia - exatos 9 anos atrás o Globo já avisava. 2,2 trilhões - hoje é 4,5 trilhões - 100% - o dobro"(sic).

Manchete descontextualizada do jornal O Globo sugere o PT como arquiteto da atual crise brasileira - Raul Galhardi - Raul Galhardi
Manchete descontextualizada do jornal O Globo sugere o PT como arquiteto da atual crise brasileira
Imagem: Raul Galhardi

Porém, há nove anos Dilma Rousseff era a presidente do país e a dívida pública federal chegou ao valor mencionado de mais de quatro trilhões apenas em setembro de 2020.

A pandemia e o outro lado

Não foram apenas Lula e o STF que alimentaram as redes bolsonaristas no período pesquisado. Temas recorrentes desde o início da pandemia se mostraram presentes como as críticas aos governadores e às políticas de isolamento social.

Vídeo do canal Celio Lobo no YouTube sintetiza os principais argumentos contra o lockdown e as políticas sanitárias aplicadas por governadores pelo país. Segundo o narrador da peça, que procura demonstrar o autoritarismo dos gestores estaduais comparando-os a Stalin e Hitler, "o sonho encantado dos comunistas do Brasil é implantar o comunismo, mas para implantar o comunismo é preciso empobrecer a população de maneira que ela venha comer nos pés dos governantes. O que aconteceu? Essa questão viral propiciou que eles fizessem isso de maneira mentirosa, dizendo 'olha, estou te protegendo do vírus', mas com o objetivo de destruir o emprego e a renda".

Diante de tantos conteúdos de ódio e notícias falsas, pode-se imaginar que não há espaço para amenidades do cotidiano nessas comunidades. No entanto, embora em quantidade bem menor, publicações que tratam de outros temas também circulam nesses ambientes digitais.

Foi possível ver propagandas de negócios como lanchonetes, pizzarias e caminhões para transporte, além de mensagens, cristãs e laicas, agradecendo pelo dia e homenageando as mulheres no Dia Internacional da Mulher.

Mas, afinal, quem são as pessoas que integram essas comunidades? Pode-se dizer que elas correspondem aos 30% de aprovação que o presidente ainda possui, segundo pesquisa do Datafolha. São nossos parentes, vizinhos, amigos e conhecidos que compõem a militância orgânica para a qual Bolsonaro governa. Compreender as suas razões, portanto, é imprescindível para entender um dos principais fatores que ainda mantêm Jair Bolsonaro no poder.

* Raul Galhardi é jornalista e mestre em Produção Jornalística e Mercado pela ESPM-SP