Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Morticínio da pandemia é reflexo de guerra contra o Brasil
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* Cesar Calejon
Em basicamente todas as nações ocidentais, uma pequena parte da população mantém seus privilégios políticos e econômicos e organiza os arranjos sociais com base em narrativas historicamente desenhadas para favorecê-la. Racismo estrutural, racismo cultural, racismo científico, viralatismo, misoginia, homofobia, transfobia, machismo, chauvinismo, dentre outros, são exemplos de termos que descrevem essas narrativas.
Nos últimos quinhentos anos, essas narrativas foram orquestradas para determinar que (primeiro os nativos do norte, depois) os povos do Hemisfério Sul eram desprovidos de racionalidade e inferiores moral e eticamente, o que significava que, para o seu próprio desenvolvimento, eles deveriam ser colonizados pelos europeus. Deveriam "encontrar o norte". Não é por acaso que o mapa mundi está organizado como você o conhece.
No meu primeiro livro, "A Ascensão do bolsonarismo no Brasil do Século XXI", eu utilizo o termo "elitismo histórico" para sumarizar todos esses conceitos e narrativas. Ou seja, conforme a minha interpretação, o elitismo histórico é uma força social historicamente constituída, presente na organização das sociedades humanas desde a Revolução Neolítica e que atua de forma a estruturar os arranjos sociais com base em um parâmetro elitista, que se manifesta de múltiplas maneiras de acordo com a época e a cultura em questão.
Assim, qualquer filosofia que se organize com base em parâmetros elitistas e excludentes, de forma a criar uma "hierarquia moral" e uma "gramática da desigualdade", pode ser enquadrada nessa categoria.
Em entrevista à coluna, o sociólogo Jessé Souza, ex-presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e autor dos livros "A Elite do Atraso" e "A classe média no espelho", dentre outros, explica que essas narrativas foram absolutamente fundamentais à ascensão do bolsonarismo no Brasil. Ele afirma que existe uma "elite do atraso" que vem se perpetuando de forma a escravizar o país e que, a partir de 2013, uniu-se aos Estados Unidos e "a uma organização criminosa para destruir o sonho brasileiro".
"Eu não me refiro aqui ao povo estadunidense", pondera Jessé, "mas às elites que comandam os rumos dos processos políticos e econômicos daquela nação", salienta.
A guerra contra o Brasil é complexa e híbrida, no sentido de abranger o lawfare, estados de exceção, ativismos judiciais, dispositivos econômicos de coerção (embargos, restrições etc.), entre diversos outros instrumentos que sofisticaram a forma como as guerras tradicionais se desenrolavam nos séculos passados e os métodos que os impérios utilizavam para assegurar as suas respectivas hegemonias.
Conforme demonstrado nessa coluna em setembro de 2019, o elitismo histórico é o elemento central para refletirmos sobre por que a população brasileira, que alegadamente lutava contra a corrupção e se indignou com os diálogos entre Dilma e Lula, não se revoltou quando confrontada com provas cabais apresentadas pela Vaza Jato ou, mais recentemente, no caso das rachadinhas, documentado pelo UOL.
"Hoje, é fundamental cooptar as elites e a classe média de cada nação para fazer a manutenção do tipo de hegemonia moderna que vigora no Brasil", explica Jessé. Mas quem são as pessoas que formam a "elite" (política e econômica) e a "classe média" brasileira e por que essas parcelas da população são tão importantes para constituir o paradigma vigente no ideário coletivo?
A "elite" brasileira abrange um grupo restrito que varia entre 150 e 200 mil pessoas (que faturam algo em torno de R$ 188.925 e R$ 5 milhões) por mês e alguns pouquíssimos bilionários, segundo dados do Inequality World Report 2018. Em sua grande maioria, são cidadãos brancos, com ascendência europeia, que começaram suas carreiras profissionais após a conclusão do ensino superior e residentes nos metros quadrados mais caros do país. Apesar de ser extremamente forte nas searas econômica e política, esse grupo depende, diretamente, da "classe média" que vem abaixo para avançar as suas narrativas.
Nessa altura da pirâmide social (e da hierarquia moral, conforme mencionado), a "classe média brasileira", aqui entre aspas porque, de fato, o Brasil jamais consolidou uma classe média de forma mais ampla, compreende um grupo de cerca de 15 milhões de pessoas com rendas entre R$ 7.425 e R$ 36.762 mensais. Assim, caso você ganhe menos do que R$ 15 mil por mês, a sua posição aponta para a "classe média baixa", mas, certamente, a sua profissão e cosmovisão do mundo interessa imensamente às camadas de cima.
Essa é a importância da "classe média" brasileira considerando a guerra contra o Brasil à qual se refere Jessé Souza: além de operacionalizar (seguindo as determinações da elite) toda a infraestrutura jurídica e de comunicação social da nação, essa parcela serve de exemplo para os milhões de brasileiros que vivem lutando contra a miséria e almejam ingressar na "classe média", introjetando, consequentemente, as suas tramas simbólicas de ideias e valores.
O colapso social e o caos absoluto que o Brasil vivencia atualmente são tanto resultado da covid-19 quanto dessas narrativas sociais, culturais e históricas que vêm sendo avançadas ao longo dos últimos cinco séculos e que foram ainda mais agudizadas pela ascensão do bolsonarismo.
"Os Estados Unidos desenvolveram uma espécie de imperialismo informal, com o qual não é necessário invadir determinado país e ocupá-lo com forças militares, que foi (o método) clássico do colonialismo do século XIX, apesar de que Portugal, França e Espanha já cooptavam as elites dos locais que pretendiam dominar. Esse fator é extremamente importante para que essa classe atue contra o seu próprio povo. (...) Para a visão imperialista estadunidense, o Sul global não pode se desenvolver. Isso está entendido", conclui o sociólogo.
Na prática, isso significa que os países centrais do nosso atual arranjo geopolítico global (G7) e as grandes corporações (bancos e gigantes industriais transnacionais de várias verticais) utilizam essas novas formas de guerra para controlarem as moedas, o mercado e o fluxo de capital, as indústrias de alta tecnologia, a energia atômica, os principais veículos de imprensa (e o ideário popular), os assentos no Conselho de Segurança das Nações Unidas etc. Ou seja, para literalmente mandar no mundo, enquanto países como o Brasil, por exemplo, que têm um imenso arcabouço de recursos para desenvolver as suas potencialidades, ficam relegados a fornecer matéria-prima e produtos primários, o que gera um ciclo de dependência, miséria e submissão.
Fundamentalmente, esse controle é estabelecido por deliberação do povo dominado. Esse é o aspecto mais triste da guerra contra o Brasil: boa parte do nosso povo se entende submisso, avança essas narrativas internamente e pede para ser subjugado. Em inúmeras ocasiões, Bolsonaro reforçou esses parâmetros, verbalmente e sem qualquer pudor.
Há exatamente um ano, o presidente brasileiro disse: "Eu acho que não vai chegar a esse ponto (a situação brasileira em comparação a dos Estados Unidos considerando o número de mortes decorrentes da pandemia). Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele. Eu acho até que muita gente já foi infectada (pela covid-19) no Brasil, há poucas semanas ou meses, e ele já tem anticorpos que ajuda (sic) a não proliferar isso daí", afirmou.
Portanto, além de combater o vírus que provoca a covid-19, é preciso atacar o patógeno que celebra a ignorância e os elitismos históricos como formas de virtude organizacional, porque, ancorados nessas premissas, o empobrecimento subjetivo do Sul global e a racionalidade do neoliberalismo vêm devastando os países que se encontram na periferia e na semi-periferira da geopolítica mundial.
* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).
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