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'Bolsonaro liderou rebelião de antagonismos reprimidos', diz professor
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* Por: Murilo Cleto
Lançado recentemente pela editora Record, "Eles em Nós: retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI" se soma às muitas obras que tentam compreender como chegamos ao Brasil de Bolsonaro, porém o faz de um jeito peculiar, através da análise do discurso.
Em conversa com a coluna, Idelber Avelar, professor de Literatura da Universidade Tulane, em Nova Orleans, nos Estados Unidos, e autor da obra, explica como analisar a cena política brasileira das últimas décadas por meio da linguagem pode iluminar contornos centrais não alcançados por estudos de outras disciplinas, como a ciência política e a sociologia.
"O bolsonarismo acabou aparecendo aos olhos de milhões de pessoas como a própria possibilidade de antagonizar", afirma Avelar.
Ao longo da conversa, ele falou sobre as escolhas que nortearam a elaboração do trabalho, a estrutura do pacto político que se esgarçou com os governos petistas, os pontos de contato entre o passado da ditadura e a democracia e a captura do significante "esquerda" pelo lulismo.
Confira abaixo os principais trechos:
Por que você, como um professor de Literatura, achou que a retórica seria um bom caminho para responder à pergunta que coloca já na introdução do livro: "como teve lugar isso que nos aconteceu?"
É uma convicção antiga minha, de que as ciências sociais prestam pouca atenção à linguagem. As ciências sociais, em geral - eu não estou dizendo todas as ciências sociais. E essa falta de atenção não é idêntica em todos os sociólogos, historiadores e cientistas políticos, mas ela existe e eu acho que os cientistas sociais mesmo, em geral, reconhecem isso. Ou seja, que a discussão em torno de determinados acontecimentos históricos ou de determinados processos sociais, em geral, padece de uma falta de clareza sobre o que significam determinadas palavras. Isso é reconhecido nas ciências sociais já há muito tempo.
Também é um fato reconhecido nas faculdades de Letras que, apesar de certos conteúdos políticos serem parte constante da nossa pesquisa em literatura ou em estudos culturais, determinados aspectos da política brasileira são pouco tratados do ponto de vista da linguagem. Eu sou capaz de citar poucos estudos de análise do discurso na política. (...) No caso do Brasil contemporâneo, [utilizar a análise do discurso] era especialmente urgente, porque boa parte das pendengas que enfrentam tribos nas redes sociais, enfrentam grupos políticos na sociedade, tem a ver com o sentido que se confere a certas palavras: "golpe", por exemplo; "fascismo", por exemplo.
E com a invenção de outras palavras, que foi abundante no Brasil desse século: "Pré-Sal" - é uma palavra inventada, no sentido de que ela era um adjetivo que modificava camadas. Era uma coisa que estava lá e que virou um substantivo com existência positiva. "Lava Jato", "Junho", "Mensalão", "Petrolão": todas essas palavras não existiam no português brasileiro de 2013 com esse sentido.
Então, para desbastar um pouco o terreno e trazer um pouco da minha formação disciplinar, em que eu poderia iluminar, eu achei, com um pouquinho mais de esmero esses termos e a história deles, eu achei que valia a pena. Porque é uma encruzilhada pouco visitada, digamos assim - apesar de que os estudos de literatura se politizaram muito e de que as ciências sociais não são uniformemente ignorantes do debate sobre linguagem, claro.
Boa parte do seu livro é dedicada ao mascaramento de antagonismos no Brasil. Que respostas você acredita que o bolsonarismo deu para a crise escancarada por 2013?
Essa é uma das minhas teses, a de que o arraigo que o bolsonarismo possui em amplos setores da população brasileira tem a ver com o fato de que, por um arranjo muito conjuntural, contingente das coisas, ele passou a representar a própria possibilidade de antagonizar. Os antagonismos foram represados durante muito tempo na sociedade brasileira e, por essa conjunção de fatores que liga o fortalecimento do antipetismo, o surgimento da Lava Jato, a falta de respostas não punitivas a Junho e o processo de impeachment, que realmente mobiliza uma ampla maioria da população brasileira, o bolsonarismo acabou aparecendo aos olhos de milhões de pessoas como a própria possibilidade de antagonizar.
Antagonizar qualquer coisa: um serviço público que não funciona; a descoberta de alguma aposentadoria indecente de algum funcionário público da qual a juventude precarizada se ressente; as conquistas de minorias que mexem em placas tectônicas conservadoras da sociedade brasileira; certa sensibilidade interiorana, caipira - no sentido estrito de Antonio Cândido, uma sensibilidade de Brasil Central, de Brasil profundo -, em que vai se gestando uma revolta muito grande contra o estatuto em que aquelas populações compunham o pacto lulista, que era uma espécie de aliado do qual a turma se envergonhava. Aliados que eram sempre referidos como "eles", na conversa do lulismo com sua base.
Esses "eles", que foram sendo deixados pelo caminho, são parte constitutiva da explicação de por que o bolsonarismo conseguiu o arraigo que conseguiu. Eu costumo citar como exemplo um post antigo meu de Facebook, de 2014 ou 2013, em que eu não sabia qual forma a rebelião antipetista tomaria, mas eu sabia que ela contaria com caixas de supermercado que são formados em pedagogia e direito.
Ou seja, toda aquela população pobre que foi cliente do ProUni e que comprou a intensa propaganda do lulismo de que aquele diploma era algo especial - em parte pelo fetiche do [ex-presidente] Lula com o diploma - e que se formou já na época da retração econômica e que não encontrou posição no mercado, em parte por causa da péssima qualidade do próprio ensino, em parte pela falta completa de planejamento sobre impacto de mercado daquelas enormes populações que estavam se formando em faculdades privadas de qualidade discutível.
Então eu insisto muito nisso, que o lugar dessa tradição brasileira de mascarar antagonismos é muito importante para se explicar a gênese do bolsonarismo.
Quando no poder, o lulismo insistiu na ideia de que a ausência de reformas em virtude desse mascaramento de antagonismos se deu por conta de um necessário pacto de governabilidade. Nós ouvimos, por muito tempo, que o que faziam o ex-presidente Lula e a ex-presidente Dilma eram concessões em nome da própria sobrevivência desse projeto de um Brasil menos desigual e mais justo. No livro, você faz uma série de reparos a essa máxima. Pode falar sobre alguns deles?
No período lulista, o antagonismo é administrado de uma forma bastante particular. O peemedebismo se sustenta ao longo dos governos Fernando Henrique e dos primeiros anos de Lula de uma determinada maneira. Mas a emergência do lulismo em 2005 dá um tom diferente a essa administração que o lulismo faz do sistema político brasileiro.
Porque ela começa a ter uma forma que eu chamo de "oximoro", que é incluir, ao mesmo tempo, gestos que são expressamente antagônicos. Por exemplo, fazer um comício insuflando a base contra Miriam Leitão - uma jornalista, um indivíduo - e, de tarde, nomear Hélio Costa - o representante das Organizações Globo - no ministério; bombardear [a ex-ministra do Meio Ambiente] Marina [Silva] com um discurso bolchevique, segundo o qual Marina seria uma neoliberal fundamentalista e, ao mesmo tempo, entregar a gestão da política agrícola do governo ao Blairo Maggi [ex-ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e nome importante da chamada "bancada ruralista"].
Essa coexistência de opostos é lida em hostes antipetistas como hipocrisia do PT. Eu acho que não era - e é curioso como alguns companheiros do PT me chamem de antipetista. Porque o antipetista leria isso como hipocrisia. Não era. Não é que o lulismo dizia uma coisa e fazia outra. Ele dizia e fazia coisas antagônicas ao mesmo tempo: puxar o antagonismo para o lado esquerdo total nesse bate-bumbo para a base mantinha a base acesa - essa chama de indiscutível apoio popular e raiz social que o lulismo tem; por outro lado, esses constantes gestos na direção das oligarquias mais reacionárias foi o pão com manteiga do pacto lulista.
Todos os grandes oligarcas brasileiros participaram do pacto lulista. A lista é infinita: [José] Sarney, Fernando Collor de Mello, Jader Barbalho, Renan Calheiros, Ciro Nogueira - dá para ir até o infinito. Não me parece que a fórmula "dizia uma coisa e fazia o contrário" seja uma boa fórmula. [Na verdade,] dizia e fazia coisas antagônicas ao mesmo tempo. E esse foi o arranjo que se espatifou, claro, em 2013. Porque em 2013 a população saiu às ruas e não havia mais dinheiro - para resumir a história. Então eu insisto que o lulismo administrou esse pacto político de uma forma específica, diferente da que [o ex-presidente] Fernando Henrique usou, por exemplo.
Você cita, no livro, momentos da história do lulismo em que o presidente tinha mais de 80% de aprovação popular e ainda assim escolhia apoiar Sarney, por exemplo, em detrimento de lideranças que poderiam renovar as bases do partido, trazer mais oxigenação para ele.
Essa história das eleições para o Senado no Amapá é uma história escabrosa porque a líder política - popular, negra, profundamente enraizada na cultura popular do Amapá - Cristina Almeida era do PSB do Amapá. Uma das seções mais decentes de partido político que você vai encontrar no Brasil é o PSB do Amapá, dos Capiberibe.
Sarney estava caindo nas pesquisas, com Cristina Almeida claramente subindo. E tudo indica que ela, uma líder popular negra do Amapá, tiraria, no voto, Sarney do Senado Federal. Lula poderia simplesmente não ter feito nada e dito "esses dois aqui estão na minha base, estão se enfrentando em uma eleição e eu sou neutro, não faço nada". Ele fez uma viagem a Macapá para salvar Sarney e salvou. É muito lamentável que sejam esquecidos esses capítulos da história brasileira que são tão recentes.
Uma das seções mais indigestas do seu livro é a que identifica laços entre a retórica dominante nos governos petistas e a ditadura militar. Poderia especificar melhor esses pontos de contato?
Há um ponto de contato, retoricamente falando, que me parece indiscutível, que é a hipérbole. O discurso do Brasil grande, do Brasil que pode qualquer coisa. É uma recorrente no discurso de Lula essa ideia de que nós podemos qualquer coisa se nós tivermos força de vontade, cabeça erguida etc. É recorrente um apelo a alguma variação de um discurso desenvolvimentista, segundo o qual o Estado tem condições de ir gerando riqueza indefinidamente através do fomento de atividade econômica escolhida pelo próprio Estado.
E há uma recorrência, cada vez mais acentuada ao longo do período lulista, na trinca que define retoricamente o governo de Ernesto Geisel, que é "Planejamento, Nacional e Estratégico". Eu fiz um rastreamento das ocorrências dessa expressão. Elas vão se intensificando ao longo do segundo mandato de Lula, especialmente na segunda metade do segundo mandato, momento em que a compreensão de economia do governo Lula já é hegemonizada pela escola Dilma-Mantega, e com anabolizantes no governo Dilma, em que existem literalmente dezenas de "planos nacionais estratégicos."
Há "planos nacionais estratégicos" sendo lançados semanas antes de Dilma ser deposta. Todo mundo sabia que ela seria deposta e ela estava lançando "planos nacionais estratégicos". E no livro eu dou um exemplo desse constante apelo a uma compreensão de economia segundo a qual o Estado tem condições de ir gerando respostas pavlovianas na sociedade e prever todas as variáveis, que é o caso do 11 de setembro do setor elétrico, em que eu pego também, de novo, dezenas de decretos que são lançados para corrigir distorções produzidas por decretos anteriores, que pressupunham, nos agentes econômicos, uma motivação diferente daquela realmente existente.
Então, os pontos de contato retórico entre o momento mais desenvolvimentista e nacionalista do regime e a volta desse discurso nos governos Lula tardio, e especialmente no Dilma, são evidências empíricas que eu estou trazendo, de reiteradas palavras, de reiterados planos, reiterados pronunciamentos etc.
O Plano Brasil Maior, lançado pela Dilma, tem uma série de unidades semânticas que são, ipsis litteris, reaparições dos sintagmas usados por Ernesto Geisel naqueles discursos soporíferos em que Geisel lança "planos estratégicos". Então, me parece que é uma pura apresentação de evidência. É claro que pode-se concordar ou discordar da análise desse material que eu faço, mas eu gostaria que esse material fosse observado.
No livro você tece duras críticas à ciência política brasileira, no sentido de que ela foi incapaz de fazer um diagnóstico preciso do que estava acontecendo - e o resultado das eleições de 2018 demonstra isso. E você faz menção a alguns estudos, acho que não por acaso, da antropologia (...)
Eu sei que muito provavelmente os colegas da ciência política terão restrições ao livro. Mas a operação que eu fiz com o material da ciência política dos últimos 30 anos, desde o texto do Sergio Abranches sobre o presidencialismo de coalizão, foi tomar a história desse conceito como um objeto de análise. Ele é um sintoma. Ele não é uma teoria do que aconteceu. E os cientistas políticos hoje sabem que o presidencialismo de coalizão não é uma teoria do que aconteceu no Brasil nos últimos sete anos. É o contrário. O que é normal, em qualquer disciplina, de que aquele conceito exaurisse a descrição do sistema político brasileiro.
Então, foi com esse sentido que eu coloquei o "presidencialismo de coalizão"; o "peemedebismo", do [filósofo] Marcos Nobre; e o "ornitorrinco", do [sociólogo] Chico de Oliveira, como três modelos de como o Brasil descreveu uma característica essencial do seu sistema político, que é o acolchoamento de antagonismos ou a combinação oximorônica de antagonismos ou a coexistência paradoxal de antagonismos. Coloque como você quiser. Mas esses antagonismos no sistema político brasileiro são mascarados. Eles não afloram na sociedade. Eles são exilados para uma sala fechada, em que se realizam negociatas e se formam supermaiorias legislativas baseadas em uma política da chantagem, do suborno e do veto.
Então, me pareceu que valia a pena, para colocar no começo do livro, no capítulo 2, porque é uma espécie de descrição do terreno que espatifou. Você pode argumentar que, agora, o Bolsonaro tem que reconciliar com o Centrão - o peemedebismo de volta. Sim, claro, o Centrão mantém sua importância. Mas aquele arranjo pemedebista que o Marcos Nobre descreveu - ou aquele arranjo de presidencialismo de coalizão que a ciência política descreveu - espatifou ao longo dos últimos sete anos. Então, eu tomo o conceito como uma espécie de capítulo importante da história do pensamento brasileiro, o que não é pouca coisa.
Mas eu sei que os cientistas políticos estão agora na avaliação autocrítica da trajetória desse conceito, como seria de se esperar. E eu espero sinceramente que o meu livro seja lido como uma contribuição a essa reflexão e não como um ataque à disciplina. Pode ser que em algum momento eu tenha deixado escapar um pouco a verve de comentarista de internet, que a modulação do discurso pareça hostil, mas realmente não é hostil. Ela é uma leitura do conceito como capítulo importante da história intelectual brasileira, que descreve um arranjo que se espatifou.
Talvez a contribuição da antropologia, nesse sentido, seja justamente a do exercício da escuta. Se você olhar para os melhores trabalhos de antropologia nos últimos anos, é de gente que se recusou a reagir através do choque ou do deboche e que foi para a rua ouvir o que as pessoas tinham a dizer (...)
O trabalho que a antropologia fez nesse século é muito importante. Dessas etnografias incipientes do bolsonarismo, eu gosto muito do trabalho da Letícia Cesarino, professora da UFSC. Ela já iluminou várias facetas do bolsonarismo. Uma faceta que ela trabalhou e que eu cito livro e sobre a qual eu me apoiei é essa descrição do bolsonarismo como mosaico. Ela usou o termo "fractal". "Fractal" porque ele vai congregando blocos. Esses blocos não permanecem os mesmos na medida em que eles vão se juntando.
O "Partido da Polimilícia" - o termo é meu - não permanece o mesmo no momento em que ele entra em contato com o Partido Boi, com o Partido Teocrata. E o trabalho da Leticia, com a noção de "fractal", ilumina muito isso. Outra observação muito aguda que ela faz em algum momento do trabalho dela é que a antropologia teve que se reequipar para entender o bolsonarismo.
Ela própria faz uma reflexão autocrítica sobre a disciplina. Porque, as palavras são dela, "a antropologia estava acostumada a pesquisar e investigar populações que se reclamam a partir de uma política da diferença. E, de repente, o bolsonarismo coloca um objeto novo, na medida em que não é uma comunidade que se reclama a partir de uma política da diferença".
Então, essas contribuições da antropologia eu acompanho com muita atenção, eu as cito no livro e, claro, sou um leitor devoto da antropologia brasileira - de Eduardo Viveiros de Castro para trás, tudo. E eu estou feliz, digamos, de ter dado uma atenção mais detalhada a esse trabalho, tanto nas antropologias e etnografias do bolsonarismo quanto no capítulo 4, que é sobre lexicocídio e Amazônia, que é basicamente um diálogo com a antropologia e com as lideranças indígenas.
Nós acabamos de completar 57 anos do golpe que deu início à última ditadura militar no Brasil. Nos últimos anos, as Forças Armadas vêm subindo o tom quanto à importância de, segundo elas mesmas, comemorar o evento. Hoje, sabemos que o general Villas Bôas não escreveu sozinho aquele tuíte ameaçando o Supremo Tribunal Federal diante da possibilidade de soltar Lula. No capítulo 2 do livro, você descreve o "pacto da amnésia" como uma constante na história da política brasileira. Nesse caso específico, em que medida você acredita que o pacto contribuiu para essa escalada?
Ele foi o fator decisivo, eu diria. "Retórica da amnésia" aqui entendida como uma espécie de vocação histórica - cujas raízes historiográficas e antropológicas a gente pode discutir à exaustão - do país à amnésia. Nos nossos pactos políticos, em geral, o que nós pactuamos é o esquecimento. O exemplo paradigmático é a própria Anistia de 1979, que foi recepcionada pela Constituição de 1988 graças a uma decisão do Supremo, que resolveu fechar os olhos para os argumentos do direito internacional de que crimes contra a humanidade são imprescritíveis e de que, por definição, não pode existir anistia de algo que não se admitiu.
O Brasil passou por cima dessas premissas sólidas do direito internacional e validou um pacto amnésico que igualava torturadores e torturados e que obstaculizou muito o trabalho de memória que nós teríamos que ter feito. Que a Argentina fez, que o Chile de alguma maneira mais difícil fez, que o Uruguai fez e que nós não fizemos. A circulação livre de falsidades absolutas, como a de que o golpe [de 1964] foi dado preventivamente porque se preparava um golpe comunista e havia uma esquerda com armas, esse tipo de mentira patente, que está muito além de qualquer debate historiográfico legítimo que a gente pode ter sobre o apoio minoritário da população ao golpe, vem diretamente da nossa incapacidade de acertar as contas com o passado.
Essa incapacidade pode ser observada em muitos aspectos da vida social brasileira. Para começo de conversa, nomes de praça, nomes de estádios. O Rio de Janeiro tem uma praça Emilio Garrastazu Médici. O Brasil tem estádios com nomes de ditadores ainda. Na Argentina não há um só. Essa agitação que o bolsonarismo conseguiu fazer com o fantasma do anticomunismo e com falsidades históricas sobre o golpe de 1964 floresceu no nosso tradicional terreno da desmemória e obviamente reforça esse terreno - tem com ele uma relação dialética.
É muito preocupante o que a gente vê hoje, em termos de ocupação do aparato estatal por militares. São 9 mil militares no governo. A circulação livre de negacionismo histórico entre lideranças do aparato estatal. É um caso absolutamente único na América Latina, nesse sentido. Nós não fomos os únicos a ter uma ditadura sanguinária, mas nós somos os únicos a manter transitando entre líderes do aparato executivo, legislativo e até em comarcas significativas do judiciário um discurso negacionista, falso, mentiroso sobre a história, sobre a esquerda armada em 1964. É parte integrante dessa espécie de construção amnésica que é o Brasil.
A impressão que tenho lendo seu livro é que ele poderia tranquilamente ter sido escrito por um intelectual de esquerda no início do século, até quem sabe o fim do segundo governo Lula, mas não agora. Você concorda com essa hipótese? E, se sim, sabe dizer por quê?
Eu acho que sim. No entanto, o paradoxo é que eu, ao longo dessa última década, votei apenas em quatro partidos: PT, PSOL, PSTU e PDT - o Ciro Gomes no 1º turno de 2018. Esse não é o histórico de votação de uma pessoa de centro. Não é o de um liberal. Eu respeito o liberalismo, dialogo com o liberalismo. Qualquer liberal sabe que eu não sou um deles.
O conteúdo das minhas posições é o que você esperaria de um intelectual de esquerda, ou seja, eu apoio o Bolsa Família; o direito ao aborto; o direito à greve; a reforma agrária; o investimento em energias renováveis; demarcação de terras indígenas; sou a favor de forte taxação progressiva; de uma gestão social-democrata na economia, para que ela não tenha rédeas livres para concentração de capital etc.
No entanto, no Brasil existe uma captura do significante "esquerda" por uma corrente específica e por razões específicas, que têm a ver com o sucesso que essa corrente teve durante algum tempo na gestão da economia - tributária, em grande medida, do boom das commodities, que não foi mérito dela. Mas foi, sim, mérito dela a capitalização desse dinheiro extra para reformas social-democratas que mitigaram o sofrimento de muitos.
A forma particular em que essa corrente estabeleceu a sua hegemonia discursiva em determinadas comarcas da sociedade brasileira é uma história que precisa ser contada. E eu conto parte dela no livro. Dois dos muitos setores da sociedade brasileira em que essa corrente passou a capturar completamente o significante "esquerda" são a universidade e o meio artístico. Na universidade e no meio artístico é amplamente hegemônica a percepção não teorizada, não refletida, de que quem mantém uma posição cética e distanciada analisando o lulismo como o que ele é, um agente político entre outros, é um inimigo da esquerda.
Dada essa circunstância, eu fiz o que a torcida do Palmeiras fez quando foi chamada de "porco". Eu não vou brigar por um significante. Você quer dizer que eu sou direita, eu sou direita. Mas, as minhas posições sobre as matérias em pauta na sociedade brasileira são essas que eu acabei de listar. E o meu histórico de votação é esse que eu acabei de listar. Então cabe àqueles que reduzem esquerda ao lulismo pensar se vale a pena categorizar como "liberal" e/ou "não esquerda" e/ou "direita" uma pessoa que votou em Lula para presidente oito vezes - e ainda votei duas vezes em Dilma em 2010.
Você pega uma parte da esquerda, que é aquela compreensão lulista dos acontecimentos, e transforma aquela leitura em uma espécie de passaporte para ser legitimamente chamado de esquerda. Não me interessa jogar esse jogo. Se o interlocutor, vendo a minha história, meu argumento, meu posicionamento sobre as matérias em pauta, acha que eu não sou de esquerda, paciência. Eu não vou perder tempo lutando por um rótulo, que, além do mais, traz com ele uma carga tão complicada no Brasil de hoje.
Em meados da primeira década do século, entre o primeiro e segundo governo Lula, a classe intelectual à esquerda era, em média, muito mais crítica dos governos petistas do que hoje (...)
Era mais independente. A chantagem funcionava menos. E o bolsonarismo piora muito a situação, evidentemente. Porque agora a chantagem é com o fascismo do outro lado. Ou seja, o cálculo dessa chantagem não é algo que não esteja documentado. Está documentado que as grandes lideranças petistas se recusaram a atacar Jair Bolsonaro no 1º turno das eleições. Está documentado que lideranças petistas disseram explicitamente, muitas vezes, que o 2º turno com Bolsonaro era o 2º turno ideal.
Está documentado que Lula se moveu de formas bastante agressivas para impedir a consolidação de qualquer outra candidatura não bolsonarista. Ele inclusive sabotou a candidatura da sua própria correligionária no Recife para dinamitar a possibilidade de que Ciro Gomes se consolidasse. Não sou cirista, Ciro não é Santo, mas esses movimentos foram reais. Então nós precisamos de um ajuste de contas com a memória também mais recente, que são esses momentos do 1º turno de 2018.
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