Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Boçalidade e incompetência: o raio-X de Paulo Guedes em reunião vazada
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[RESUMO] Áudio vazado da reunião do Conselho de Saúde Suplementar (Consu) em 27 de abril, que teve participação do ministro Paulo Guedes, foi esquadrinhado na íntegra por Fernando Cássio e Marco Antonio Bueno Filho, professores da UFABC. A análise textual revela a incontinência verbal de Guedes: a maior parte das falas da reunião girou em torno das intervenções do ministro da Economia, focalizadas na suposta superioridade do setor privado em relação ao público. Questões relativas à regulação do setor da saúde suplementar e à própria pauta da reunião foram secundarizadas. Os comentários de Guedes foram marcados por autolouvação, erros grosseiros, exageros, mentiras e altas doses de preconceito. Até que ele descobre que o encontro está sendo transmitido ao vivo e modera o tom.
* Por: Fernando Cássio e Marco Antonio Bueno Filho
Sempre que o mais bolsonarista dos ministros de Bolsonaro imagina que não está sendo filmado, ele não se contém em botar os bofes para fora. Foi o que aconteceu na reunião do Conselho de Saúde Suplementar, o Consu, realizada em 27 de abril no 4º andar do Palácio do Planalto. Quando Paulo Guedes soube que o encontro estava sendo transmitido, seus valores reacionários, seu ódio de classe e seu desprezo por tudo o que seja público já jorravam pela sala 98.
O ministro da Economia padece de um curioso mal estomacal, caracterizado por episódios eméticos que ocorrem exclusivamente entre quatro paredes e quando câmeras e microfones estão devidamente desligados. Desta vez, o vomitório do ministro enojou até mesmo os habituais passadores de pano. Mas o nojo, como veremos, não durou uma semana.
Saúde suplementar? Perguntem ao Posto Ipiranga
O Consu é um órgão colegiado do Ministério da Saúde com competências definidas na Lei dos Planos de Saúde (Lei n. 9.656/1998). Entre idas e vindas ao longo dos anos, o Consu foi mais recentemente "reativado" por iniciativa do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que pretendia desburocratizar e simplificar o setor da saúde suplementar.
Note-se que antes de assumir o cargo Mandetta havia sido executivo de planos de saúde. Deixamos para as(os) especialistas em políticas de saúde as ilações sobre as intenções do então ministro em reativar o Consu.
De acordo com o seu Regimento Interno - lavrado no Decreto n. 10.236/2020, assinado por Bolsonaro -, o Consu é agora composto pelo ministro da Saúde (que também o preside), pelo ministro da Justiça e Segurança Pública e pelo ministro da Economia, além do ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República.
Por força regimental, o cargo de secretário-executivo do Consu é ocupado pelo presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar, a ANS. É por isso que estavam reunidos no 4º andar do Palácio do Planalto os ministros Marcelo Queiroga, Luiz Eduardo Ramos, Anderson Torres e Paulo Guedes, acompanhados de alguns secretários-executivos, de um subprocurador-geral da República e de representantes da ANS.
A pauta da reunião de 27 de abril continha apenas dois itens: 1) a aprovação do Plano de Trabalho Anual do Consu; e 2) a apresentação de uma minuta da Política Nacional de Saúde Suplementar para o enfrentamento da pandemia de covid-19, que, caso aprovada, seguiria para consulta pública. É o ministro-chefe da Casa Civil quem inicia os trabalhos: puxa uma conversa amena com Paulo Guedes sobre vacinas e a politização da pandemia (nas palavras de Guedes, "subir em cadáver pra fazer política").
Luiz Eduardo Ramos: [...] nós temos que entender agora que o vírus não tem partido. O vírus ele ataca todos nós, né? [...] eu já me vacinei... AstraZeneca. O Guedes também. E tenho tentado convencer o presidente de que essa cepa [...] ela é uma variante muito violenta que tá ceifando vidas assim, assustadoramente, próximos da gente [...].
Paulo Guedes: Você tomou a AstraZeneca?
Luiz Eduardo Ramos: Tomei a Oxford.
Paulo Guedes: (ininteligível) [00:02:04], foi aqui em Brasília?
Luiz Eduardo Ramos: Foi em Brasília, ali no Shopping Iguatemi. Tomei escondido, porque a orientação era pra mim (sic) ficar em casa, mas vazou. Não tenho vergonha não.
Paulo Guedes: Eu tomei CoronaVac.
Luiz Eduardo Ramos: E eu tomei e vou ser sincero, porque eu, como qualquer ser humano, eu quero viver, pô. Eu tenho dois netos maravilhosos, eu tenho uma mulher linda, eu tenho sonhos ainda. Então, eu quero viver, pô. E se a ciência, a medicina, tá dizendo que é a vacina - né, Guedes? -, quem sou eu pra me contrapor? E estou envolvido pessoalmente, tentando convencer o nosso presidente, independente de todos os posicionamentos dele, nós não podemos perder o presidente com um vírus desse. A vida dele no momento corre risco, ele tem 65 anos [Jair Bolsonaro tem, na verdade, 66]. Mas isso é só um comentário.
Ramos não sabia, mas o vídeo da reunião estava sendo transmitido ao vivo pelas redes sociais do Ministério da Saúde. A repercussão foi terrível. O general condecorado que precisou se esconder do presidente-capitão para ser imunizado foi chamado de covarde. A Casa Civil até tentou remediar a situação.
Foi um pouco antes desta troca de amenidades entre Ramos e Guedes que ficamos sabendo que ambos, naquela mesma manhã (a reunião do Consu começou por volta das 11h00), haviam tido uma reunião "bem produtiva, até agradável, com o Tribunal de Contas da União". Não há registro dessa reunião nas agendas dos dois ministros e nem na dos membros do TCU, instância de controle e fiscalização que deveria primar pela transparência.
Depois de quebrar o gelo, o anfitrião Luiz Eduardo Ramos passa a palavra a Marcelo Queiroga, ministro da Saúde e presidente do Consu, que faz sua exposição inicial. Tivemos acesso apenas ao áudio da reunião (gravado e cedido gentilmente pela Rádio CBN), mas depreendemos que as considerações iniciais do cerimonioso Queiroga estavam sendo lidas. Sua saudação mais efusiva foi dedicada ao "nosso ministro de Estado da Economia, Paulo Guedes, mais conhecido como Posto Ipiranga, que tem tido uma participação fortíssima nesse governo e é uma referência para todos nós ministros".
Feitos os primeiros rapapés, Queiroga apresenta um panorama do setor da saúde suplementar no país, explica o papel da ANS e menciona dados que apontam que o encolhimento da renda da população durante a pandemia fez muita gente perder o plano de saúde e recorrer ao SUS. Em seguida, chama Daniel Pereira, servidor da ANS e assessor especial do Ministério da Saúde. Mas antes de passar a palavra, aproveita para elogiar o serviço público e agradecer Bolsonaro e (mais uma vez) Paulo Guedes:
Marcelo Queiroga: [...] Eu quero aqui destacar que o Presidente Bolsonaro, ao me nomear Ministro da Saúde, me deu autonomia para que eu constituísse uma equipe técnica do Ministério da Saúde. E eu estou cumprindo a determinação de Vossa Excelência. Os meus secretários são funcionários públicos. Rodrigo Cruz, secretário-executivo, funcionário do Ministério da Economia. Eu já agradeço ao ministro Paulo Guedes nos ter cedido para que ele exerça essa função de secretário-executivo. O doutor Daniel Pereira é um funcionário de carreira da Agência Nacional de Saúde Suplementar, e trazê-lo para o Ministério é uma forma de prestígio à carreira da saúde suplementar no Brasil.
Pereira apresenta o que parece ser um conjunto de slides com o Plano de Trabalho Anual do Consu (item 1 da pauta) e com os "princípios", "objetivos" e "diretrizes gerais" da Política Nacional de Saúde Suplementar (item 2). Fala nervosamente durante quase dez minutos, até ser interrompido pelo nosso protagonista. A apresentação do item 2 da pauta só seria retomada 16 minutos depois:
Paulo Guedes: Me explica uma coisa... [...] Só pra eu entender. Ações que visem o desestímulo ao atendimento do beneficiário de plano de saúde. Então o sujeito tem um plano privado, aí ele tá usando o SUS, e a gente quer então que ele use a rede privada... [...]
Marcelo Queiroga: Desonera a rede pública. Se ele usar a rede pública, a operadora tem que ressarcir ao SUS. [...]
Paulo Guedes: Eu tô pensando mais no construtivo do que... ao invés de desestimular [...]. É só falar assim: "toda vez que você usar, você vai pagar". Acabou. Basta você falar isso pra operadora, falar assim: "ó, toda vez que um cara seu usar, você vai pagar". Eu não preciso desestimular. Pelo contrário, falar assim: "ó, vai pagar"... É só o fraseado aí...
Marcelo Queiroga: Ministro, [...] o Consu ele é pouco utilizado, o que é um erro, porque se ele tá previsto em lei é porque ele tem que funcionar, né? Então eu já deixo aqui bem claro que não se trata de uma ação de intervenção do Ministério da Saúde ou do governo federal na ANS. É uma ação que está prevista em lei. E essas diretrizes são diretrizes que trazem orientações, tanto é que são submetidas a consulta pública, não é, Daniel?
Daniel Pereira: É... isso.
Queiroga parece não ter entendido que a intervenção de Guedes se referia tão somente ao "fraseado" da minuta, e corre para justificar que não havia ali nenhuma "ação de intervenção do Ministério da Saúde" na ANS ou nos planos de saúde. Pereira só consegue confirmar com um gaguejante "É... isso".
Marcelo Queiroga, que assumiu o cargo há menos de dois meses, se desmancha em salamaleques e pedidos desnecessários de desculpas a Guedes ao longo de toda a reunião. Tremelicando diante do Posto Ipiranga, o ministro da Saúde e o assessor especial são salvos por Rogério Scarabel, o diretor-presidente substituto da ANS. Ele pede a palavra e esclarece que não é preciso incluir na nova Política Nacional de Saúde Suplementar um mecanismo para "desestimular" beneficiários de planos de saúde de utilizarem o SUS:
Rogério Scarabel: Para toda utilização [do SUS] de beneficiário de plano de saúde há o ressarcimento correspondente pra União. Inclusive, em 2019, foi devolvido mais de R$ 1 bilhão. No ano passado, mais de R$ 800 milhões. Então, assim, isso já ocorre hoje, tá? Inclusive a ANS também já tem um normativo claro para que a operadora, ao saber que o seu paciente está no setor público internado ou realizando qualquer procedimento, vá até ele e proponha ele ir para a rede privada. Isso já existe em normativa da ANS. A dificuldade maior, nesse caso, é do gestor informar à operadora.
A política de ressarcimento ao SUS existe desde 1998 (está definida na Lei dos Planos de Saúde), e sobre ela há uma vasta produção técnica e acadêmica. Scarabel pondera que há, de fato, um gargalo de informação entre gestores e operadoras de planos de saúde, aspecto da política que poderia ser melhorado.
Assim, em vez de redefinir o texto e debater longamente o "fraseado" da redefinição, Scarabel deixa no ar que a melhor coisa a fazer seria aprimorar o funcionamento da política pública já existente. Esta é, aliás, uma das competências regimentais do Consu: "estabelecer e supervisionar a implementação e a execução de políticas e diretrizes gerais do setor de saúde suplementar" (Art. 2º, I). Mas, não satisfeito com a explicação objetiva do especialista Scarabel, Paulo Guedes volta a discorrer sobre o uso da palavra "desestímulo". Seu novo monólogo dura outros 13 minutos.
'Me dá um estímulo que eu trago ouro da Lua'
Guedes inicia seu "relato de experiência" contando como ele, "pensando como investidor do setor privado", chegou a um luminoso diagnóstico: "o setor público brasileiro não vai conseguir educar a população brasileira. Porque gasta muito, muita corrupção, joga dinheiro fora, não sabe gerir. Vai dar problema pro setor de educação. Eu vou começar a olhar oportunidades de investimento".
Um pouco antes, ao comparar os dados educacionais de hoje com os de 20 anos atrás, o ministro havia afirmado existirem 36 milhões de estudantes matriculados na educação básica no país (na verdade, o último Censo Escolar do Inep registrou 47,3 milhões de matrículas). Lapsos como esses são frequentes nas falas do Posto Ipiranga, mas - para quem ganha a vida recitando dados quantitativos para plateias impressionáveis - esquecer mais de 11 milhões de estudantes não é um erro banal.
Ainda que a pauta da reunião não tivesse relação direta com o sistema público de saúde, Guedes segue com sua peroração sobre as diferenças entre o público e o privado - e a inquestionável superioridade do segundo sobre o primeiro. O ministro cita exemplos da educação e da saúde, setores em que se julga possuidor de vasta experiência.
Paulo Guedes: E aí, sem apoio político nenhum, eu simplesmente sabia da inevitabilidade [de que a educação superior pública não daria conta da demanda por vagas no país]. [...] Bom, aí o Paulo Renato [Souza, ministro da Educação de FHC] permitiu os investimentos em ensino superior. Resultado: hoje 76% dos jovens universitários brasileiros estão no setor privado. O setor público, primeiro não tinha capacidade de acompanhar os investimentos. Segundo, vocês estão vendo o que é que tá virando a universidade pública. [Ensinando] Paulo Freire, ensinando sexo pra criança de cinco anos, todo mundo fumando maconha à vontade. Circulação livre, maconha, bebida, droga dentro da universidade. Quer dizer, está caótico.
Se vinte jornalistas da grande imprensa tentassem adivinhar o nome do ministro de Bolsonaro que proferiu estas últimas frases, uns bons tantos apostariam em Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. No entanto, é Guedes quem as profere. Em sua tortuosa linha de raciocínio, ele pilota um voo sem escalas entre a condição das universidades públicas e os mecanismos de financiamento das políticas de saúde. O grande perito disserta sobre os anseios e necessidades da população fazendo uso de uma "categoria social" muito presente em seus discursos: "o pobre".
Paulo Guedes: O Estado brasileiro é um Estado quebrado. [...] E ele quebrou no exato momento em que o avanço da medicina... eu não falo nem da pandemia, eu falo do direito à vida. Todo mundo quer viver cem anos, 120, 130. Todo mundo vai procurar o serviço público, e não há capacidade instalada no setor público pra isso. Vai ser impossível acompanhar. Então a solução, eu acho, será igual nós fizemos com o auxílio emergencial. Você tem duas formas de ajudar o pobre. Um é direto na veia, você dá o dinheiro pro pobre. Foi a maior redução de pobreza em 40 anos no Brasil, em seis ou sete meses que nós demos dinheiro direto. O outro é a forma antiga de Brasília, que é assim: monta um ministério, o ministério passa o dinheiro pro banco público, o banco público repassa o dinheiro pra uma agência autônoma, a agência autônoma [...] passa pelo ranário do conhecido do senador. Depois vai, depois vira e um dia, dos 100,00 que você emprestou, chega 1,00 de volta! Então, nós vamos ter que tomar a mesma decisão aqui na saúde. Ou nós vamos passar o dinheiro para os hospitais públicos [...] - olhem o estado da gestão dos hospitais públicos, como é que eles estão no Brasil inteiro -, ou nós vamos fazer esse mecanismo super indireto, ou nós vamos fazer o seguinte: é como se fosse um auxílio emergencial: "você é pobre, você tá doente, tá aqui seu voucher. [...] Se você quiser você vai no SUS, se você quiser você vai no Einstein".
Para além dos adjetivos que se possa atribuir ao conteúdo dessa fala - que foi objeto do meme "se vocês morrerem, o país decola!" -, pergunta-se o que levou Paulo Guedes a achar que seria oportuno expor em uma reunião com membros da ANS as maravilhas dos vouchers como substitutivos à oferta gratuita e universal de saúde pública para "o pobre".
Como o vídeo foi apagado pelo Ministério da Saúde imediatamente após o término da reunião, não é possível identificar a fisionomia e as reações dos servidores da ANS, mas nada nos impede de imaginá-los se contorcendo nas cadeiras e se perguntando sobre a razão de terem viajado do Rio de Janeiro a Brasília em meio à pandemia para ouvir tanta estultícia.
Paulo Guedes: [...] um pouco antes de eu vir pra cá, eu também tava investindo em hospitais privados. Simplesmente por saber que o setor público não vai conseguir acompanhar. A demanda de saúde, de serviços de saúde, é explosiva. Quanto mais avançada uma sociedade, mais ela vai se cuidar. E todo mundo quer o direito de viver pra sempre. [...] não tenhamos a ilusão de que será possível fazer uma rede pública que vá atender todo mundo. Então essa ideia realmente de "olha, se você já é privado, já tem a rede, vem usar aqui, faz favor, pague! Que nós precisamos manter a qualidade aqui do público também". [...] eu sei, porque eu vi, eu investi e vi. O sujeito sai de uma escola privada, ele apaga a luz. O sujeito sai de uma escola pública, ele deixa a luz acesa. Não é dele, o problema não é dele. Ele vai embora pra casa e tá tudo bem. Deixa a luz acesa, né? No hospital privado, o sujeito bate todo dia na porta lá do... fez a cirurgia ontem de apendicite. De manhã cedo: "tá tudo certo? Tá com febre?". "Não". "Vamos embora. Sai da cama aí, pô. Você não vai ficar na cama não. Vamos embora. Tem que desalojar". No sistema público, o cara fica oito dias deitado. Aí tem uma fila no corredor querendo entrar. Não tem gestão, entendeu?
Para Guedes, não existe assomo de gestão profissional no setor público - somente gastança, burrice e corrupção. Nas universidades e escolas públicas, luzes acesas, Paulo Freire, sexo para crianças, drogas e álcool (só não tem álcool em gel!). Nos hospitais públicos, preguiça, incompetência e leitos transformados em quartos de hotel. Já o hospital privado seria terra onde reinam o senso prático e a finesse: "sai da cama aí, pô. [...] Tem que desalojar". Isso é gestão!
Enquanto regurgita nos ouvidos dos presentes, o descontraído Paulo Guedes conta aos representantes da agência que regula o funcionamento dos planos de saúde no Brasil que "tava investindo em hospitais privados" antes de assumir o cargo no governo. Apaixonado por suas palavras, desata a falar, dando voz ao investidor que mora dentro de si. Torna-se, como de costume, o centro das atenções:
Paulo Guedes: Então... eu acho até que exageraram no caso do privado, por razões outras, deram aquele fundo pra educação. Exageraram, deram R$ 40 bi, enriqueceram meia dúzia de empresário aí. Foi um desastre. Porque exageraram, e aí não conseguiram manter. Como é que chama aquele dinheiro que foi dado pro... Fundo de Educação? É...
[NÃO IDENTIFICADO]: Fundeb?
Paulo Guedes: Não, Fundeb foi agora. É... teve uma bolsa que o governo deu...
[NÃO IDENTIFICADO]: Fies.
Paulo Guedes: Fies! Deu uma bolsa pra todo mundo, tinha cara que preenchia ficha... o porteiro do meu prédio, uma vez, virou pra mim e falou assim: "Seu Paulo, eu estou muito preocupado". "O que é que houve?". "Meu filho passou na universidade privada". "Ué, mas você tá triste por quê?". "Ele tirou zero na prova. Ele tirou zero em todas as provas. E eu recebi um negócio dizendo assim, ó: 'Parabéns, seu filho tirou [...] zero'". Então, foi até pro outro extremo. Deram bolsa pra quem não tinha a menor capacidade, não sabia ler, não sabia escrever, nada. Botaram todo mundo. Exageraram, foi de um extremo ao outro. [...] Como eu venho do setor privado, eu sei que tudo no setor privado é o "estímulo". Me dá um estímulo que eu trago ouro da Lua. Você viu que o foguete agora, a NASA, é tudo privado também, né? O SpaceX, né? O setor público quebrou. Não consegue mandar o cara pra Lua toda hora. O setor privado em um ano inventou um foguete que vai, joga o astronauta lá, volta, aterrissa, então pode lançar toda hora.
A zombaria com o filho do porteiro na universidade também estampou manchetes, embora menos do que o insulto à China, que será mostrado adiante. O conteúdo desses comentários não é nada surpreendente, mas há algo aqui que vai além do preconceito: é a total falta de apuro técnico do ministro técnico da "ala técnica" do governo, que trata programa de financiamento estudantil e "bolsa" como se fossem a mesma coisa.
Faz quase dois anos e meio que Paulo Guedes comanda o Ministério da Economia. Está vivendo a experiência mais significativa de sua carreira profissional, mas fala as mesmas platitudes e conta os mesmos causos do tiozão bem-sucedido que "veio do privado" e enriqueceu.
Mais de dois anos depois, é difícil identificar o que é que a sua atuação como ministro mais influente do governo federal teria agregado em termos de "experiência" à resplandecente carreira do investidor privado, já que ele mal emprega corretamente a linguagem das políticas públicas.
Ao mesmo tempo, há um tanto de dissimulação na informalidade com que Paulo Guedes se refere ao Fies, o Fundo de Financiamento Estudantil, fingindo não lembrar os nomes das coisas: "Como é que chama aquele dinheiro que foi dado pro... Fundo de Educação? [Fundeb? - um dos presentes tenta ajudar] Não, Fundeb foi agora. É... teve uma bolsa que o governo deu... [Fies.] Fies!".
São amplamente conhecidas as incursões de Elizabeth Guedes, irmã do ministro e presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup), pelos altos escalões do governo federal. A grande pauta da Anup é a manutenção do volume de crédito estudantil proveniente do Fies, que assegura a sobrevivência de um grande número de faculdades e universidades privadas.
Antes de assumir o cargo, Paulo Guedes esteve à frente da Bozano Investimentos, com participação em diversas empresas de educação que sobrevivem do Fies. Assim, quando o Posto Ipiranga comenta que o Fies enriqueceu "meia dúzia de empresário aí", instala-se uma dúvida: estaria ele criticando os efeitos concentradores do Fies ou expressando desolação por não ter feito parte do grupo dos que lucraram bilhões com as transferências federais às universidades privadas?
Mas o momento áureo da reunião vem agora, quando, a pretexto de exaltar mais uma vez o setor privado, Paulo Guedes assevera que o "chinês que inventou o vírus, e a vacina dele é menos efetiva do que a do americano. O americano tem cem anos de investimento em pesquisa. Então, os caras falam, 'qual é o vírus? É esse? Tá bom, decodifica'. Tá aqui a vacina da Pfizer. É melhor do que as outras".
O ministro se retratou horas depois da reunião ("usei uma imagem infeliz") - e até afirmou que "Nós somos muito gratos à China por ter nos enviado a vacina" (afinal, ele tomou a CoronaVac) -, mas se voltarmos ao primeiro minuto da gravação ouviremos um Paulo Guedes interessadíssimo em saber onde, em Brasília, o ministro Luiz Eduardo Ramos teria conseguido uma dose da vacina produzida pela britânica AstraZeneca.
Na semana em que o Brasil alcançou a triste marca dos 400 mil mortos em decorrência da covid-19, a fala do Posto Ipiranga sobre a vacina chinesa revoltou até mesmo alguns de seus zelosos passadores de pano na imprensa. A retratação do ministro veio quando a íntegra do áudio da reunião ainda não havia sido amplamente divulgada, de forma que os comentários sobre as universidades públicas e o filho do porteiro não foram incluídos no pedido de desculpas.
Na sala 98, a incontinência verbal do Posto Ipiranga ainda não acabou. O vacilante Marcelo Queiroga tenta interrompê-lo para que Daniel Pereira conclua a apresentação do item 2 da pauta, mas sua excessiva gentileza não dá conta de amenizar a húbris do colega:
Marcelo Queiroga: Bom, a fala do ministro Paulo Guedes é muito ilustrativa, porque reforça o caráter liberal do governo, e que o governo quer que o setor da saúde suplementar ele se fortaleça cada vez mais. No entanto, o governo gostaria também de saber os indicadores do setor da saúde suplementar. Porque, por exemplo, nós sabemos os leitos que estão ocupados do SUS, nós sabemos qual é a mortalidade dos hospitais públicos, e nós não sabemos qual é a mortalidade dos hospitais privados. [...]
Paulo Guedes: Nós vamos nos assustar quando surgirem os números da mortalidade nos [hospitais] privados. Nós vamos ficar envergonhados da mortalidade no [hospital] público. Nós vamos ficar envergonhados. Eu estou falando isso como quem viveu e investiu do lado de lá da cerca. Então eu tenho certeza da maior capacidade de gestão, mas muito maior, não é um pouco maior, é muito maior.
Com a CPI da pandemia em plena atividade no Senado Federal, parece um bom plano que o governo federal queira saber o que se passa nos hospitais privados do país. Mas a possibilidade de que o setor privado esteja sonegando dados de mortalidade do Ministério da Saúde não inquieta aquele que "investiu do lado de lá da cerca".
O clarividente Paulo Guedes garante que as taxas de mortalidade nos hospitais públicos serão muito piores do que as observadas nos privados. E profetiza: a "capacidade de gestão [...] muito maior" dos hospitais privados cobrirá de vergonha o sistema público. Para o Posto Ipiranga, não há salvação do lado de cá da cerca.
Paulo Guedes: [...] vá a uma universidade privada e vá a uma universidade pública. Pega os dois produtos e vê a empregabilidade. Eu falo como alguém que conseguiu 100% de empregabilidade na... no Ibmec, que hoje é Insper em São Paulo. [...] Foi uma invenção minha. Eu criei esse troço vinte, trinta anos atrás. Eu tive que esperar oito anos uma licença do governo pra abrir uma universidade. Eu faço PhD lá fora, tenho dinheiro e me ofereciam todo mês: se eu desse um suborno pro MEC, eles me dariam a licença. Eu passei oito anos sem dar o suborno, esperando numa fila. Me ofereceram em trinta dias [...]. Pagar o MEC lá, em 30 dias você tem licença pra investir e ter uma universidade. Eu falei: "não, eu vou esperar". Esperei oito anos. Aí saiu a licença pra eu criar uma universidade. Criei a universidade, criei esses programas de MBA executivo que existem no Brasil. Então, isso é uma invenção minha. Em 1984 não existia programa de MBA no Brasil. Quer dizer, não tinha, eu inventei esse troço. Comprei o Ibmec. Perguntaram: "você quer ir no MEC registrar?". "De jeito nenhum. Não quero mais licença. [...] Eu preciso de licença pra criar uma faculdade. Eu não preciso de licença pra criar um curso que não existe. Eu é que inventei, eu não quero licença do MEC. "Ah, mas vai ser muito difícil as pessoas fazerem curso sem licença do MEC". Eu falei assim: "não, eu acredito no mercado". Resultado: todo mundo queria fazer o MBA. Cem por cento de empregabilidade. Dez, quinze anos depois, o MEC foi regulamentar um negócio que eu inventei. Ou seja, eu não preciso de regulamentação de ninguém pra inventar nada. Esse é o problema do Brasil.
Agora ficamos sabendo que foi ele, Paulo Guedes, o inventor dos programas de MBA no Brasil! Em pesquisa de 2002, Thomaz Wood Jr. e Ana Paula Paes de Paula investigaram o fenômeno dos MBAs no país. Nem eles e nem os autores de outras 11 teses, dissertações e artigos acadêmicos que apresentam algum tipo de retrospecto dos cursos de MBA no Brasil nomeiam o "inventor" da coisa ou mencionam o nome do agora ministro.
Apesar disso, um perfil publicado pelo portal InfoMoney (10 jul. 2020) afirma que, "no comando do Ibmec, Paulo Guedes ampliou a conversão do instituto em um centro de educação, ajudando a criar o primeiro MBA executivo em finanças do país". Para quem se considera capaz de trazer ouro da Lua, não há muita diferença entre ser mero coadjuvante e grande inventor. E Paulo Guedes é, sem sombra de dúvida, um grande inventor.
O desabafo do Posto Ipiranga sobre o reconhecimento de cursos de ensino superior no Ministério da Educação é outro momento curioso da reunião que passou ao largo da cobertura midiática. Cidadão ilibado, Paulo Guedes denuncia um esquema de suborno instalado no MEC. Não diz quando, nem como, e tampouco revela quem no MEC teria lhe pedido suborno para regulamentar sua maravilhosa invenção. Irmão de uma das maiores lobistas do ensino superior privado no país, Guedes ainda pragueja contra a regulamentação estatal de cursos de ensino superior na presença de... servidores da ANS, uma agência reguladora.
'Eu só destaco que essa reunião tá sendo transmitida'
Aos 41 minutos de reunião, Daniel Pereira consegue retomar a apresentação do item 2 da pauta, mas é interrompido antes de chegar à quinta diretriz geral da Política Nacional de Saúde Suplementar. O contexto era o alcance das coberturas dos planos de saúde, assunto da quarta diretriz:
Paulo Guedes: [...] nós podemos aproveitar o momento de sacrifício e crise, em regime excepcional [...] o que eu sugiro inclusive é que a gente chame os caras [as operadoras de planos de saúde]. Vamos ouvir os caras. [...] [As operadoras] Tiveram um ano excepcional, o que que aconteceu? Todo mundo com medo da doença, ninguém foi fazer [exame de] próstata, ninguém quis fazer os outros exames. Então possivelmente eles tiveram um lucro espetacular. Todo mundo pagou e não gastaram nada. Então, aproveitando esse clima excepcional, a gente pode empurrar [...] enfiar essa doença [a covid-19], que era desconhecida, não tava coberta no plano [...]. A gente bota pra dentro sem reajuste no preço durante o período da emergência, da pandemia [...]. Mas depois a gente tem que entender o seguinte: bom, como é que essa doença, que não era conhecida? Ela é diferente da próstata, que faz a cirurgia e em dois dias vai embora. Essa aí você fica lá no ventilador pulmonar três meses. [...] Então, pô, o plano de saúde vai ter que aumentar o preço pra cobrir esse tipo de emergência.
O tíbio presidente do Consu, que a essa altura já havia perdido o controle da reunião, improvisa uma explicação sem muita relação com o comentário anterior de Paulo Guedes. Começa o diálogo mais surreal da reunião. Paulo Guedes havia passado os 45 minutos anteriores na companhia do diretor-presidente substituto da ANS, única pessoa na sala a oferecer contorno técnico aos seus disparates. Mas quando Queiroga menciona "a Agência", o Posto Ipiranga parece não saber de que órgão se trata:
Marcelo Queiroga: Ministro, só destacar um ponto. Que a Agência ela tem se preocupado com as condições de solvência...
Paulo Guedes: A agência é a ANS?
Marcelo Queiroga: A ANS. Ela tem se preocupado com as condições de solvência das operadoras de plano de saúde. Eu quero registrar aqui, eu já cumprimento o Rogério pela...
Paulo Guedes: O Rogério tá na ANS?
Marcelo Queiroga: Ele é o presidente substituto... [Cumprimento o Rogério] pela sua liderança... Talvez, nós sabemos que vai haver...
Paulo Guedes: Eles tão bem? Estão tranquilos?
Marcelo Queiroga: [...] Esse aumento de sinistralidade que pode decorrer dessa segunda onda, em relação às doenças prevalentes, né? Talvez aqui fosse o caso de se observar a questão de solvência das operadoras pra enfrentar essa segunda onda, né? Eu acho que isso talvez seja motivo de uma outra diretriz.
Por onde andaria Paulo Guedes, que até aquele momento não havia percebido que a "Agência", no contexto daquela reunião, só poderia ser a ANS; e que o "Rogério", anunciado minutos antes como "diretor-presidente substituto da ANS", só poderia estar... na ANS?
O ministro da Economia interrompeu a reunião diversas vezes, desviou-se da pauta, falou obsessivamente sobre si mesmo e castigou os participantes com seu "fraseado". Mas parece que ele próprio não estava prestando a menor atenção no que se passava, e que não ouvia ninguém além dele próprio.
Marcelo Queiroga tem pavor de Paulo Guedes e, além disso, não possui um grande senso de humor ou uma inteligência muito aguçada. Lambeu o chão vomitado pelo colega e percebeu, uma hora depois, que, além de não ter ideia do que estava sendo tratado na reunião, o ministro da Economia nem mesmo sabia com quem estava reunido.
Em uma derradeira tentativa de elevar o nível da conversa, Rogério Scarabel explica que a engenhosa ideia de Guedes de regular os reajustes dos planos de saúde com base nos dados do ano anterior já é prática corrente da ANS.
Mas o diretor-presidente substituto, econômico em suas palavras, deixa de dizer o principal: que tudo o que uma agência reguladora não pode fazer é combinar as regras do jogo com "os caras" (as operadoras de planos de saúde), pois a isso poderíamos chamar formação de cartel. Para Guedes, não há qualquer semelhança entre a sugestão de chamar "os caras" pra conversar e, digamos, um esquema de corrupção no MEC para o reconhecimento a jato de cursos de ensino superior.
A reunião avança, e Marcelo Queiroga toma mais uma vez a palavra para adular Guedes. A sabujice chega às raias do constrangedor:
Marcelo Queiroga: No entanto, nós temos notícias - claro que as notícias chegam ao ministro da Saúde, né? [Queiroga parece estar dando um recado aos representantes da ANS] - que esses planos coletivos... já há operadoras planejando reajustes elevados, né? [...] Claro que a função do Consu, que tá aqui com o nosso ministro, que é o nosso líder do liberalismo no Brasil - eu acho que até uma das principais autoridades do mundo -, a gente não tem que intervir nessas questões de preço, etc., né? [...]
Paulo Guedes: Eu sempre falo que eu sou liberal, mas não sou trouxa.
Pela segunda vez, Queiroga tranquiliza "uma das principais autoridades do mundo" garantindo que aquele Conselho e a própria ANS não existem para intervir no mercado dos planos de saúde. Pois devem existir, então, para massagear as costas dos executivos das operadoras enquanto as práticas comerciais abusivas rolam soltas e as pessoas morrem aguardando autorização de plano de saúde em hospital privado sucateado!
Os participantes ainda não sabem, mas faz 47 minutos que a animada reunião está sendo transmitida pelos canais oficiais do Ministério da Saúde. A pauta se arrasta, e Daniel Pereira ainda não conseguiu terminar sua apresentação, duas vezes interrompida pelas imprescindíveis digressões de Paulo Guedes.
Aflito, Queiroga ainda deseja passar a palavra a dois participantes ilustres que ainda não se haviam se manifestado: Luiz Augusto dos Santos, subprocurador-geral da República presente à reunião na condição de convidado; e Anderson Torres, ministro da Justiça e Segurança Pública que falará apenas no último minuto da reunião.
O subprocurador Luiz Augusto usa o seu tempo para validar a posição de Paulo Guedes sobre vouchers na saúde. E sentencia: "Mas se isso aqui tiver gravado e sair aí [...], eu tô ferrado". O didático Queiroga arremata: "Porque você tá colocando o Sistema Único de Saúde versus...". Alguns dos presentes riem, enquanto o membro do Ministério Público Federal pontifica que sairia mais barato substituir o SUS por um sistema de vouchers.
A imprensa não chegou a questionar a Procuradoria-Geral da República sobre a fala de Luiz Augusto dos Santos. A propósito, a contribuição mais notável deste na reunião foi outra: chamar a atenção dos presentes para a câmera ligada na outra extremidade da sala 98. Ainda sob os efeitos da viagem à Lua, Paulo Guedes não percebe a situação. É alertado por Queiroga:
Paulo Guedes: É a mesma coisa das universidades públicas, onde o custo é três ou quatro vezes maior do que na universidade privada. Então, é claro que a gente tem essa obrigação de prover os serviços para a população brasileira [...]. Agora, curiosamente, a elite brasileira quando fica doente vai pra Boston, vai pro Einstein. E quer que o brasileiro simples fique num negócio do SUS ali [...], hospital de base e tal. A gente não pode ser hipócrita, né? Quer dizer o seguinte, seja público seja privado, a gente quer que seja o melhor atendimento possível. Não adianta ter muito público de baixa qualidade. É melhor ter menos e de maior qualidade. [...]
[resposta inaudível de Luiz Augusto dos Santos]
Paulo Guedes: Não tem ilusão não, porque existem os piratas privados. [...] Tá cheio de pirata privado.
Marcelo Queiroga: Mas o Daniel [Pereira, assessor especial] pode prosseguir, por conta do tempo? Só que essa reunião tá sendo gravada, viu ministro? [...] É só pra atender os requisitos de publicidade...
Luiz Augusto dos Santos: Sem dúvida [...].
Paulo Guedes: Só não manda pro ar, por favor. [...]
((risos))
Paulo Guedes: [...] o trecho quando eu falei que tem também pirata privado. Nem quando eu falei que a universidade pública é três vezes mais cara. Por favor, não vazem nada.
((risos))
Aos 50 minutos de reunião, Daniel Pereira retoma a apresentação do item 2, mas antes de devolver a palavra a Queiroga é interrompido pela terceira vez por Paulo Guedes, que parece finalmente ter aterrissado no 4º andar do Palácio do Planalto e se dado conta do estrago feito.
É provável que, um pouco antes, alguém tenha avisado a ele que a reunião estava não apenas sendo gravada "por requisitos de publicidade", mas transmitida ao vivo. Em sua última intervenção na reunião, o ministro da Economia protagoniza mais um de seus momentos "eu não sou racista; tenho até amigos negros". Ensaia um pedido de desculpas e aproveita para falar sobre si mesmo uma vez mais:
Paulo Guedes: Eu queria [...] deixar claro o sentido da minha observação, que é o seguinte: como eu venho do outro lado, a experiência de setor privado, eu tinha que dar esse depoimento a respeito do que é a capacidade de mobilização de investimentos e a capacidade de gestão que eu observei no setor privado, tanto em saúde pública, em programa de saúde, hospitais, como em programas de educação [...]. Agora, eu sou, não quero deixar de forma alguma, porque eu fiz um depoimento rápido a respeito do que aconteceu durante algumas gestões com algumas universidades públicas. Algumas... onde houve esse problema de droga, de maconha e tudo isso. Deseducação, em vez de educação. Mas isso não pode ser generalizado pro setor público como um todo, nem do ponto de vista de assistência à saúde, nem do ponto de vista educacional. Porque eu sou o melhor testemunho do que que a educação pública pode fazer. Eu estudei em escola pública a vida inteira. [...] de forma que qualquer depoimento que eu tenha dado, [se] vai pra televisão [...] pra não pegarem só um trecho, eu sou uma prova viva de que, com um algum investimento, uma pessoa pode sair de uma classe média-baixa e ter sucesso na vida profissional, na vida pessoal etc.
A reunião já corre para o fim, e Luiz Eduardo Ramos emenda um comentário sobre a fala de Guedes. Conta uma história vivida junto com a esposa em uma viagem oficial ao Equador. O ministro-chefe da Casa Civil faz questão de dizer ao Posto Ipiranga que pagou a passagem da companheira. E resume o caso com uma piada machista:
Luiz Eduardo Ramos: [...] Minha mulher começou a passar mal às seis horas da... Eu pensei em trocar [de mulher] naquela hora. Eu falei: "essa mulher tá dando trabalho". Brincadeira à parte, ela começou a passar mal às seis horas da tarde, no Equador, num local desconhecido. E começou mal mesmo: vômito, diarreia, vômito. [...] E aí eu, por ser general, me acionaram pra eu ir pro Hospital das Forças Armadas [...].
Ramos conta que o governo "socialista" de Rafael Correa (presidente do Equador até 2017) destruiu os hospitais públicos equatorianos. Ele, que como Paulo Guedes também estudou a vida toda na escola pública, concorda com a tese da superioridade incondicional do privado sobre o público. Tem orgulho em dizer que é da época em que "pra entrar no [ensino] fundamental você tinha que prestar concurso, né? Porque era muito concorrido".
Na certa não lhe ocorreu que a universalização da educação básica pública impõe a necessidade de investimentos proporcionais para que possa alcançar a qualidade do sistema elitista que o formou - mas não se pode esperar muito de quem toma vacina escondido do chefe, puxa o saco de um viajão como Paulo Guedes e agradece a Marcelo Queiroga pela oportunidade "de poder participar de uma reunião desse nível". Fascinado pelo elogio, o ministro da Saúde arrisca-se a comparar os setores público e privado, agora no campo da pesquisa científica:
Marcelo Queiroga: [...] E aqui, ratificando tudo isto que o ministro Ramos e o ministro Paulo Guedes disseram, há ilhas de excelência no setor público. É o setor público que forma os profissionais mais qualificados para o sistema de saúde. É o setor público que lidera as pesquisas. Nos Estados Unidos, o NIH [National Institutes of Health] ele investe cerca de... quase um PIB brasileiro em pesquisa, né? Mas as pesquisas dos Estados Unidos são patrocinadas pela iniciativa privada. Aqui no Brasil só se quer que o setor público patrocine pesquisa. E depois ficam reclamando do setor público, e esses pesquisadores criticando o governo quando eles são fortemente estimulados a fazer pesquisa com recurso público.
Queiroga demonstra não ter ideia da composição do financiamento à pesquisa em outros países. Nos Estados Unidos, 60% dos recursos que financiam a pesquisa científica provêm de fontes federais e estaduais. Na Europa, a participação do setor público chega a 77%. No mais, não deixa de ser engraçado que um homem com tal nível de pusilanimidade sinta-se tão à vontade para repreender pesquisadores que criticam o governo Bolsonaro.
Por trás do palavreado afetado, Queiroga é só mais um bolsonarista que confunde o Estado, que efetivamente financia a pesquisa científica, com as figuras lamentáveis que o administram em caráter temporário. Ao insistir na necessidade de obter os dados dos hospitais privados, o ministro da Saúde consegue, por fim, dizer aquilo que pensa:
Marcelo Queiroga: [...] Mas eu preciso saber, até porque o presidente Jair Bolsonaro tem difundido o que está no Evangelho de João, né? 08:32: "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". E eu sempre rebato isso. Então nós precisamos saber se esses resultados dos hospitais privados são tão bons assim, né? Talvez, quando esses dados vierem à luz, a gente veja que não é tão assim, né? Porque pra mim, que sou médico há 33 anos, eu entendo que a saúde suplementar padece das mesmas vicissitudes que o setor público. [...] essa reunião é pra fortalecer a saúde suplementar. É pra fazer com que os agentes regulatórios, que são os diretores da ANS, eles sejam bons juízes. [...] E os atores, que são os empresários, que são os beneficiários... a sociedade de uma maneira geral, ela possa usufruir dos benefícios, do estímulo do Estado a essa atividade.
Queiroga parece bem menos otimista com o setor privado do que Ramos e Guedes. Contudo, ao exaltar a importância de o país ter um sistema regulatório forte para o setor da saúde suplementar, ele emula a infame citação de Jair Bolsonaro ao Evangelho de João. Antes da saudação final, o ministro da Saúde passa a palavra ao colega Anderson Torres, que faz observações pontuais ao texto da minuta, elogia o governo e aplaude os benefícios da privatização do sistema penitenciário. Queiroga retoma para as mesuras finais e faz a grande revelação:
Marcelo Queiroga: [...] eu submeto à apreciação dos senhores ministros, para que deliberem em aprovar ou não o que vai ser colocado em consulta pública. Eu só destaco que essa reunião tá sendo transmitida, que as contribuições nas consultas públicas sejam contribuições genuínas. Não fiquem orquestrando contribuições. E nós sabemos exatamente... todas as forças de interesses que há aqui no setor. Queremos contribuições para aprimorar essa política, né? Pra que isso se reverta em benefícios para os beneficiários da saúde suplementar, porque são aqueles que contribuem, e às vezes contribuem com muito sacrifício pra ter um plano de saúde, né? [...]. E o objetivo do Consu, como eu já disse, é fortalecer a saúde suplementar. E como ministro da Saúde, eu tenho a competência legal de indicar, para a escolha do senhor presidente da República e posterior encaminhamento ao Senado Federal, o nome dos dirigentes da ANS. E aqui [...] eu já assumo o compromisso de que os nomes que serão enviados para a ANS serão nomes técnicos. Pessoas que conhecem o setor da saúde suplementar, que conhecem a regulação da saúde suplementar, pra que seja assegurado aos brasileiros que o setor continuará trilhando um caminho de sucesso. (grifo nosso)
Os dois itens da pauta são aprovados pelos votantes e a reunião é encerrada. Tudo indica que Rogério Scarabel, a pessoa mais competente a abrir a boca durante aquela reunião, não será efetivado como diretor-presidente da ANS.
O papel de Queiroga
À medida que a íntegra do áudio da reunião começou a circular (a gravação foi feita pela rádio CBN), as matérias de imprensa avançaram do comentário de Guedes sobre a vacina chinesa para a covardia do ministro Ramos e, depois, para os comentários depreciativos do Posto Ipiranga ao filho do porteiro e à universidade pública. Pararam por aí. Os artigos de opinião foram, como sempre, mais duros do que os noticiosos com o grande inventor do MBA no Brasil. No Twitter, houve quem conjecturasse que o vazamento do vídeo teria sido uma estratégia do governo para mobilizar as hostes bolsonaristas, que se extasiavam com o comentário de Guedes sobre a China.
A assunção de que os bolsonaristas do governo operam com tal nível de sofisticação, contudo, é tão inverossímil quanto as teorias da conspiração do próprio bolsonarismo. O áudio da reunião deixa claro que Paulo Guedes, Luiz Eduardo Ramos e o subprocurador Luiz Augusto dos Santos foram pegos de surpresa - a ponto de Guedes, antes mesmo de a reunião terminar, ter ensaiado um pedido de desculpas ao ensino público brasileiro e aos "piratas privados" que tivessem se sentido ofendidos com a alcunha.
Quem orientou a equipe para o registro e a transmissão da reunião (para "atender os requisitos de publicidade") foi Marcelo Queiroga, aquele que tanto se esforçou para cair nas graças de Paulo Guedes, mas saiu da reunião condenado à eterna danação. A menos que Queiroga tenha planejado tudo aquilo e seja um excelente ator, o recém-chegado ministro da Saúde parecia realmente acreditar que "transparência pública" e "governo Bolsonaro" cabem em uma mesma frase.
Ao longo da reunião, o ministro da Saúde manifestou apreço pelos mecanismos de consulta pública, mostrou-se atento à legislação e aos regulamentos e reforçou a demanda pública pelos dados de mortalidade nos hospitais privados. Além disso, comportou-se como um verdadeiro defensor do serviço público e das funções estatais de regulação do setor privado. Não fosse Queiroga um bolsonarista inveterado e servil - capaz de ratificar todo absurdo daqueles que deseja cortejar - chegaríamos à conclusão de que está no governo errado.
Outra interpretação para o papel de Marcelo Queiroga no episódio do vazamento é que ele seja, simplesmente, burro. Em seu depoimento na CPI da pandemia, o ministro da Saúde esquivou-se repetidas vezes de responder se compartilha da opinião de seu venerado chefe sobre o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes para o tratamento da covid-19. Ao mesmo tempo, foi ele quem decidiu transmitir a reunião do Consu e, com isso, colaborou para o processo de produção de provas contra o governo Bolsonaro no contexto da CPI.
Alguns dias depois da reunião, Queiroga foi flagrado pela Folha circulando sem máscara pelo saguão do Aeroporto de Guarulhos. Para fazer justiça ao ministro, ele parecia realmente estar, como alegou, com a máscara na mão, ajustando o elástico. Irritado com a exposição, o ministro da Saúde reagiu contra o jornal em uma reunião com empresários da saúde: "Seria bom que vocês da iniciativa privada e que fazem publicidade nesse tipo de comunicação [a Folha] repensassem essas estratégias". Seja por covardia, seja por burrice, Marcelo Queiroga está definitivamente no governo certo.
Em julho do ano passado, publicamos nesta mesma coluna uma análise da reunião de 22 de abril de 2020 baseada em métodos de estatística textual. Os resultados nos levaram a concluir que é Paulo Guedes quem fala verdadeiramente a língua do governo Bolsonaro: agrada o presidente, acena aos militares e aos defensores da moral e sufoca qualquer tentativa de fortalecimento do setor público. A reunião do Consu nos dá uma oportunidade de mapear os discursos de Paulo Guedes dentro de um novo contexto. Para quem ainda tem dúvidas, vamos desenhar de novo.
Desenhando mais uma vez
A partir da transcrição integral do áudio da reunião, construímos um corpus textual empregando os mesmos procedimentos adotados em nosso artigo anterior (detalhes sobre a metodologia podem ser encontrados aqui).
Além da lexicometria (contagem das palavras), produzimos uma análise geral do conteúdo das falas circulantes na reunião utilizando a Classificação Hierárquica Descendente (CHD) com auxílio do Iramuteq, software de código aberto para análises textuais.
O método CHD classifica segmentos de texto em função de seus respectivos vocabulários, permitindo, com isso, que possamos distinguir as especificidades dos mundos lexicais acessados pelos enunciadores do discurso; os temas em comum levantados pelos participantes da reunião.
Aplicada sobre o corpus textual, a CHD retornou três classes de conteúdos (aproveitamento textual de 80,37%), às quais atribuímos, a partir do conteúdo classificado, as ideias e temas centrais tratados na reunião de 27 de abril.
O dendrograma (diagrama de árvore) a seguir apresenta as palavras mais fortemente associadas a cada classe e a associação entre as classes (representada pelos conectivos). Aqui (e nos demais diagramas), o tamanho das palavras não é proporcional ao número de vezes em que elas aparecem no corpus, mas ao seu grau de associação à classe correspondente (o ?2). Portanto, esses gráficos não podem ser lidos da mesma forma das hoje populares "nuvens de palavras".
As experiências de Paulo Guedes e a oposição entre os setores público e privado (feita, quase sempre, pelo próprio Guedes) são os principais temas associados à classe 1 (em vermelho), que compreende 41,4% do total de segmentos de texto classificados pelo Iramuteq.
A palavra mais fortemente associada a essa classe é o adjetivo "privado". Já a classe 2 (em verde) se refere aos itens da pauta da reunião do Consu apresentados por Daniel Pereira, e reúne 33,0% dos segmentos de texto classificados. A palavra mais fortemente associada à classe 2 é o substantivo "ministro", forma pela qual o assessor especial se dirigia frequentemente a Guedes e a Queiroga (outro substantivo fortemente associado a esta classe é "senhor").
Por fim, a classe 3 (em azul) está associada às políticas de saúde suplementar e ao papel regulador do Estado, temas majoritariamente presentes nas intervenções de Marcelo Queiroga e Rogério Scarabel. A classe 3 compreende 25,6% dos segmentos de texto classificados, e a ela estão fortemente associadas a locução "saúde_suplementar" e o par de substantivos "operador"/"beneficiário".
Como discutimos no artigo anterior, a associação de uma palavra a determinada classe não é exclusiva. Da mesma forma, os segmentos de texto associados às falas dos participantes da reunião não estão necessariamente associados a apenas uma classe. A transcrição da fala final de Marcelo Queiroga, por exemplo, foi dividida em 11 segmentos de texto, reconhecidos pelo Iramuteq como pertencentes às três classes.
Notem que comentários de teor burocrático ou especificamente relacionados à pauta da reunião aparecem em verde (associados à classe 2), enquanto comentários relacionados à ANS e à regulação do setor da saúde suplementar aparecem em azul (associados à classe 3). Por fim, o trecho em que Queiroga menciona o "investimento no setor pela iniciativa privada", que aparece em vermelho, foi classificado na classe 1. O conteúdo das falas de Queiroga, Pereira e Scarabel foi principalmente associado pelo Iramuteq às classes 2 e 3 - daí a maior proximidade vocabular entre essas classes no dendrograma. Já as falas de Paulo Guedes foram quase todas associadas à classe 1, que aparece isolada das demais.
O Diagrama A mostra que as classes 2 e 3 (assuntos atinentes às políticas de saúde suplementar e à pauta da reunião) possuem vocabulários mais próximos entre si e mais afastados em relação ao da classe 1 ("causos" e experiências pessoais; público versus privado).
Já o Diagrama B, que mostra as "posições" dos participantes em relação às três classes levantadas na análise da reunião, é um tanto diferente daquele que obtivemos para a reunião ministerial de 22 de abril de 2020.
Lá, Guedes vocalizava o consenso entre reacionários, demagogos ligados ao Centrão e o enfurecido Jair Bolsonaro. Aqui, ele cumpre o papel que antes cabia a Jair Bolsonaro. De fato, o Diagrama C, que reúne as palavras de classes gramaticais não incluídas no Diagrama A, indica que a palavra mais fortemente associada à classe 1 - à qual também se associa o participante "ID_GUEDES" (Diagrama B) - é o pronome pessoal "eu".
Ainda que não fosse presidente do Consu (Queiroga), anfitrião dos presentes no Palácio do Planalto (Ramos) ou estivesse envolvido na apresentação dos itens da pauta (Pereira), Paulo Guedes fez em 27 de abril aquilo que sempre faz: dominou a reunião e tornou-se destinatário de todas as justificativas e de todas as reverências. Na reunião do Consu, o ministro-chefe da Casa Civil calou diante de Guedes. Na reunião ministerial de 2020, foi Jair Bolsonaro quem calou todos os presentes para dizer: "com todo respeito aos demais, acho que [Guedes] é o ministro mais importante nessa missão aí".
Com o baldinho na mão
Quando se divulgou o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril 2020, todas as atenções da imprensa se voltaram a Jair Bolsonaro e à chamada "ala ideológica" do governo. E também a Sergio Moro, que rompia com Bolsonaro e tentava sair de cena fazendo o papel de ofendidinho.
Como sempre, ninguém prestou muita atenção naquele que de fato liderou a reunião. As citações de Guedes ao ministro da economia da Alemanha nazista e à "reconstrução da economia do Chile [de Pinochet] com os caras de Chicago", por exemplo, passaram batidas das grandes coberturas. A nostálgica alusão do Posto Ipiranga aos tempos da Educação Moral e Cívica e da OSPB [Organização Social e Política Brasileira] nas escolas brasileiras foi tratada como nota de rodapé.
O contexto da reunião do Consu é outro. Em fins de maio do ano passado, o Brasil tinha acumulado cerca de 500 mil casos e 29,3 mil óbitos pela covid-19. Onze meses depois, são 15,2 milhões de casos e 422 mil óbitos no país. Dezenas de milhões de pessoas se encontram em situação de insegurança alimentar ou estão, literalmente, passando fome.
A renda das famílias evaporou; dívidas se acumularam. O desespero da população aumenta, enquanto a vacinação avança a passo de lesma. Embora tantos ainda achem demasiado forte atribuir a Paulo Guedes a pecha de genocida, ele e sua equipe idealizam e executam o projeto do bolsonarismo com a mesma diligência do perpetrador maior. Guedes chafurda no projeto da morte desde que Jair Bolsonaro subiu a rampa do Palácio do Planalto pela primeira vez.
As opiniões de Paulo Guedes sobre a China causaram espécie nos comentaristas políticos da imprensa. O Brasil não possui plantas para a produção do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) para nenhuma das duas vacinas contra a covid-19 distribuídas hoje no país: CoronaVac e AstraZeneca.
O envase de ambas, feito no Instituto Butantan e na Fiocruz, respectivamente, depende das entregas periódicas de IFA provenientes da China. O choque foi imenso: como uma fala daquelas, digna de indivíduos como Ernesto Araújo e Jair Bolsonaro, poderia sair da boca dele, o pilar de racionalidade do governo? Será que Paulo Guedes não teria percebido que poderia prejudicar o já tão prejudicado ritmo da vacinação no país?
No vespertino Estúdio i, do canal pago GloboNews (27 abr. 2021), o comentarista Valdo Cruz classificou a performance de Paulo Guedes como "trapalhada": "a gente não precisava dessa"; "comentários infelizes"; "de quem você imaginava que deveria ter um bom relacionamento com a China"; "negativo, para um país que coleciona problemas diplomáticos com os chineses"; "brinca muito com o perigo". Já Marcelo Lins falou em "declarações desastradas" e "alfinetada", ao passo que Flávia Oliveira declarou não estar surpresa com a fala do ministro que, afinal, faz parte do governo Bolsonaro.
No dia seguinte, no mesmo Estúdio i, o assunto veio novamente à baila, diante da ampla repercussão das falas de Guedes na mídia impressa do dia 28. A comentarista de política Natuza Nery foi categórica:
É de uma irresponsabilidade sem tamanho. Irresponsabilidade e desinformação [...]. E ele [Guedes] fala do alto de uma posição, como quem dá aula, com uma informação errada. Nem bem informado o ministro da Economia é... foi... neste particular. Então, assim, é um desastre absoluto, de onde muitos imaginavam lá atrás que seria uma fonte de razoabilidade. E acabou que [Guedes] mostrou um pensamento, com o perdão da palavra, tosco". (Natuza Nery, Estúdio i, 28 abr. 2021, grifos nossos)
A jornalista lembrou de uma conversa "de muito tempo atrás" que tivera com o deputado Rodrigo Maia quando este ainda era presidente da Câmara dos Deputados, e que lhe disse que Paulo Guedes e Jair Bolsonaro "têm almas muito parecidas".
Segundo Natuza Nery, Maia lhe disse que Paulo Guedes é o Jair Bolsonaro que foi para Chicago estudar economia: "E naquele momento aquilo me estranhou... nossa, eles não se parecem...". A reunião de 27 de abril lhe provocou a epifania: "me veio na cabeça agora"; "Acho que o Rodrigo Maia tinha razão: o presidente Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes são irmãos gêmeos na forma com a qual eles pensam o mundo".
Octavio Guedes, que também participava do programa, lembrou-se de uma conversa antiga com o mesmo Rodrigo Maia e da resposta do ex-presidente da Câmara à sua pergunta: "quem é o ministro mais 'ideológico' de Bolsonaro?". Maia teria respondido sem titubear: "Paulo Guedes". Guedes, o jornalista, concluiu que Maia tinha "uma certa razão". Seu momento de iluminação ocorreu um pouco mais cedo que o de Natuza Nery. Foi no matinal GloboNews Em Ponto:
O Paulo Guedes (...) foi o alicerce do governo de extrema-direita no país. O Paulo Guedes tem como referência a ditadura de extrema-direita do Pinochet. O Paulo Guedes, nos Estados Unidos, disse que a "revolução" que tinha sido a eleição do Bolsonaro se devia ao Olavo de Carvalho. O Paulo Guedes se mantém no governo de extrema-direita, apesar de todas as humilhações públicas que sofre. (...) Na minha análise, é incompatível ele dizer que é liberal. O Paulo Guedes é um ministro de extrema-direita de um governo de extrema-direita. Essa fala dele, dentro desse contexto, na minha análise, não me surpreende. (Octavio Guedes, GloboNews Em Ponto, 28 abr. 2021)
Octavio Guedes erra enormemente em afirmar que o ministro da Economia se mantém no governo suportando as humilhações de Bolsonaro. Se existe alguém que jamais foi humilhado por Bolsonaro neste governo, este alguém é Paulo Guedes - único membro do governo com permissão presidencial para humilhar e espezinhar quem bem entender. Após o comentário do jornalista Guedes, a apresentadora Julia Duailibi, comentarista de política e economia, arrematou:
Eu concordo com você, Octavio... O ministro Paulo Guedes tem uma visão, no geral, muito alinhada ao bolsonarismo. As pessoas talvez não saibam disso, porque se focam muito na questão econômica - e aí há divergências mesmo com o presidente -, mas, no que diz respeito à visão de mundo, ao entendimento, questões sobre costumes, ele é muito alinhado, muito alinhado mesmo. Não à toa que ele se aliou a esse projeto. (Julia Duailibi, GloboNews Em Ponto, 28 abr. 2021).
Horas depois, no Estúdio i, estimulado pela lembrança da antiga conversa de Natuza Nery com Rodrigo Maia (que ele, Octavio Guedes, também tivera), o comentarista chegou a uma conclusão definitiva sobre o caráter do Posto Ipiranga: "um homem com ideias de extrema-direita usando uma capa de liberal".
Natuza Nery, Octavio Guedes e Julia Duailibi declaram não se surpreender com Paulo Guedes: "As pessoas talvez não saibam disso, porque se focam muito na questão econômica" (Duailibi); "muitos imaginavam lá atrás que [Guedes] seria uma fonte de razoabilidade" (Nery); "Essa fala dele, dentro desse contexto, na minha análise, não me surpreende" (Octavio Guedes)".
Os três não se sentem parte no grupo dos "muitos" que imaginavam (ou imaginam) Paulo Guedes como um oásis de inteligência e competência técnica no governo Bolsonaro. Após quase dois anos e meio de governo Bolsonaro, eles "descobriram" que Paulo é - ora, vejam! - parecido com Jair. Na última semana de abril, até a palavra "necropolítica" chegou a ser usada pelos comentaristas da GloboNews.
Mas como o diabo mora nos detalhes, dos comentários de Natuza Nery e Octavio Guedes também escapam alguns senões e alguns poréns. Octavio Guedes inclui diversas vezes em seus comentários a expressão "na minha análise", deixando claro que as opiniões efusivas sobre a grande competência de Paulo Guedes ainda são bem toleradas por ali.
Já Natuza Nery, pondera que "Nem bem informado o ministro da Economia é... foi... neste particular". Na reunião do Consu de 27 de abril de 2021, contudo, não houve "particular" em que Paulo Guedes tenha se mostrado bem informado. Bastaria ouvir o áudio da reunião.
Aliás, seria mesmo o caso de nos perguntarmos quais são as situações em que Guedes realmente demonstra alguma competência como ministro, e não quando pastoreava o gado do "outro lado da cerca". Vejamos os indicadores econômicos do país, a pobreza generalizada da população, os níveis de desemprego e o mal ajambrado orçamento de 2021.
Além de brucutu, acontece que o PhD em Chicago que inventou o MBA e inventa realidades inexistentes todos os dias é incompetente. A vantagem de Paulo Guedes em relação aos demais - e isso ele aprendeu do lado de lá - é a capacidade de ser cínico e de bancar o gênio em meio à nata da mediocridade.
Bem antes de Octavio Guedes e Natuza Nery descobrirem que Rodrigo Maia estava certo, Jair Bolsonaro já tinha afirmado publicamente que considera Paulo Guedes "um irmão". Não é por acaso que Paulo e Jair se tratam pelo primeiro nome, relação que o presidente não nutre com os demais ministros.
A demissão de Paulo Guedes no altar sacrificial do Centrão é semanalmente vaticinada nas análises políticas. Contudo, já se passaram quase dois anos e meio e nada aconteceu. Com todo respeito aos analistas, Jair Bolsonaro só se livrará de Paulo Guedes na situação-limite de ter que escolher entre o emprego do irmão e o próprio mandato. Eles são gêmeos siameses; unidos pelo quadril.
Durante o evento de lançamento de uma linha de crédito da Caixa Econômica Federal com taxa de juros fixa, Paulo Guedes contou que "a mãe do meu pai [sua avó] foi uma empregada doméstica" (20 fev. 2020). Era um pedido de desculpas pela declaração do ministro de dias antes: no tempo do dólar a R$ 1,80 era "todo mundo indo pra Disneylândia, empregada doméstica indo pra Disneylândia, uma festa danada".
A empregada doméstica de fevereiro de 2020 é o filho do porteiro de abril de 2021. Em 2020, não faltou gente com o paninho na não para chamar de "gafe" o comentário sobre as empregadas domésticas. Agora, os passadores de pano foram mais comedidos, mas o comedimento durou pouco.
Nos primeiros dias de maio, em entrevista exclusiva ao jornal O Globo (02 mai. 2021), Paulo Guedes foi mais uma vez reabilitado. O jornal lhe ofereceu espaço para proferir generalidades sobre a agenda econômica, o orçamento, a autonomia do Banco Central e o Censo do IBGE. Sobre o "ruído" da declaração de 27 de abril - o grande momento polêmico da entrevista - o superministro respondeu:
Paulo Guedes: [...] Eu considero aquele comentário meu dentro de um contexto. Eu quis dar o exemplo de que, quando a economia de mercado é forte e robusta, ela consegue se adaptar em pouco menos de um ano e criar uma vacina ainda mais eficiente do que as vacinas produzidas na própria região que está muito mais habituada a esse tipo de doença. Aí desvirtuam tudo. Eu, aliás, tomei a CoronaVac.
[...]
Estamos em meio à pandemia. Isso [a CPI] é equivalente a fazer um tribunal de guerra durante a guerra contra o vírus. Para mim, é inédito. Você acha que a classe política vai sair bem disso? Foi o que eu sempre falei: subir em cadáveres para fazer política numa hora dessas... Acho que a população brasileira não vai apreciar isso. Ela quer resolver o problema. Ela quer a preservação da vida e dos empregos.
Quem lê essas declarações tem a impressão de estar diante de uma pessoa diferente daquela que, na semana anterior, eviscerou ódio de classe e abominação pelo SUS. Mas a mansidão de Paulo Guedes na entrevista ao jornal O Globo não dura muito. Quase ao final, quando lhe perguntaram qual o seu plano para lidar com o desemprego e o aumento da pobreza no Brasil, o ministro respondeu:
Paulo Guedes: A primeira coisa é a vacinação em massa. A segunda medida estamos chamando de Bônus de Inclusão Produtiva (BIP). Da mesma forma que se dá R$ 200 para uma pessoa que está inabilitada de receber o Bolsa Família, por que não poderia dar R$ 200 ou R$ 300 para um jovem nem-nem? Ele nem é estudante nem tem emprego. Ou seja, é um dos invisíveis.
Agora, esse jovem vai ter que bater ponto e vai ser treinado para o mercado de trabalho. Ele vai ser servente de pedreiro, mecânico... É uma oportunidade. Ele é a vítima da nossa legislação trabalhista. Quando você bota lá o salário mínimo, um rapaz filho de uma classe média, que estudou em uma boa universidade, fala duas línguas, ele consegue emprego com salário mínimo.
O Globo: Qual seria a contrapartida da empresa?
Paulo Guedes: Zero. Ajuda o Brasil, treina o menino. Estamos estudando. Isso deve vir rápido para esse segmento dos invisíveis. [...]
Guedes vê como "uma oportunidade" que "um dos invisíveis" - "o pobre" - possa ganhar 200 ou 300 reais de uma empresa para "bater ponto". Zero contrapartida para as empresas. Mão-de-obra abundante e barata. Salário-mínimo, pontua o ministro, é para rapazes da classe média, que estudaram em boas universidade e falam duas línguas.
Coincidência ou não, uma variação do referido "Bônus de Inclusão Produtiva" foi proposta por Guedes na reunião ministerial de 22 de abril de 2020 que analisamos em nosso artigo anterior. Naquela versão da proposta, os "200, 300 reais" não viriam pelo trabalho de jovens pobres em empresas, mas em campos de trabalho militar. Na visão do grande estrategista, a mobilização de grandes contingentes de mão de obra semiescrava poderia resolver o problema da falta de obras de infraestrutura no país a um custo baixo para o governo:
Paulo Guedes: Por exemplo: eu já tenho conversado com o ministro da Defesa, já conversamos algumas vezes. Quantos? Quantos? 200 mil, 300 mil. Quantos jovens aprendizes nós podemos absorver nos quartéis brasileiros? Um milhão? Um milhão a 200 reais, que é o Bolsa Família, 300 reais, pro cara de manhã faz calistenia [...]. Aprende [...] OSPB... Faz ginástica, canta o hino, bate continência. De tarde, aprende a ser um cidadão, pô! [...] Disciplina, usar o tempo construtivamente, pô! É voluntário pra fazer estrada, pra fazer isso, fazer aquilo. (Reunião ministerial de 22 de abril de 2020, laudo INC/DITEC/PF n. 1.242/2020, p. 64-66)
Reacionário, truculento, delirante, torpe, criminoso, fascista, genocida... todo vitupério a Bolsonaro e a seus "ideológicos" ministros. Já para o Posto Ipiranga, muita condescendência. Baldes e panos limpos para remover o muco e recolher os bofes de seus diuturnos espasmos de sinceridade.
O que Paulo Guedes precisará fazer para ser tratado da mesma forma que o seu irmão Jair Bolsonaro? Vomitar literalmente na cara das pessoas? Os jorros fétidos que o ministro lança todos os dias - em público e em privado - são incontroláveis. Mas há sempre um passador de pano à espreita com o baldinho na mão.
* Fernando Cássio e Marco Antonio Bueno Filho são doutores em Ciências e professores da UFABC.
* Nota: no dia da publicação deste texto (11 de maio de 2021), uma nota de Veja informa que o Facebook enviou à CPI da Pandemia o vídeo apagado da reunião do dia 27 de abril com as "gafes" de Paulo Guedes e Luiz Eduardo Ramos.
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