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Entendendo Bolsonaro

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Contra Bolsonaro, ruas gritam por vacina e auxílio

21.fev.2021 -  Protesto contra o governo Bolsonaro em Brasília pede o impeachment do presidente - REUTERS/Ueslei Marcelino
21.fev.2021 - Protesto contra o governo Bolsonaro em Brasília pede o impeachment do presidente Imagem: REUTERS/Ueslei Marcelino

Colunista do UOL

03/06/2021 00h47

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* José Antonio Moroni e Ana Claudia Teixeira

Mais de 200 cidades brasileiras em todas as regiões chamaram atos contra o governo Bolsonaro no último sábado (29). A estimativa é de que mais de 450 mil pessoas foram às ruas. Nas redes sociais, as hashtags #29MForaBolsonaro e #29MPovoNasRuas foram as mais comentadas. É incalculável o número de pessoas que se manifestaram por meio de carreatas ou com panos pretos nas suas janelas, demonstrando o crescente descontentamento com o governo federal.

Os atos foram convocados por uma articulação mais ampla denominada "Campanha Fora Bolsonaro". Para um observador atento, é possível perceber que houve uma mudança significativa na forma de convocar as manifestações. Desta vez uma teia ampla de organizações de vários formatos convocou os atos.

Tradicionalmente as manifestações têm sido articuladas por grandes organizações com representatividade e legitimidade na sociedade. Mas essa estratégia não vinha funcionando muito bem, dada a crescente pluralidade da sociedade em suas formas de organização. O que mobiliza é sentir-se (e efetivamente ser parte) do processo de mobilização.

Houve acordo sobre a data e as estratégias. Esta unidade foi construída principalmente na Plenária da Campanha Fora Bolsonaro que organiza as lutas populares.

Neste espaço, faz quase um ano que se tem chegado a três agendas que seriam capazes de dar unidade às lutas populares: a defesa da vacina para todos pelo SUS, a defesa do auxílio emergencial de seiscentos reais até o fim da pandemia e o Fora Bolsonaro. A síntese política desta unidade foi expressa nos slogans "Vacina no braço, comida no prato" e "Fora Bolsonaro". A última plenária, realizada no início de maio, reuniu mais de 600 organizações de todo o Brasil com perfis bem diversos.

Neste formato de articulação, couberam diversas formas de organização, desde partidos, passando pelas Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, movimentos de massas, coalizões, plataformas, centrais e coletivos. O fato de não ter um comando central nacional possibilitou que organizações com atuação territorial participassem da construção dos atos inclusive com as suas próprias agendas. Se, para alguns, este formato pode parecer fragmentado, é ele que tem possibilitado a construção de unidade na luta social e política.

As manifestações se cercaram de muitas incertezas. Não foi consensual chamar protestos presenciais, em meio à defesa do isolamento social como estratégia de enfrentamento à pandemia. Este debate gerou uma síntese política que podemos resumir na frase "Se o povo protesta em meio a uma pandemia é porque o governo é mais perigoso que o vírus". A mesma síntese construída nas manifestações da Colômbia, nos meses de abril e maio desse ano.

Este número de participantes nas ruas está longe ainda da quantidade de participantes nas últimas manifestações críticas ao governo Bolsonaro em tempos de pré-pandemia. O que ficou conhecido como "tsunami" da educação em maio de 2019 mobilizou cerca de 1,5 milhão de pessoas pelo Brasil a cada ato organizado.

Mas os protestos de sábado foram maiores que as manifestações de junho de 2020, quando parte da sociedade foi às ruas na esteira dos protestos globais antirracistas, naquele momento com participação mais significativa dos movimentos negros brasileiros, e infelizmente baixa adesão de outros setores da sociedade. No último sábado certamente foram as maiores manifestações contra Bolsonaro em tempos de pandemia. Superaram em muito os eventos de apoio a Bolsonaro no dia 1º de maio de 2021.

Quem não compareceu por motivos sanitários no dia 29 de maio, mas apoiava o ato, contribuiu para a mobilização nas mídias. Segundo Fabio Malini, pesquisador especializado em mídias digitais, só no Twitter foram mais de 200 mil participantes, 1,8 milhão de postagens e 840 mil retweets, sem contar as manifestações no Instagram e no Facebook. Ainda segundo Malini, no Instagram, o impacto foi ainda mais forte, com 40 milhões de interações em 11 mil postagens, demonstrando ser essa a atual rede social dos protestos brasileiros.

Além da participação das organizações que compõem a plenária das lutas populares, era visível a presença de várias e diversas organizações locais, que se identificaram no processo de construção do ato. A expressão disso eram grupos pequenos com seus cartazes e faixas que sintetizavam o porquê do fora Bolsonaro.

A participação ultrapassou quem chamou esses protestos. Houve a presença dos enlutados com suas faixas escritas à mão, pedindo vacinas e procurando honrar a memória dos seus pais, mães, irmãos ou amigos mortos pela covid-19. A ausência de processos coletivos de escuta e de apoio a este momento de luto coletivo que vivemos fez com que a rua se transformasse em momento de catarse.

Em geral, os atos transcorreram sem conflitos, com exceção do Recife, onde a polícia resolveu dispersar a multidão com balas de borracha e gás lacrimogêneo. Na sequência, a vice-governadora disse que não havia autorizado a ação policial. Aliás, esse não é um caso isolado de insubordinação da polícia em relação aos seus governadores.

Chamou a atenção a baixa cobertura da imprensa. Talvez tenha sido um erro de cálculo. Pelo que se sabe boa parte dos veículos de comunicação sequer enviaram jornalistas para cobrir as manifestações. Por causa da pandemia, podem ter calculado que elas seriam muito esvaziadas. Parece que ao menos o Jornal Nacional percebeu o erro e na edição da última segunda (31) fez uma reportagem sobre as manifestações de sábado.

O mais provável, entretanto, é que houve intencionalidade na "não cobertura". O motivo não seria defender Bolsonaro. Está muito evidente como vários setores da imprensa têm se colocado criticamente a ele e ao seu governo.

Diferente de algumas análises, talvez o receio destes setores não seja exatamente o fortalecimento de uma "candidatura Lula", mas algo mais profundo, um receio bem mais aterrorizante para nossas elites: de que, com ou sem Lula, floresça no país uma esquerda mais radical como alternativa ao bolsonarismo.

Em outras palavras: o medo de que nos tornemos um Chile ou uma Colômbia, fartos das elites no poder e com ânsia de transformações mais profundas. O que as nossas elites temem não é uma ou outra candidatura. O que elas temem é a presença do povo nas ruas querendo transformações. É o pânico de que haja uma revolta popular.

O que mais se ouviu nas ruas foi um sonoro "Fora Bolsonaro". Elas sopraram um ar renovado numa CPI atravancada em torno do Congresso Nacional e de um TSE paralisado, que não julga o pedido de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.

Com as denúncias diárias televisionadas e transmitidas desde que a CPI da Covid começou, é impossível não colher elementos de que Bolsonaro foi omisso e diretamente responsável pela falta de vacinas e por espalhar o vírus pelo país. As manifestações podem ser a água no moinho.

Se não alavancarem impeachment do presidente ao menos podem fazer cair ainda mais sua popularidade já declinante há meses. Ainda restam dúvidas se derrotar Bolsonaro equivale a derrotar o bolsonarismo. Só o tempo dirá, mas com certeza, no último fim de semana, mais algumas peças se mexeram no tabuleiro.

* José Antonio Moroni é filósofo, do colegiado de Gestão do Inesc

* Ana Claudia Teixeira é cientista política, co-coordenadora do Nepac-Unicamp