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Entendendo Bolsonaro

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Efeito político das motociatas vai muito além dos números

"Motociata" com a presença do presidente Jair Bolsonaro - Alan Santos/PR
"Motociata" com a presença do presidente Jair Bolsonaro Imagem: Alan Santos/PR

Colunista do UOL

17/06/2021 12h39

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* Igor Tadeu Camilo Rocha

Após mais uma "motociata" de Jair Bolsonaro, circularam notícias falsas sobre a suposta presença de mais de um milhão de participantes. Opositores e críticos ao bolsonarismo também fazem circular montagens ou imagens fora de contexto, defendendo que o ato motorizado teria sido um fracasso de público.

Esses últimos também vêm espalhando outro tipo de leitura sobre a manifestação motorizada do último sábado (12) que, mesmo sem falsificações, me parece também estar muito distante da realidade. Me refiro, no caso, a outras formas de analisar essas manifestações se pautando mais no desejo de elas efetivamente serem algum tipo de fracasso do que propriamente na observação sobre seus significados ou sobre seu peso político.

Muitas dessas leituras dos críticos ao bolsonarismo são tentativas de se dizer que o passeio motorizado da extrema direita teve pouca adesão, do ponto de vista numérico. Talvez não tenhamos aprendido, oito anos após as manifestações de junho de 2013, que, embora o número de pessoas na rua esteja longe de ser um dado insignificante, o peso político delas nunca se reduz a aferições quantitativas.

Tão importante quanto ter 12 mil ou 1,3 milhão de pessoas em atos políticos são as narrativas construídas em torno delas, ou as formas como elas repercutem na disputa política. Além disso, manifestações políticas costumam nos dizer algo a respeito de quem as organiza, de suas articulações, sua autonomia e sua coordenação com outros movimentos políticos e setores da sociedade. Manifestações informam sobre as estruturas sociais as quais representam, sintetizam desejos, ideias, interesses em disputa.

Um bom exemplo de como as manifestações nos informam sobre os grupos sociais e sua relação com a política está na pesquisa feita pela antropóloga Isabela Kalil, no estudo intitulado "Quem são e no que acreditam os eleitores de Jair Bolsonaro", publicado em 2018. Nele, Kalil mapeia 16 perfis, de acordo com marcadores variados como classe, raça, engajamento ideológico, gênero e orientação sexual, dentre vários outros, de eleitores do atual presidente. Os dados foram obtidos em levantamentos feitos entre as manifestações pró-impeachment, em 2016, e as favoráveis a Bolsonaro, na eleição de 2018. Ali se viam vozes heterogêneas e demandas diversas acolhidas naquelas manifestações.

Muita dessa heterogeneidade se vê nas articulações de grupos bolsonaristas nas redes sociais. Pesquisa recente feita na Universidade Federal de Minas Gerais, por exemplo, mostra uma explosão de grupos e canais de conteúdo político no aplicativo Telegram. Dos grupos e canais analisados, cerca de 92%, cobrindo cerca de 1,4 milhão de pessoas/perfis, são declaradamente bolsonaristas.

Dessas redes de bolsonaristas, podemos destacar ainda a grande capilaridade, integração, cooperação e articulação de grupos, de médicos ou não, de defensores do dito "tratamento precoce" contra a covid-19, a nível nacional e internacional, como mostrado pelo jornalista Victor Silva. Eles, de maneira autônoma e coordenada - a autonomia e a coordenação se complementam, nessas redes - contribuem com a profusão e com a capilarização de discursos diversos alinhados à extrema direita, como a aversão à ciência e autoridades científicas e médicas tradicionais, além de hostilidade à imprensa e outros circuitos de informações que sejam externos aos seus ecossistemas.

Também já é bastante conhecida e perigosa a profusão do bolsonarismo nas baixas patentes militares, muitas vezes ligadas a motins, desobediência a governadores estaduais e atos diversos de abuso de autoridade, como a prisão arbitrária de um professor em Goiás por usar uma faixa escrita "Fora Bolsonaro".

Sem a pretensão de me alongar em alguns dos pontos mencionados acima, e reconhecendo que ainda há muitos outros, é importante aqui estabelecer uma conexão entre eles. Ainda que seja complexo conectar tantos pontos e tantas narrativas aparentemente distantes entre si - como grupos negacionistas, militares e tantos diversos perfis bolsonaristas - com a motociata, essa operação se faz necessária para se evitar que eventos como o passeio de motos sejam vistos de forma isolada. É ilusório considerar que tratou-se de apenas mais uma agitação fortuita ou provocação do presidente aos adversários e às nossas combalidas instituições democráticas.

Os atos motorizados são, ao mesmo tempo, movimentos de campanha eleitoral, além de um aceno aos núcleos mais ou menos fanatizados do bolsonarismo. São também demonstração de força, além de reação aos golpes desferidos pela CPI, às quedas de popularidade e às previsões de cenários para a eleição de 2022. Indicam, ainda, que derrotar o bolsonarismo nas urnas dará enorme trabalho. Além disso, há outro trabalho, hercúleo e que não terminará com as eleições de 2022 seja qual for o resultado, de enfrentar o bolsonarismo enquanto fenômeno político, juntamente com seus variados desdobramentos no conjunto da sociedade.

Nas motociatas do Rio de Janeiro e de São Paulo, realizadas em maio e junho, respectivamente, se misturaram várias tópicas presentes nas várias identidades políticas alinhadas ao bolsonarismo. Estavam nelas, lado a lado, protestos contra máscaras e contra vacinas, somados à defesa quase religiosa e conspiratória de medicamentos não eficazes contra a doença causada pelo vírus Sars-CoV-2, clamores pelo fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, dentre outros.

Esses eventos desvelam, ainda, o aparelhamento da Polícia Militar, visto desde a mobilização de um imenso aparato para acompanhar o ato até o discurso golpista do presidente direcionado a ela, sem contar a evidente disparidade no uso da força policial quando comparamos os atos pró e contra Bolsonaro.

Os atos motorizados, em conjunto e em rede com outros movimentos da extrema direita brasileira, nos oferecem um recorte importante para que possamos observar a profundidade do bolsonarismo no Brasil atual e sua força enquanto fenômeno político. As motociatas não deixam de ser uma amostra substantiva da complexidade e das interconexões de narrativas, crenças e ideologias acolhidas pelo bolsonarismo. Indicam ainda a sua profusão em setores importantes da sociedade, que de maneiras diversas se veem representados nas suas redes de sociabilidade e nas suas formas de organização.

Concluindo, cabe ressaltar que observar os atos dessa maneira não deve servir como convite a qualquer derrotismo. Pelo contrário, a questão mais importante, a meu ver, é compreender esse fenômeno para a partir daí se enfrentar a enorme apatia de amplos setores da população diante deste processo de fascistização da sociedade, que vem de bem antes da eleição de 2018 e sobreviverá ao resultado do pleito de 2022, seja ele favorável ou contrário às forças democráticas no Brasil.

* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais