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As mil e uma noites do bolsonarismo no Brasil

O empresário e presidente da varejista Havan, Luciano Hang, ao lado do presidente Jair Bolsonaro - Reprodução/Facebook
O empresário e presidente da varejista Havan, Luciano Hang, ao lado do presidente Jair Bolsonaro Imagem: Reprodução/Facebook

Colunista do UOL

26/09/2021 09h46

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* Cesar Calejon

Neste domingo (26), o trágico desgoverno de Jair Bolsonaro completa a sua milésima primeira noite frente à chefia do Poder Executivo no Brasil. Inevitáveis são as alusões ao clássico da literatura mundial com a dramática situação do país após quase trinta e três meses de vigência do bolsonarismo.

Originárias do Oriente Médio e do sul da Ásia, os contos das Mil e uma noites foram compilados em árabe a partir do século IX. Em seguida, no Ocidente, a obra ganhou notoriedade por meio da tradução para o francês, que foi realizada nos primeiros anos do século XVIII, por Antoine Galland.

No livro, o rei Xariar enlouquece por ter sido traído pela sua primeira esposa, que dormiu com os seus escravos enquanto ele viajava, porque não existiam bombeiros ainda naquela ocasião, e passa a demandar noivas diferentes todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte, para evitar futuras traições e ser capaz de lidar com a sua própria frustração.

Passam-se assim três anos durante os quais Xariar sacrifica milhares de inocentes na tentativa de fazer a manutenção dos seus poderes e da sua própria posição estatutária, consumido cegamente pelo seu ódio e obscuridade do seu ego.

Durante as mil e uma noites do bolsonarismo no Brasil, mais de 595 mil inocentes foram sacrificados pela interseção entre a covid-19 e a atual gestão federal brasileira, a economia nacional foi absolutamente devastada, com a volta da fome, da inflação galopante e da crise hídrica, e o país virou motivo de chacota junto à sociedade internacional. Formou-se a tempestade perfeita brasileira, conforme abordado em artigo prévio publicado nessa coluna.

Contudo, nesse caso, a analogia entre os contos emblemáticos e o bolsonarismo termina nesse ponto, porque, após esse período, Xariar encontra Sherazade, que desperta nele um lado humano e o faz se apaixonar novamente, poupando-a a vida e passando impune pelas atrocidades que havia previamente cometido.

Ao que os indícios apontam, esse não será o desfecho da história protagonizada por Bolsonaro, a sua família e o seu secto de lunáticos.

Após a farra que viveram ao longo dos últimos trinta anos parasitando o erário brasileiro, mas, sobretudo e de forma ainda mais enfática, considerando as vidas de inocentes que foram sacrificadas durante as mil e uma noites do bolsonarismo no governo federal, o cerco se fecha e as consequências dos atos se aproximam.

Somente nos últimos dias, Carlos Bolsonaro, que já não possui foro privilegiado, foi qualificado como "chefe de organização criminosa" por um juiz da 1ª Vara Criminal Especializada do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), que identificou "indícios rotundos de atividade criminosa em regime organizado" cometidos pelo filho do presidente, segundo as palavras do próprio magistrado.

Adiante, a Anistia Internacional listou trinta e duas violações de direitos humanos e retrocessos durante as mil e uma noites do governo Bolsonaro no Brasil, líderes mundiais avacalharam o presidente brasileiro de forma sem precedentes e o escândalo do caso Prevent Senior demonstrou a real profundidade da degradação moral do bolsonarismo e das figuras envolvidas com esse movimento.

Além disso, a CPI da Covid prepara o seu golpe final e uma denúncia que deverá ser apresentada junto a cortes internacionais para imputar Jair Bolsonaro e membros do seu gabinete com crimes contra a humanidade durante os anos pandêmicos.

Nesse contexto, a postura digamos que "menos ofensiva" do presidente nos últimos tempos não decorre de ter se encantado pelas histórias e eloquência da rainha Sherazade, mas porque, apesar de sua rotunda ignorância, até ele já foi capaz de perceber que o fim da sua história não será doce e romântico como os dos contos árabes, persas e indianos.

* Cesar Calejon é jornalista, com especialização em Relações Internacionais pela FGV e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela USP (EACH). É escritor, autor dos livros A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI (Kotter) e Tempestade Perfeita: o bolsonarismo e a sindemia covid-19 no Brasil (Contracorrente).