Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Ao apoiar ditaduras "do lado certo", esquerda fortalece Bolsonaro
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* Raphael Tsavkko Garcia
Cada vez mais, a denúncia do autoritarismo bolsonarista perde sentido e força. Não porque não seja um fator preocupante e uma ameaça à democracia brasileira, mas tão somente porque seu principal adversário, o ex-presidente Lula, não é exatamente um exemplo de defesa coerente da democracia e dos direitos humanos.
Como sustentar uma oposição vigorosa à barbárie bolsonarista sem dar voz à hipocrisia? Ao arrepio da ciência política, Lula voltou à carga, comparando Daniel Ortega, ditador da Nicarágua, com a premier alemã Angela Merkel: "Por que a Merkel pode ficar 16 anos no poder e Ortega não?" perguntou.
Como denunciar visitas de Bolsonaro a países ditatoriais ou a simpatia nem um pouco disfarçada do presidente por ditaduras quando, após eleições forjadas na Nicarágua — em que opositores foram presos e observadores internacionais impedidos de participar —, o Partido dos Trabalhadores oficialmente elogia o "processo eleitoral" e saúda o vencedor, o protótipo de ditador Daniel Ortega?
Os direitos humanos estão longe de serem a principal pauta do eleitor brasileiro, mas, quando fala-se em impeachment e em processos contra Bolsonaro por crimes contra a humanidade e genocídio, é difícil — para não dizer impossível — se esquecer de que o PT, seu principal antagonista, também não tem nos direitos humanos uma bandeira. Ao menos não além do discurso.
Essas pautas só são importantes quando linhas são cruzadas pelos adversários? Como acusar Bolsonaro de genocídio ou crimes contra a humanidade — e, de fato, Bolsonaro cometeu tais crimes — pela forma como lidou com a pandemia quando se aplaude Nicolás Maduro, ditador da Venezuela, que defendia "remédios alternativos" como forma de vencer a covid-19?
Como é possível condenar Bolsonaro por discursos antidemocráticos quando lideranças e figuras destacadas do PT defendem aberta repressão contra manifestantes pró-democracia em Cuba?
Se os conflitos de Bolsonaro com a China simbolizam, definitivamente, o seu amadorismo em política externa, ao mesmo tempo, os elogios da ex-presidente Dilma à China, nas palavras dela, uma "luz contra a decadência ocidental", são igualmente condenáveis.
Sob a desculpa de "autodeterminação dos povos", de "soberania", de "anti-imperialismo", vemos defesas escancaradas de ditaduras sanguinárias. Até mesmo os ativistas pró-democracia de Hong Kong foram acusados de "fascismo", tendo em vista o imperativo infantil de um alinhamento automático com a China.
Por mais que, repito, direitos humanos não sejam exatamente a pauta mais importante para o eleitor brasileiro, o discurso hipócrita é notado e sentido. Não precisamos ir ao exterior para coletar exemplos de como, no poder, a esquerda flertou com abusos de direitos humanos. Belo Monte, ataques a indígenas e ocupação militar de favelas são alguns deles.
Sim, é verdade que Bolsonaro segue tendo uma ficha corrida (bem) mais problemática, mas isso não desculpa os malfeitos anteriores, apenas reforça a necessidade de uma oposição para a qual os direitos humanos estejam além da retórica.
Nada disso significa, reafirmo, que Bolsonaro não seja, no cômputo geral, o pior dos mundos. Mas o fato é que a frouxidão e a hipocrisia da esquerda — em particular dos petistas — acaba fortalecendo o presidente no diálogo junto a eleitores ou potenciais eleitores.
Bolsonaro em momento algum esconde seu desprezo pelos direitos humanos, seu autoritarismo, suas fantasias golpistas. Ele pode ser acusado de muitas coisas, mas, à diferença do PT, não de hipocrisia no campo dos valores. Mesmo após três anos no poder (e após décadas na Câmara dos Deputados), Bolsonaro segue se posicionando como outsider, "contra a política tradicional", e a persistência desse discurso se deve, em parte, às contradições da oposição.
Acima de tudo, o fato dos dois principais líderes políticos do Brasil atual defenderem, abertamente, ditaduras e regimes autoritários diz muito sobre a política brasileira e a incapacidade da direita e da esquerda para se reinventar e, efetivamente, defender valores sociais, cidadania e direitos humanos sem meias palavras ou vírgulas.
* Raphael Tsavkko Garcia é jornalista e doutor em direitos humanos pela Universidade de Deusto. Contribuiu para veículos como Foreign Policy, Undark, The Washington Post, Deutsche Welle, entre outros.
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