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Com Mendonça no Supremo, evangélicos ganham força contra velhas elites

Andrè Mendonça durante sabatina - Edilson Rodrigues/Agência Senado
Andrè Mendonça durante sabatina Imagem: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Colunista do UOL

02/12/2021 11h11

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* Vinícius Rodrigues Vieira

André Mendonça passará 27 anos no Supremo Tribunal Federal (STF), se assim quiser. O "terrivelmente evangélico", nas palavras de Jair Bolsonaro, chegou lá mais facilmente do que se imaginava, com 47 votos contra 32, num Senado repleto de parvos que jogam para a plateia em CPIs, mas, como todo bom pecador na política brasileira, não podem ser dar ao luxo de desprezar o voto pentecostal e neopentecostal.

Tudo indica que os cultos cristãos realizados há tempos nos outros edifícios da praça dos Três Poderes, em breve, poderão se tornar rotina na casa que, em tese, deveria zelar pela laicidade da Constituição. Aparentemente, é um triunfo e tanto sobre as velhas elites jurídicas e, portanto, políticas que, com seus nomes pomposos e português rebuscado, dominam o fazer das leis e sua interpretação desde a colônia. A nação evangélica — ou, melhor dizendo, dos pastores que se comportam como vendilhões do templo, trocando a fé por votos — se desnuda sem qualquer pudor. Nada que a ficção já não tenha previsto, ainda que de modo impreciso.

Pouco conhecido pelas atuais gerações, Dias Gomes (1922-1999) foi um dos maiores intérpretes do Brasil na dramaturgia, seja nos palcos, seja na televisão. Em cena que viralizou na internet, um de seus personagens mais icônicos, Odorico Paraguaçu, protagonista da novela O Bem Amado (de 1973, depois convertida em série no começo dos anos 1980) parece anunciar com mais de quatro décadas de antecedência um dos aspectos mais nefastos do bolsonarismo — a postura anticiência. Prefeito de Sucupira, cidade fictícia localizada na Bahia e que funciona como metáfora do Brasil arcaico, Paraguaçu planeja sabotar uma carga de vacinas para impedir que um médico oposicionista ganhe prestígio em meio a uma epidemia.

Dias Gomes também foi capaz de prever, com precisão quase que cirúrgica, a decadência das velhas elites políticas brasileiras em meio à ascensão de pastores evangélicos como novos intermediários do poder. No livro Decadência ou o Procurador de Jesus Cristo — adaptado em 1995 pelo próprio Dias Gomes como minissérie na TV Globo —, a ascensão do pastor Mariel Batista, um órfão pobre, interpretado com maestria por Edson Celulari, contrasta com a derrocada da família Tavares Branco, cujo patriarca é um eminente jurista que convenientemente apoia Tancredo Neves na eleição indireta que marcou o fim da ditadura militar no Brasil.

A família Tavares Branco havia acolhido Mariel quando criança. Já adulto, entre 1984 e 1985, durante a campanha pela redemocratização do país, ele vira motorista da família, mas é demitido após ser flagrado na cama com Carla, uma das netas do patriarca, vivida pela atriz Adriana Esteves. Universitária e simpatizante do PT, Carla posteriormente reata o romance com Mariel, que se torna um líder evangélico em ascensão e funda sua própria igreja, o templo da Divina Chama.

Fruto da crítica ácida de Dias Gomes contra o uso da religião como instrumento de dominação das massas, Decadência foi exibida em 1995 e serviu à Globo para fustigar o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus. Macedo chegou a processar a Globo e Dias Gomes por causa da figura de Mariel, personagem cujas falas chegaram a repetir trechos de homilias do líder da Universal. Os trejeitos do personagem de Celulari claramente lembravam o estilo de pregação do bispo, que seguiu acusando o golpe anos depois da exibição da minissérie.

Decadência termina com a família Tavares Branco dilapidada desde o ponto de vista moral e financeiro. Um incêndio consome a velha mansão da família. Carla desiste de se casar com Mariel ao descobrir que ele foi responsável pela morte do pai dela. Na cena final, ela participa de uma manifestação pelo impeachment de Collor, em 1992, enquanto um narrador sugere que tal evento político esteve longe de mudar o Brasil.

A polêmica em torno de Decadência foi tamanha que a série passou ter seus episódios precedidos por um depoimento de Celulari ressaltando o caráter fictício da obra, o respeito da Globo a todas as religiões e a óbvia ressalva que, em todas as atividades, há os bons e maus profissionais.

Não cabe a mim avaliar o caráter de líderes religiosos em seu campo de atuação, perante seus fiéis. Dito isso, todo cidadão desta pretensa República laica pode e deve refletir e agir para impedir a captura do Estado por interesses particulares. Nesse sentido, o personagem Mariel é emblemático, pois revela ter ambições políticas.

Mais que Macedo, o Mariel de Bolsonaro atende pelo nome de Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus que foi o grande kingmaker ou, melhor dizendo, o justicemaker da República, ao insistir na indicação de Mendonca ao STF. Não à toa Malafaia foi à forra contra o presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), responsável por travar a sabatina de Mendonça por quase quatro meses.

No embate entre as novas e velhas elites, o povo, como sempre, é o grande perdedor. Até nisso Dias Gomes antecipou o futuro ao trazer um pastor negro e honesto em contraponto ao branco e inescrupuloso Mariel. Interpretado por Milton Gonçalves, o pastor rompe com Mariel e tenta fazer justiça com as próprias mãos ao atirar no ex-irmão de fé. Mariel se salva e se vinga com sangue ao mandar matar o pastor.

Além de servir de crítica ao racismo estrutural — são exceções os líderes evangélicos, tal como ocorre em outras searas, desde o futebol até o tráfico de drogas —, o personagem de Milton Gonçalves encarna o povo, o grande perdedor da disputa entre os Tavares Branco e Mariel, entre as velhas e novas elites. Ambas cometem o mesmo pecado no altar da democracia: pensam apenas em si, endeusam o lucro fácil e imediato e estão de costas para o país.

Mendonça não será o procurador de Cristo no Supremo, senão do próprio bolsonarismo fomentado pelas velhas elites que, tal como visto na quarta (1º), no Senado, optaram por segurar a Bíblia em vez da Constituição para não perder os dedos do poder. Porventura, há também à esquerda aqueles que se colocam contra o presidente e seus asseclas, mas não se furtam de rezar na capela da corrupção. Aos crentes de verdade, resta o consolo de um provérbio bíblico: "É melhor ter pouco com retidão/do que muito com injustiça".

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.