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Duelo Lula-Bolsonaro ecoa luta contra o fascismo na França de 20 anos atrás

Bolsonaro provoca a esquerda em conversa com apoiadores - Reprodução/Facebook
Bolsonaro provoca a esquerda em conversa com apoiadores Imagem: Reprodução/Facebook

Colunista do UOL

01/01/2022 19h29

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* Vinícius Rodrigues Vieira

"Vote no escroque, não no fascista". Essa frase, disposta no cartaz carregado por um manifestante em maio de 2002 em Paris, resume bem o segundo turno das eleições presidenciais da França daquele ano.

O então presidente Jacques Chirac, de centro-direita e condenado por corrupção depois de deixar o poder, passou em primeiro lugar ao segundo turno, seguido por Jean-Marie Le Pen, então líder da Frente Nacional, partido de ultradireita, anti-migração e anti-União Europeia, de inspiração claramente fascista. A escolha difícil do eleitor francês foi imposta pelas urnas depois que o candidato de centro-esquerda, o socialista Lionel Jospin, ficou em terceiro lugar muito embora ocupasse o cargo de primeiro-ministro.

Será que, no Brasil, a disputa de 2022 também se resumirá à escolha entre um escroque e um fascista? Você, caro leitor, pode achar que Lula é um escroque, vocábulo que, segundo definição apresentada em busca no Google, corresponde àquele "que se apodera de bens alheios por meios ardilosos e fraudulentos". A Justiça brasileira, porém, considerou nulo o processo no qual o ex-presidente tinha sido condenado pelo agora pré-candidato Sergio Moro por receber um apartamento triplex em troca de favores políticos.

Dito isso, a corrupção empreendida por partidos que sustentaram Lula e sua sucessora Dilma Rousseff no poder é amplamente documentada em outros tantos processos da Operação Lava Jato que não foram anulados. Dentre os que se refestelaram com o dinheiro público, há petistas assim como integrantes de partidos que, hoje, integram a base aliada do presidente Jair Bolsonaro.

Ainda que muitos finjam ignorar, este último segue a proferir impropérios contra a democracia e as minorias, além de ignorar o sofrimento alheio em tragédias como as enchentes da Bahia. Isso para não citar a recusa presidencial a fornecer vacinas contra a covid para crianças e o atraso deliberado para imunizar adultos no país, tendo, portanto, contribuído para que fiquemos apenas atrás dos Estados Unidos e da Rússia no número absoluto de mortos na pandemia.

Em suma, o bolsonarismo não apenas parece fascismo. Essa força política também tem cara de fascismo. Conclui-se, portanto, que temos um fascista concorrendo à reeleição. Com a máquina federal nas mãos, Bolsonaro reúne, assim, muito mais força que Le Pen detinha em 2002 na França, não obstante os altos índices de rejeição do mandatário brasileiro. Ademais, parte significativa da direita ainda está com o presidente não de nariz tapado, mas porque, no fundo, também defende posturas extremistas ou radicais, como a máxima "bandido bom é bandido morto".

Na França de 2002, os socialistas declararam apoio a Chirac, que acabou reeleito com mais de 80% dos votos. Não tenho dúvidas de que, naquele contexto, a centro-direita francesa teria feito o mesmo caso Jospin fosse a opção a Le Pen. No Brasil de 2022, a direita, no máximo, pensa em se abster ou anular o voto caso o cenário traçado pelas pesquisas se confirme e tenhamos um segundo turno entre Lula e Bolsonaro em outubro próximo.

Escolha difícil? Já ouvi vários argumentos contra o retorno de Lula e do PT ao poder que não se sustentam. O mais recente, vindo de um colega que leciona no ensino superior, é o apoio do partido a ditaduras. Arrisco-me a dizer que há defensores do autoritarismo em todas as vertentes políticas, sejam elas de esquerda, sejam elas de direita. Para cada defensor de Daniel Ortega na Nicarágua, deve haver um pinochetista dentre os eleitores brasileiros. Dilma Rousseff louvou o sistema chinês em novembro passado. Paulo Guedes já reverenciou o que ele define como reconstrução da economia na Alemanha e no Chile sob regimes fascistas.

Ter um ditador de estimação indica vontade de implementar um regime autoritário no Brasil? Nessa seara, há fatos para serem comparados. Membro de um partido de centro-esquerda, Lula empreendeu um governo de tendência centrista, sobretudo até a crise de 2008. Para 2022, ensaia novamente um movimento oposto à esquerda ao considerar Geraldo Alckmin como candidato a vice.

No poder, Lula manteve boas relações com Washington e Pequim e, imagino, deve promover uma política externa que busque o reequilíbrio de nossos interesses no mundo, sobretudo com a Europa, onde os governos de centro e centro-esquerda se encontram em ascensão. Bolsonaro, por sua vez, ainda sinaliza com ruptura institucional, em especial quando se dirige a sua base mais aguerrida, e aposta no nosso isolamento em relação aos principais centros de poder do mundo e em nossa própria vizinhança.

Não podemos, claro, ignorar a corrupção. Seria salutar se o PT e demais partidos fizessem uma autocrítica em público a respeito daquilo que chamam eufemisticamente de malfeitos. Ademais, especificamente no caso dos petistas, cabe um mea culpa por terem chamado democratas à direita deles — Alckmin inclusivede fascistas a esmo. Agora, ironicamente, nossas vidas estão nas mãos de alguém que faz jus a tal alcunha nos trópicos.

Joga-se o peso da eleição de Bolsonaro nas elites — esse ator difuso que até mesmo bolsonaristas gostam de culpar por sua incompetência no governo. Mas será que tanta gente assim teria apertado 17 nas urnas se não houvesse um mal-estar com o establishment, algo que precede a eclosão da Lava Jato em 2014?

O descontentamento com a política vem desde os protestos de junho de 2013 e só foram agravados pelos eventos subsequentes, sobretudo o estelionato eleitoral promovido por Dilma, que, tal e qual Bolsonaro planeja fazer em 2022, promoveu tamanha gastança para ser reeleita e iniciar seu segundo mandato com uma política suicida de austeridade que lhe custou o mandato.

Outros colegas, do mercado, avaliam que o PT ainda busca hegemonia. Qual partido não gostaria de ser dominante? O PSDB, por exemplo, falava em ficar 20 anos no poder quando FHC tomou posse. A sociedade brasileira, no entanto, é plural por mais que permaneçam os vícios fundadores do Brasil — o racismo, o patrimonialismo, o corporativismo.

Em última instância, é o pluralismo que vem barrando a erosão definitiva do edifício constitucional e, portanto, a consolidação do bolsonarismo no poder. O mínimo de pluralismo necessário à democracia será apenas mantido caso elejamos um governo que se oponha ao Brasil fazendão do agronegócio jeca que vende soja para a China, mas é contra o "comunismo" de Pequim.

Não descarto a emergência de uma centro-direita republicana de fato. João Doria e Sergio Moro não podem encabeçá-la porque aderiram ao bolsonarismo mesmo sabendo que apoiavam um golpista e pretenso terrorista quando nos tempos de quartéis.

Simone Tebet (MDB-MS), a senadora que é a queridinha de outros colegas que ainda rejeitam Lula como último recurso contra o descalabro bolsonarista, demonstrou ser farinha do mesmo saco ao dizer que ninguém podia imaginar que viveríamos o pior governo de nossa história sob o capitão.

"Chirac é corrupto, mas pelo menos é um democrata", disse um eleitor do Partido Verde francês à Folha durante a mesma manifestação de 2002 citada no começo do artigo. "Vote em Le Pen e você não precisará nunca mais votar" e "Um ladrão vale mais do que um führer" estão entre os slogans identificados pela reportagem publicada há quase 20 anos.

Para ter o direito de eleger um presidente minimamente decente em 2026 e nos quadriênios seguintes, caro leitor, escolha em 2022 uma chapa que tenha comprometimento com a democracia. Caso contrário, você nunca mais precisará votar para presidente: Bolsonaro ainda ambiciona implantar um autoritarismo escancarado no Brasil. Portanto, para nosso capitão, já é o bastante ser um Le Pen tropical com apenas um mandato na presidência.

Le Pen e Bolsonaro, de fato, carregam muitas similaridades entre si. Diante da humilhação sofrida nas urnas em 2002, Le Pen afirmou que o triunfo de Chirac foi obtido "pelo método soviético, com o conjunto de todas as forças sociais, políticas e da mídia". Qualquer semelhança com Bolsonaro, em caso de derrota em outubro, não terá sido mera coincidência.

Na França, o "escroque" ganhou um segundo mandato no Eliseu. Aqui, Lula caminha para um terceiro triunfo rumo ao Planalto. Chirac não foi o primeiro nem será o último a ser perdoado por uma causa maior. Até Cristo na cruz prometeu o paraíso a um ladrão condenado junto com ele. Para os pregadores (hipócritas) de ontem e hoje, só resta uma oração: perdoai-vos, ó Pai, pois eles não sabem o que fazem. Ou até sabem. São os fariseus de toga, farda, e/ou sapatênis que, no fundo, buscam uma democracia de fachada, sem povo.

* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.