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Fenômeno Le Pen representa arma nuclear de Putin contra o Ocidente
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* Vinícius Rodrigues Vieira
Vladimir Putin está prestes a detonar uma bomba atômica tática lançada há anos no coração do Ocidente. Seu nome atende por Marion Anne Perrine Le Pen, mais conhecida pela alcunha de Marine. De acordo com pesquisa de boca de urna da Ipsos/Sopra Steria, a líder do partido de ultradireita Rassemblement National (Reunião Nacional) — antes chamado de Frente Nacional — aparece com 23,3% dos votos contra 28,1% para o presidente Emmanuel Macron no primeiro turno das eleições, que ocorre neste domingo (10).
As projeções para o segundo turno não são nada alvissareiras para Macron, que já aparece tecnicamente empatado com Le Pen. O presidente francês é a Hillary Clinton da vez: tal como a candidata democrata que perdeu a presidência americana para o populista de direita Donald Trump em 2016, Macron também é vítima da soberba liberal, que aponta erros e preconceitos alheios antes de se impor uma autocrítica.
O atual inquilino do Palácio do Eliseu não foi a debates, deixou de entregar mais crescimento e equidade tal como prometido em 2017 e agora vê a antimigração e anti-União Europeia (UE) Le Pen perto de destroná-lo com uma roupagem de centro-direita, com foco em questões econômicas, que se demonstrou eficaz perante o eleitorado, em particular os mais jovens. Isso porque Macron lidera apenas entre os maiores de 55 anos.
Eleito como alternativa aos socialistas e republicanos de centro-esquerda e centro-direita respectivamente, o líder francês decepcionou ao não entregar reformas que dinamizassem a economia de seu país ao mesmo tempo que legassem ao povo melhores perspectivas. Como resultado, Macron é visto como o candidato dos ricos, em contraste à aura de renovação que o conduziu ao poder há cinco anos.
Ademais, o presidente francês se aproximou da pauta da ultradireita — verdadeiro campo político de Le Pen —, como quando alertou para um suposto "separatismo islâmico" no país, sem, no entanto, enfrentar, de fato, a exclusão de muçulmanos da sociedade.
Foi uma estratégia vã para controlar a ascensão da ultradireita. Desde 2017, o presidente francês enfrentou não apenas a pandemia e protestos contra vacinas e lockdown, mas também a revolta dos chamados coletes amarelos, trabalhadores do setor de transportes que deram início em 2018 a um movimento contra os altos impostos sobre os combustíveis. Os protestos ainda ocorrem com certa frequência, aglutinando outras demandas populares e populistas, inclusive aquelas decorrentes das decisões necessárias para combater a covid-19.
A cereja do bolo indigesto para Macron e, muito provavelmente, para a democracia francesa e a UE é o conjunto de sanções aplicadas à Rússia. Elas não apenas são ineficazes em frear a máquina de guerra de Putin na Ucrânia, mas parecem ter contribuído com o aumento do custo de vida no Ocidente, que já vinha sendo impactado pelos efeitos da pandemia na economia global.
Embora analistas pró-Ocidente sejam quase que unânimes ao apoiar as sanções — descritas inicialmente pelo governo de Macron como capazes de colapsar a economia russa —, o fato é que elas tendem, cada vez mais, a se revelar um tiro pela culatra. As dificuldades de Putin em solo ucraniano não decorrem da suposta bomba atômica econômica do Ocidente que as sanções implicariam, mas por causa da determinação dos cidadãos da Ucrânia em defender a soberania da nação com o uso de armas fornecidas pelos Estados Unidos e seus aliados europeus. A própria UE já reconheceu que a guerra será resolvida militarmente.
Para reverter o quadro em casa, porém, já não basta a Macron expor as ligações agora escamoteadas entre Le Pen e Putin, expondo o antiliberalismo de sua adversária. A França parece estar decidida a dar uma chance àquela que vestiu roupa de moderada ou, para ser mais preciso, de gaullista, adjetivo que resume o eleitor médio francês — defensor do estatismo e conservador nos costumes, herdeiro do pensamento encarnado por Charles de Gaulle, líder antinazista na Segunda Guerra Mundial e presidente entre 1959 e 1969 — e que tradicionalmente votava nos republicanos até 2017.
Foi esse alinhamento político que esmagou no segundo turno de 2002 o pai de Marine, o xenófobo Jean-Marie Le Pen, fundador da Frente Nacional, que perdeu a eleição para o gaullista e então presidente Jacques Chirac por mais de 80% dos votos. Chirac, cujo nome esteve envolvido em escândalos de corrupção, foi embalado pelo lema "vote no escroque, não no fascista".
Exatamente 20 anos depois, o sobrenome Le Pen pode entrar na presidência da República sem maiores problemas. Se virar chefe de Estado, Marine estará apenas constrangida por uma muito provável ausência de maioria no parlamento para indicar o primeiro-ministro, que, no semi-presidencialismo francês, dispõe de amplos poderes sobre assuntos de política interna.
Analistas atribuem boa parte do sucesso de Le Pen, que há cinco anos foi derrotada, ao fato de um extremista de direita, Éric Zemmour, ter surgido na disputa, permitindo que ela se deslocasse rumo ao centro com mais conforto. De fato, Zemmour é abertamente islamofóbico, mas Le Pen não teria obtido espaço junto a eleitores centristas se Macron não tivesse se encastelado em sua bolha cosmopolita enquanto fazia concessões pontuais aos xenófobos e ao grande capital.
Como protestar contra a falta de resultados econômicos e social sem jogar fora o bebê com a água do banho —ou seja, sem prejudicar a democracia? Ex-banqueiro e ex-socialista, Macron é filho direto do liberal-cosmopolitismo que, do alto de suas breves certezas, enxerga-se superior às massas que, humilhadas econômica e simbolicamente, caem no colo dos populistas. Embora figuras como Le Pen sejam tão ou mais hipócritas que as elites globalizantes, ao menos demonstram simpatia ao fardo do homem e da mulher comum.
Além de decepcionados com a incapacidade de Macron em entregar as mudanças prometidas, os eleitores franceses que pendem ao populismo de direita também se perguntam se seu presidente é, de fato, o melhor líder para lidar com a guerra. O candidato à reeleição disparou nas intenções de voto no começo do conflito. Ligações telefônicas insistentes e prolongadas com Putin, porém, sugerem que a diplomacia a la Macron é falha.
Fomentado por recursos e fazendas de bots russos, o populismo de direita é um pesadelo longe do fim. Pagamos todos o pecado-mor do liberalismo-cosmopolita: manter a equidade apenas no discurso enquanto seus defensores arrotam boas intenções para quem tem medo de ficar com o estômago vazio e ver o seu sistema de valores evaporar-se perante um mundo cada vez mais complexo e diverso.
A provável vitória de Le Pen neste domingo e no segundo turno em 24 de abril representará mais que o equivalente a uma bomba atômica tática, ou seja, de efeitos pontuais. Pode ser o começo, ainda que indireto, da vingança russa contra o Ocidente e suas zonas indiscutíveis de influência, como a América Latina. Imaginem um potencial Frexit — saída da França do bloco europeu — ou uma UE desidratada, com poderes supranacionais reduzidos? O presidente Jair Bolsonaro, neoaliado de Putin, tem grandes chances de se manter no poder. Nos Estados Unidos, Trump voltaria à Presidência com facilidade se as eleições fossem hoje.
Em 2019, em entrevista ao Financial Times, Putin afirmou que "o liberalismo 'se tornou obsoleto", pontuando que ideais liberais sobre refugiados, imigração e questões LGBTs são agora combatidas pela "maioria esmagadora da população". Arrisco a dizer que, para a maioria, pouco importa o que outros fazem entre quatro paredes se o próprio bolso estiver cheio. O liberalismo gera riqueza, mas sua capacidade para promover, na prática, equidade e justiça social é cada vez mais contestada.
* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em relações internacionais por Oxford e leciona na Faap e em cursos MBA da FGV.
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