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Entendendo Bolsonaro

OPINIÃO

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Caso Silveira coloca a República sob a Lei do mais forte

22.04.2022 - Deputado federal Daniel Silveira foi condenado pelo STF - REUTERS
22.04.2022 - Deputado federal Daniel Silveira foi condenado pelo STF Imagem: REUTERS

Colunista do UOL

25/04/2022 16h45

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* Carla Teixeira

A crise institucional que assola o Brasil ganhou contornos mais definidos quando o presidente Jair Bolsonaro (PL) concedeu, na quinta-feira (21), feriado de Tiradentes, perdão de pena ao deputado federal Daniel Silveira, condenado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) a 8 anos e 9 meses de prisão, em regime fechado, por ataques aos ministros da Corte. Desde então, arvora-se os anúncios de um "golpe de Estado" com a imprensa dando os capítulos da novela que se tornou a Nova República, cada dia mais parecida com a Velha.

O conceito clássico considera "golpe de Estado" movimentos para a tomada de poder que contam com o protagonismo de militares. Tal definição é a que permite muitos intelectuais reconhecidos não considerarem o impeachment contra Dilma Rousseff como um golpe de Estado. No século 21, os fatos evidenciam o quanto esta definição é limitada por não interpretar os golpes dados por setores dos poderes Legislativo e Judiciário, e mesmo a combinação desses grupos com outras facções e organizações da sociedade.

Apesar do forte componente militar, o golpe de 1964, por exemplo, contou com a decisiva participação do Senado, que declarou "vaga a presidência da República", e do STF, cuja sessão na madrugada do dia 3 de abril empossou Ranieri Mazzilli na presidência. Enquanto a nação dormia, tenebrosas transações da burocracia estatal subtraíram a pátria mãe e condenaram seus filhos à perseguição política, prisão, tortura, assassinato, desaparecimento ou exílio durante 21 anos de ditadura militar.

A imprensa corporativa, os partidos de centro/direita, a Igreja Católica, grupos e organizações conservadoras apoiaram a violência para conter um imaginário avanço comunista. Tratou-se de uma ação sinérgica de amplos setores da sociedade brasileira.

Já no século 21, os golpes em Honduras (2009), contra Manuel Zelaya, e no Paraguai (2012), contra Fernando Lugo, tiveram semelhanças assustadoras com o golpe no Brasil (2016), contra a presidente Dilma Rousseff. Aqui, frações do Legislativo, setores do poder Judiciário, do Ministério Público, das Forças Armadas e da imprensa apoiaram o impeachment em nome do "combate à corrupção". Na prática, o que se viu foi a instalação de um governo de corruptos como Michel Temer, Geddel Vieira Lima et caterva.

Como apontou Alvaro Bianchi (2016), um golpe de Estado é uma mudança institucional promovida sob a direção de uma fração do aparelho de Estado que utiliza para tal de medidas e recursos excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político. O impeachment de Dilma sem crime de responsabilidade abriu a porta do arbítrio, possibilitando a entrada do bolsonarismo como força política nacional que devora as instituições da República por dentro, como um verme.

De focinheira há dias, Daniel Silveira voltou a latir recentemente: recusou-se a usar tornozeleira eletrônica, acampou no Plenário da Câmara e atacou o ministro Alexandre de Moraes às vésperas de ser julgado. Fica clara a intenção de agitar e mobilizar as hordas bolsonaristas contra as instituições (principalmente, o STF), mantendo a tensão entre os poderes enquanto o Executivo, apoiado pelo Legislativo (em sua maior parte, cooptado pelo orçamento secreto) e pelo militares (armados com cargos e verbas), se sobrepõe às instituições submetendo o povo à fome e à miséria causadas por um governo de facínoras descontrolados.

A graça concedida por Bolsonaro gerou grita nos mais amplos setores da sociedade. Juristas, especialistas, organizações e editoriais da imprensa condenaram a ação do Executivo. Em contrapartida, ministros do governo e militares da alta patente estavam eufóricos, em particular, os integrantes do que se convencionou chamar Partido Militar, que disputam com o Centrão o controle da máquina governamental.

Vale lembrar que o próprio general Braga Netto, cotado para ser vice de Bolsonaro, ameaçou as eleições de 2022 e muitos oficiais apoiam as investidas do presidente contra as urnas eletrônicas. No domingo (24), o ministro do STF Luís Roberto Barroso chegou a afirmar que as Forças Armadas "estão sendo orientadas para atacar o processo eleitoral brasileiro e tentar desacreditá-lo", argumento prontamente rechaçado em nota divulgada no mesmo dia pelo Ministério da Defesa.

No centro do descontentamento militar com o STF estão as anulações das condenações contra o ex-presidente Lula e de outras decisões da Operação Lava Jato, mas também a recente divulgação dos áudios do Superior Tribunal Militar, com seus ministros reconhecendo as torturas cometidas nos porões da ditadura. Para os militares, os áudios prejudicam a imagem das Forças Armadas, cujos oficiais estão envolvidos pessoalmente com o genocídio promovido pela (in)ação do governo que participam durante a pandemia.

Em grupos bolsonaristas nas redes sociais, antes mesmo da condenação de Silveira, já se sugeria a possibilidade do presidente da República conceder a graça institucional. Ou seja, Bolsonaro queria a condenação de Silveira para afrontar o STF contando com o apoio do Legislativo — Pacheco fez o Pôncio Pilatos e já avisou que o Congresso não vai se meter nisso — e das Forças Armadas. Ao fazer valer a lei do mais forte, o bolsonarismo coloca a Nova República de joelhos.

Nesta cena, Jair é "o mito que libertará o Brasil da ditadura imposta pelo STF". Daniel Silveira, o violento bombadão, encarna a semiótica do mais forte, tornando-se o mártir no dia de Tiradentes: ambos heróis contra o arbítrio, brincando com o país enquanto as instituições dormem, como vimos acontecer em muitos episódios ao longo deste governo.

Mas por que as instituições não reagem? A resposta é simples. Houve um golpe de Estado, em 2016. Após uma situação de excepcionalidade institucional, o que passa a valer é a lei do mais forte, como aconteceu na República Velha coronelista do milênio passado. Hoje, Jair tem as armas, as Forças Armadas, as milícias e as polícias, por isso faz o que quer e nada acontece. É ingenuidade — para não dizer má-fé — julgar que vivemos qualquer normalidade institucional após 2016.

As instituições, que deveriam proteger a sociedade da "lei do mais forte", se renderam ao poder do capital. Como resultado, temos o Brasil governado pelo crime organizado que, armado e fardado, flagela os brasileiros enquanto desafia a burguesia branca que quer tirá-lo do poder. A graça institucional concedida por Bolsonaro é clara ao dizer para as instituições da República: "o bolsonarismo é mais forte do que vocês. Querem o poder de volta? Venham tirar". Apenas a urgente união dos mais amplos setores democráticos do país, apoiados por massiva mobilização popular, poderão parar Bolsonaro. A vitória da democracia em 2022 será definida nas urnas, mas principalmente nas ruas.

* Carla Teixeira é doutoranda em História na UFMG