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Democracia e Diplomacia

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quem representa a diplomacia brasileira?

Exame do curso de preparação para a carreira diplomática no Instituto Rio Branco, em 1947 - Arquivo Nacional
Exame do curso de preparação para a carreira diplomática no Instituto Rio Branco, em 1947 Imagem: Arquivo Nacional

Colunista do UOL

26/07/2021 04h00

Por Karla Gobo e Claudia Santos*

Na primeira década de 21, o Brasil passou de 4,4% para 7,9% de pessoas com ensino superior, segundo dados do Censo. Um pequeno grande avanço. Essa melhora não impediu que em 2019, o relatório Education at a Glance, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), tenha apontado que o Brasil possuía uma das piores taxas de pessoas com ensino superior entre os membros da organização: apenas 21% na faixa entre 25 a 34 anos. Com mestrado e doutorado, o cenário era ainda pior: 0,8% dos brasileiros entre 25 a 64 anos com mestrado e apenas 0,2% que chegavam ao doutorado.

Quando olhamos para o Itamaraty, vemos um retrato completamente diferente: 74,5% dos pais e 64,4% das mães dos diplomatas brasileiros têm pelo menos o ensino superior. Isso é quase 10 vezes mais do que a média nacional. Esses dados foram obtidos por meio de um survey que formulei e enviei para todos os diplomatas brasileiros em 2015 e foi respondido por 208 profissionais de diversas etapas da carreira. Os resultados indicam um perfil bastante específico desse quadro do funcionalismo público.

O uso de dados como a escolaridade dos pais é um importante indicador sobre a origem social, já que quanto maior a escolaridade, maiores são os salários e o acúmulo do capital cultural legítimo, recursos fundamentais para o sucesso no concurso. Estamos tratando, portanto, da "elite da elite".

Concursos públicos são uma alternativa muito presente para aqueles que querem fugir das incertezas e da precariedade crescente do mercado de trabalho brasileiro. Não raro as pessoas se inscrevem em diferentes concursos na esperança de conquistar um espaço.

Aqui, surge outra diferença entre diplomatas: a estabilidade, grande atrativo em várias carreiras de Estado, não é o principal motivador para este grupo. Apenas 6% disseram que optaram pela carreira por ser um cargo público e estável e 73,1% disseram que esta era a única alternativa que tinham interesse no funcionalismo público.

Apesar de ter um dos salários mais atrativos da administração pública, apenas 2% alegaram que a remuneração foi o principal motivo de suas escolhas pela carreira. A origem de classe, a alta escolaridade, o domínio de línguas estrangeiras e a passagem por instituições de excelência fazem com que muitos possam ter salários correspondentes ou melhores em outros cargos ou na iniciativa privada.

Quanto à divisão sexual, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) foi um dos primeiros espaços da burocracia estatal a abrir espaços para as mulheres. Em 1918, Maria José de Castro Rebello Mendes entrou no órgão, tornando-se a primeira servidora pública brasileira a passar por um concurso de provas.

A história para as mulheres no MRE é, entretanto, particularmente acidentada. Em 1934, a proibição de casamentos entre funcionários públicos tentava limitar a presença de mulheres no funcionalismo. Em 1938, veio uma medida específica para o MRE, a proibição de mulheres no concurso, que vigorou até 1954. Mesmo após a queda da resolução que proibia a entrada de mulheres, criaram-se outras medidas que dificultavam suas permanências ou progressões profissionais.

Hoje o Itamaraty conta com aproximadamente 23% de diplomatas mulheres. Um dos argumentos utilizados para justificar a baixa presença de mulheres na carreira diplomática são os deslocamentos constantes, que numa cultura patriarcal são mais penosos para as mulheres.

Entretanto, no MRE há outras duas carreiras, assistente e oficial de chancelaria. A primeira exige apenas o ensino médio. Na segunda, assim como na carreira diplomática, é preciso ter completado o ensino superior, mas sobre ambas paira percepção de serem "carreiras meio", que são basicamente cargos administrativos, de menores salários, menor valor simbólico e com os mesmos constrangimentos de deslocamento da carreira.

Esses cargos são majoritariamente femininos. Não há estudos conclusivos que permitam afirmar o porquê de as mulheres estarem em maior número nas duas primeiras categorias profissionais. Conforme Farias e Carmo, as mulheres são, em média, 40% dos candidatos ao concurso à carreira diplomática, mas menos de 25% dos aprovados.

Mesmo com a eliminação de entrevistas e provas orais que ocorreu nas décadas de 1980 e 2000, respectivamente, ou o aumento substantivo de diplomatas selecionados entre os anos 2006 e 2010, a divisão sexual dos recrutados não sofreu alterações significativas. O que sabemos até aqui é que os deslocamentos constantes de postos e países não inibem as mulheres a prestarem os concursos para o MRE, mas não temos elementos conclusivos para explicar os resultados do recrutamento para a carreira diplomática, já que hoje o percentual de homens e mulheres que fazem a seleção para o concurso de diplomata é bem próximo, as provas não são identificadas, mas os resultados continuam sendo desfavoráveis às mulheres.

Quanto aos negros, é preciso primeiramente frisar a dificuldade de se analisar esse grupo no Itamaraty: não há dados disponíveis sobre autodeclaração de cor. As informações apresentadas aqui são de fontes secundárias, notícias ou do site do Ministério das Relações Exteriores.

De acordo com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE (2019), 56,7% da população do país é negra ou parda. De acordo com uma reportagem da revista piauí, de 2020, sobre um diplomata negro especializado em física nuclear, Ernesto Batista Mané Junior, a estimativa é de que eles não passam de 60 num universo de aproximadamente 1600, portanto menos de 4% do total. Com relação à ascendência indígena, há ausência absoluta de dados e mesmo estimativas.

Para se ter uma ideia das desigualdades deste espaço quando se analisa a cor da pele, somente na década de 1960, o Brasil teve seu primeiro embaixador negro, Raimundo de Souza Dantas. Ele não era pertencente à carreira diplomática. Tratou-se de nomeação política do presidente Jânio Quadros, em 1961, para a embaixada em Gana.

Apenas em 2010 se tem a nomeação do primeiro embaixador negro no Brasil que ingressara no Itamaraty por meio do concurso do Instituto Rio Branco, Benedicto Fonseca Filho. Sua trajetória ajuda a compreender as dificuldades e desigualdades que restringem o acesso das pessoas não brancas num concurso como o do Itamaraty. Benedicto tem um caminho pouco convencional para este grupo: filho de agente de portaria e contínuo, desde cedo teve vivências no exterior e pôde estudar em escolas francesas e americanas.

No início do século 21, fruto das reflexões sobre diversificação social na carreira, nasce o programa "Bolsa Prêmio de Vocação para a Diplomacia". Ele prevê o pagamento de uma bolsa durante o período de um ano no valor de R$ 25 mil, valor pouco superior a R$ 2.000 mensais, dos quais apenas 30% são admitidos para o custeio. O restante deve ser destinado a materiais de estudos, cursos ou aulas particulares.

O site do Instituto Rio Branco traz a seguinte informação: "Até 2014, o Ação Afirmativa já concedeu 594 bolsas para 354 bolsistas, dos quais 21 foram aprovados no CACD". Levando em consideração o número de bolsistas com o número de aprovados, apenas 6% deles, mesmo com as renovações, conseguiram a aprovação no concurso. Caso se considere o total de 740 diplomatas que ingressaram de 2003 a 2014, esse percentual cai para menos de 3% dos aprovados. Isso demonstra que, apesar de ser um programa importante, ele ainda não é suficiente para tornar aptas pessoas que estiveram em condições de desvantagem social, econômica e cultural para competir com os demais.

Tendo em vista a baixa eficiência do programa, em 2011 foram criadas também cotas para a primeira fase do concurso. Posteriormente, em razão da lei 12.990/14, que estabelece a reserva de 20% das vagas nos concursos do funcionalismo público entre os anos de 2014 e 2024, o IRBr passou a implementar o sistema de forma plena em todas as etapas do processo seletivo. É importante ressaltar que o Itamaraty foi o primeiro órgão do governo federal a observar a reserva dos 20%, que tem sido preenchida desde então.

O processo funciona em duas etapas. A primeira é a autodeclaração no ato da inscrição. Posteriormente, uma banca afere a declaração dos candidatos levando em conta exclusivamente o fenótipo dos aprovados pelo sistema.

É possível observar algumas mudanças no processo de recrutamento ao longo do tempo. Primeiro foi a mudança na redação do edital, explicitando a importância da condição fenotípica "afrodescendente (negro)", principalmente depois que candidatos afrodescendentes de pele branca tentaram ter acesso à carreira por meio das cotas. Outra mudança foi a composição da comissão verificadora, que por mais de uma vez teve o seu resultado questionado e judicializado. Embora o critério seja exclusivamente fenotípico, o Supremo Tribunal Federal tem considerado que o histórico familiar e fotografias podem ser utilizados para comprovar se uma pessoa é negra.

Com relação à divisão regional, 60% dos diplomatas brasileiros são nativos de apenas quatro Estados brasileiros: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. Mesmo considerando que esta é a região com maior concentração populacional, estimada pelo IBGE em 45% no ano de 2019, sua representatividade no MRE é quase 15% superior à apresentada no país.

Até a primeira metade da década de 1980 a trajetória educacional dos diplomatas passava por: colégios confessionais, faculdade de direito no Rio de Janeiro e, finalmente, o Instituto Rio Branco. As instituições mais significativas na lista de aprovados são: UFRJ, Uerj e PUC-Rio.

Segundo Cristina Patriota de Moura, a graduação em direito, neste caso, constituir-se-ia mais como meio para obtenção da aprovação e, caso esta não ocorresse, poderia ser a melhor possibilidade profissional na área de humanas, marcada por cursos de baixo status e salários.

O que se percebe nas últimas décadas é que há diminuição substantiva dos bacharéis em direito, embora ainda seja o grupo mais representativo. Hoje eles são 48,5% do corpo diplomático, mas já foram 73,6% entre 1946 a 1960. Se considerarmos apenas os últimos 20 anos, esse índice é ainda menor, 42% dos aprovados, comprovando assim este processo de queda. Os egressos de relações internacionais passaram a ocupar maior número de vagas: 22% do universo é originário desse curso; 29% dos formados foram aprovados nos últimos 20 anos, proporção que aumenta para 40% na última década.

Quanto à origem escolar, 74% dos diplomatas são oriundos de instituições públicas de ensino superior. Os aprovados de instituições privadas são apenas 21%. E aqueles que fizeram um curso de graduação fora do país são apenas 4%. Considerando o Ranking Universitário da Folha de S.Paulo, que classificou em 2019 "as 192 universidades brasileiras a partir de indicadores de pesquisa, inovação, internacionalização, ensino e mercado", as 10 melhores foram: USP, Unicamp, UFRJ, UFMG, UFRGS, Unesp, UFSC, UFPR, UNB, UFPE, todas instituições públicas de ensino. Exceto a UnB e a UFPE, todas as outras universidades do ranking estão no eixo Sul e Sudeste, sendo que três delas se situam no estado de São Paulo.

Ao analisar o universo dos diplomatas que passaram pelas universidades públicas, percebe-se que a maioria, 78%, é formada em uma dessas 10 instituições. O restante, cerca de 22%, veio de uma das mais de 80 universidades federais ou estaduais do país. Ao contabilizar apenas as instituições que mais aprovam dentre essas dez instituições, a UNB (41%), a USP (36%) e a UFRJ (23%), concentram juntas 72,3% das aprovações.

Em suma, embora a diplomacia venha lentamente mudando para ser um retrato mais fiel da sociedade brasileira, que é majoritariamente composta por mulheres e não brancos, ainda reflete características dos espaços de elite no Brasil. Diplomatas são majoritariamente homens, brancos, filhos de pais com ensino superior, das regiões sudeste e sul do país e com títulos acadêmicos de instituições de excelência.

* Karla Gobo é doutora em sociologia pela Unicamp), professora da ESPM-Rio e pesquisadora do Laboratório Cidades Criativas (ESPM-Rio), do Observatório de Elites Políticas e Sociais do Brasil (UFPR) e do Laboratório de Gênero (UFF) (karlagobbo@gmail.com); Claudia Santos é doutoranda em sociologia pela UFPR (madamebutterfly.c@gmail.com)